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A incerteza da paternidade certa
Como decorrência do casamento, tradicionalmente repete a doutrina que a revelha presunção pater is est quem justae nuptiae demonstrant se forma em relação aos filhos que a mulher casada vier a conceber, que passam, por isso, a ser legalmente considerados como filhos do marido.
Tal presunção assenta-se, em verdade, em outras duas: (1) que na constância da convivência matrimonial são mantidas relações sexuais e (2) que a mulher é fiel ao marido. Por isso, razoável supor que os filhos havidos durante a vida em comum foram concebidos pelo marido.
De origem romano-germânica, desde cedo nossa legislação civil a incorporou, o que é assim justificado por Luiz Roldão de Freitas Gomes(1):
(...) a motivação da regra estava em evitar que pessoas alheias à família pudessem levantar suspeitas injuriosas contra a mulher, que pudessem causar perturbação às relações matrimoniais.(...) Há de se reter também – o que auxilia na interpretação da regra no Direito Romano – que nele vigorava o princípio geral de que aos filhos nascidos de uniões qualificadas como matrimônios legítimos (...) é atribuído o status civitates de que o pai desfrutava ao tempo da concepção.
O clássico Lafayette Rodrigues Pereira, de forma lapidar, explica desse modo sua função (2):
A paternidade, porém, é, por sua natureza, occulta e incerta; e, pois, não pode ser firmada em prova directa, como a maternidade. D’hai a necessidade de funda-la em uma probabilidade que a lei eleva á cathegoria de presumpção legal.
No Código Civil de 1916 a presunção pater est estava consagrada no art. 337, que continha a seguinte redação:
São legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado (art. 217), ou mesmo nulo, se se contraiu de boa-fé.
Afirmar que os filhos nascidos na constância do casamento são legítimos equivale a dizer que o marido é o pai, e nisso consistia a conhecida presunção. Em comentário a esse dispositivo (art. 337), dizia J.M. de Carvalho Santos (3):
É a velha máxima que nos foi legada pelo direito romano e segundo a qual fica firmada a presumpção da paternidade. Presumpção que o nosso Código acolheu aqui neste artigo ao determinar que é legítimo o filho concebido na constância do casamento. (grifo meu)
Na seqüência, o art. 338, em complemento à regra do art. 337, dispunha, em atenção aos tempos médios de gestação, que por constância do casamento compreende-se o período entre 180 dias após o estabelecimento da sociedade conjugal e 300 dias depois de dissolvida a relação. E essa era, frise-se, apenas uma regra complementar à do art. 337.
Ocorre que, em 29 de dezembro de 1992, a Lei nº 8.560, entre outras coisas, revogou o art. 337 do CC/16, visando abolir o conceito de filhos legítimos, em atenção ao comando constitucional (art. 227, § 6º, da CF) que vedava qualquer designação discriminatória relativa à filiação. Entretanto, ao revogá-lo, inadvertidamente aboliu, em verdade, a própria presunção pater est, que não era posta pelo art. 338, mas, sim, pelo art. 337.
Curiosamente, isso não foi devidamente atentado pela doutrina nacional, que continuou a repetir, sem maiores indagações, que a presunção pater est prosseguia sendo consagrada em nosso Direito.
No Código Civil de 2002, o art. 1.957, em seus dois primeiros incisos, repete literalmente o conteúdo dos incisos correspondentes do art. 338 do CC/16, apenas definindo o período que se entende por constância do casamento.
Incorre, assim, no mesmo problema que o velho Código passou a apresentar, a partir da singela revogação do art. 337. Ou seja: não contém, em verdade, nenhuma regra que diga que se presumem do marido os filhos havidos pela mulher na constância do casamento !
Por essa razão, que parece óbvia, é preciso que se conclua no sentido de que, certamente por inadvertência do legislador, a presunção pater est foi extinta do ordenamento jurídico nacional. Em suma: o rei está nu, e é necessário que isso seja visto.
(2) PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: Superior Tribunal de Justiça: Editora Fac-similar, 2004, p. 219. Manteve-se a grafia da edição consultada.
(3) SANTOS, J.M.Carvalho. Código civil brasileiro interpretado. 2.ed. v.5. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937, p. 326. Manteve-se a grafia da edição consultada.
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