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O Ensaio sobre a cegueira
Fernanda Nepomuceno de Sousa.
Grupo de Direito e Psicanálise do IBDFAM
Professora Universitária
Mestre e doutoranda em Direito Internacional
Pós graduada em ciências políticas e diplomáticas
Psicanalista
Autora do livro: “Tribunais de Guerra”
Autora de vários artigos nacionais e internacionais
Ex-funcionária da ONUCI – Costa do Marfim
Resumo: O objetivo desse artigo é fazer um contraponto entre o livro “O Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, e a sociedade atual. As mulheres e a cegueira são usadas como alegoria, o autor configura a crise do Estado e o grande desamparo que surge da “falta”. Esse cenário indiferente e de abstinência ética é propício para a violência como para outros excessos. A obra, desnuda, impiedosamente, o horror da banalidade do mal e nos alerta para o fato de que a barbárie pode ser universal, numa linha tênue que separa o estado de civilização da possibilidade de quebra do pacto civilizatório.
Palavras-chave: cegueira – sociedade – sobrevivência – indivíduo – humanidade – falta – vazio – consumismo – banalidade do mal – desejo – civilização.
Introdução:
“Ensaio sobre a Cegueira” é um romance de José Saramago, que nos conta a história de uma epidemia que assola as pessoas de uma grande metrópole, que as deixa cegas. As autoridades diante disso, colocam as pessoas “em quarentena” num manicômio, por acreditar que a doença seja contagiosa.
À medida que os serviços oferecidos pelo Estado começam a falhar, os indivíduos começam a lutar pelas suas necessidades básicas, expondo seus instintos, suas pulsões primárias, reais. Apenas a esposa de um médico consegue enxergar e é ela quem tenta salvar a humanidade perdida.
O autor faz uma analogia do quanto às pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo, e por não enxergarem o outro, vão criando uma sociedade de indivíduos atomizados, autocentrados, que só sabem correr atrás de interesses próprios, sendo vitimizados por um colapso moral.
Mostra também que o mal estar é tão grande num momento de crise, que as pessoas cometem atos bárbaros que não cometeriam em circunstâncias normais.
O Olhar, O Gozo, o Outro:
Mais do que um retrato de como as pessoas agiriam se não pudessem enxergar, o autor propõe uma análise da sociedade em que vivemos.
O olhar, um dos objetos ‘a’, aparece como a própria visão, o ato de enxergar. E ao ver aparece como a capacidade de observar, de analisar uma situação, no registro do simbólico.
Atualmente essa falta de visão é certa na sociedade em que vivemos, baseada na informação e virtualidade, imediatista, excluidora, descartável e cada vez mais dominada pelo discurso do capitalismo e pela imagem.
A cegueira abordada no livro é uma metáfora da hipocrisia da sociedade, que tem passado por um período de alienação. Sendo assim, não consegue diferenciar o que é sua necessidade e o que é imposição, transformando os sujeitos em conformados, formatados, principalmente as mulheres.
Os produtos, as mercadorias é que dão a tônica, a lógica do sistema tal como no caso dos cegos, onde não há sujeitos, apenas consumidores, transformados em objetos, passíveis de serem trocados entre si.
A lógica da sociedade é apenas o gozo, a satisfação máxima, não importando por cima de quem tenham que passar para obterem isto. Essa situação é claramente percebida na parte do texto em que conta como os militares matam os cegos por medo da contaminação, quando eles apenas tentavam chegar até aos alimentos.
Este tipo de discussão já se encontra previsto em boa parte da obra de Jacques Lacan. Pois, para ele, só quando o sujeito é apanhado pelas cadeias da linguagem, é que ele se torna sujeito. Só quando ele lida com a fala, a alma da linguagem, percebendo os seus efeitos, é que ele percebe que nós não somos meros organismos, capturados dentro de uma concepção de natureza repetitiva e asséptica.
Somente a linguagem e a fala introduzem a possibilidade dos sujeitos se pensarem, de pensarem nos outros. O que leva os sujeitos a saírem de um plano de atuação imediato, para refletirem sobre os seus atos no passado, no presente e no futuro. Apenas aí, é possível olhar as consequências dos seus atos, como no caso, os militares que passaram a refletir a respeito das ações dos seus colegas.
Assim, emerge o estágio do espelho que possibilita um primeiro momento de captura do humano. Mas, ao momento tempo, surge à possibilidade da agressão.
É momento em que o Outro não é mais visto como um igual a mim. Surge o complexo de intrusão. O Outro é o meu inimigo. Eu preciso me impor a ele, antes que ele se imponha a mim.
Cegueira Branca:
A cegueira branca que invade a população representa algo que se supõe claro e iluminado, remete à ideia da clareza da razão humana, da tecnologia, uma razão instrumental que coloca em segundo plano as emoções e a arte.“Mar de leite”, “brancura insondável”, “glória luminosa”, em contraponto a um persistente mecanismo de recusa de ver aquilo que é real.
É uma alegoria sobre a falta de visão social e política diante da realidade que nos circunda. Os indivíduos, alienados, encontram-se apartados do mundo, imersos na ideologia individualista e consumista. Eles vivem fora da realidade, ainda que tenham olhos não a reparam. Tudo lhes parece natural.
Zygmunt Baumann nos ensina que “o medo e o mal são irmãos siameses.”
Diante da insegurança e das incertezas, cegam-se. Talvez nos encontremos no estado de cegueira, ainda que nossos olhos vejam eles insistem em não enxergar.
“O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já
éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará
continuar cegos” (p. 131).
Banalidade do Mal:
A expressão “banalidade do mal” foi cunhada pela pensadora Hannah Arendt (1906-1975) em sua obra “Eichmman em Jerusalém : um relato sobre a banalidade do mal”.
Na obra ela expressa a capacidade do Estado moderno de dizimar qualquer vida humana através das engrenagens estatais.
Segundo Arendt, o mal, quando atinge grupos sociais, é político e ocorre onde encontra espaço institucional. A banalidade do mal se instala no vácuo do pensamento, trivializando a violência.
Com esse conceito procura traduzir e expressar uma situação na qual a crueldade e violência assumem e tomam o cotidiano da existência. A banalidade do mal se torna realidade quando a perversidade passa a se construir como algo comum e costumeiro, que deixa de causar estranhamento. É estranho e, ao mesmo tempo, familiar. A violência passa a fazer parto do cotidiano de maneira tão intensa que não produz espanto algum.
Podemos perceber em várias situações do livro ( filme) como a maldade humana se tornou banal e no mundo em geral, hoje também. Circunstâncias bárbaras são aceitas como normais e pessoas também tidas como normais, cometem atos cruéis induzidas pelo “sistema”.
O mal se torna banal e os homens passam a agir sem raciocinar, perdendo o horizonte das consequências e do significado das suas ações.
Freud já dizia em O Mal Estar da Civilização, que o homem é ruim por natureza, violento e reprime seus desejos em prol da coletividade. E o Estado, através da ordem e da justiça, coíbe esse instinto primitivo do homem. Mas o homem é agressivo e em situações de sobrevivências, mostra a sua verdadeira face, principalmente contra a mulher.
Mulher:
Na narrativa, os personagens precisam se reorganizar temporariamente diante do mal estar causado pela “cegueira” e quem represente o afeto, o ser afetado pelo objeto “a” em sua função de mais-de-gozar nesse espaço, é a mulher.
A mulher do médico, no caso, é a única que não perde a visão e por isso, se confronta com o horror, vê, percebe, enxerga o que há de errado.
“Mais vale um olhar que capta, enxerga e analisa a realidade do sujeito, do
que um olhar perdido no espaço.”
Ela é grandiosa que não se revela, teme o tamanho da sua grandiosidade, que em vários momentos poderia ter reagido as barbaridades, mas não o fez, em nome de que seu caráter e boa índole.
As mulheres representadas na obra são depositárias da força, resistência e da esperança.
Curioso que Lacan em suas teorias insinua que a mulher lida melhor com a lógica do inconsciente, pois encarna mais a desenvoltura da ideia de liberdade, uma vez que seu gozo não se subjuga ao falo.
Vale ressaltar que um dos mais belos momentos da obra é quando a mulher entra na igreja e se depara com os santos de olhos vendados e o padre discursa sobre a cegueira como forma divina de cura, “assim como Deus converteu pela cegueira Paulo, que perseguia e matava os cristãos, também converteria toda a população ora desprovida de visão”.
Evidenciando-se nessa passagem, a forte influência alienante que a igreja exerce sobre os indivíduos desde a Idade Média ou até muito antes. Pois a ideia de que a cegueira é instrumento de cura e não de perdição, aliena. Já que os que não são capazes de ver, também não são capazes de questionar. E quem não questiona é salvo.
Civilização X Globalização:
Uma última reflexão: a globalização e isto que chamamos pomposamente “civilização” não caminham juntas, ligadas por uma analogia que as torne inseparáveis. Ao contrário, a primeira não para de acelerar seu ritmo e se distanciar da segunda.
É evidente que a globalização dinamiza as economias, coloca as empresas na rede, mas ela dá um poder considerável ao dinheiro e submete o mundo inteiro às leis do mercado. Aparentemente, reduz as distâncias para conciliar culturas, ela as poda em favor da uniformidade do mundo.
O círculo infernal se agrava a partir de um tratamento desigual, o que suscita frustração e ódio, que gerando violência, que por seu turno reforça o tratamento desigual, que se acredita justificado.
Tomando por base a obra O Mal-Estar na Civilização, de Freud entende-se que a evolução das sociedades humanas não é nada mais do que a representação do conflito entre os instintos de vida e de destruição presentes no homem.
O fato de que se combinem indivíduos isolados, depois famílias, raças e povos numa grande unidade representa, segundo Freud, um grande esforço da humanidade, pois, em nome da conjunção, da civilização, ela tem de reprimir seu instinto latente de destruição.
Será necessário, definitivamente, desesperar da natureza humana ? Que o homem será apenas o lobo do homem, como pensava Thomas Hobbes, no século XVII ?
Os mais pessimistas ou mais desencantados dentre nós responderão afirmativamente. É fazer pouco caso dos amantes do espírito e da liberdade, e esses são numerosos, que recusam qualquer tipo de barbárie. Comecemos a varrê-la de nosso interior. “Combater a barbárie interior já ajuda a reconstruir o mundo” escreveu muito justamente o sociólogo e filósofo Edgar Morin.
Conclusão:
O romance de Saramago é uma crítica aos valores sociais, expondo o caos a que se chega quando a maioria da população se aliena. Leva-nos a refletir sobre a moral e os costumes, a ética, o preconceito e a violência contra a mulher. É um registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas, também, dos seus mundos emocionais e da dignidade que tentam manter.
Nos mostra que mais do que o olhar no outro, importa enxergar, reparar no outro. Se importar. Só assim o homem poderá se humanizar novamente.
Nesse contexto, a psicanálise se faz presente e importante, por ser uma ética e um corpo teórico bem fundamentado sobre o sujeito humano a nossa disposição e que nos ensina a construir uma nova visão sobre a humanidade e o “outro”. E o Estado também se faz presente e atuante, através da lei, da ordem,coibindo esse tipo de comportamento.
Temos que lidar com nossas faltas, mesmo sendo elas reais, mas não podemos nos cegar frente a elas. Não podes “fechar” os olhos, ligar o piloto automático e viver como se estivéssemos sido programados. O olhar e a fala do Outro nos constitui, não o mercado, o capital, o consumo.
A mensagem da obra de Saramago é a “falta de visão” do homem que não enxerga aquilo que prefere não compreender, incluindo si mesmo. A sua cegueira impede-o de ver o que ocorre a seu redor e o conduz à alienação. E a mulher é o plano de fundo, de violência, de otimismo...
Convida-nos a refletir sobre a urgência de se resgatar o afeto perdido, nesse mundo da solidão e desamparo, representado pela busca e pela errância. E esse é o meu convite também.
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