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Família pós-moderna: Será que estamos entrando na era da Família líquida?
Fernanda Las Casas - Doutoranda pela Universidade de São Paulo, Mestre pela FADISP, Especialista em Dir. Família e Sucessões. Advogada, Professora titular da UNIMES. Diretora do IBDFAM Santos, Coordenadora da Comissão de Estudos em Direito de Família e Sucessões do IBDFAM/Santos e Membro da International Society of Family Law.
“Vivemos tempos líquidos, nada hoje é para durar”.
Zygmunt Bauman
Na nossa sociedade, a velocidade das coisas tornou-se assustadora para algumas gerações, quem nasceu ainda no século XX já se sente incapaz de acompanhar a todas as mudanças, veja que falo agora não é sobre algo diretamente ligado às novas tecnologias, e sim sobre o instituto social mais antigo, a família!
A origem da família segue um mistério, Fustel de Coulanges[1] acredita que sua origem é ligada diretamente à religião doméstica e não no afeto natural de seus membros e, nesse sentido, seguem outros tantos, mas independente se a família surge a partir de uma religião ou se ainda ela surge afinada com a origem da própria sociedade, do Estado, como pensa Dallari[2], é certo que desde os primórdios a família se sustenta dentro de uma base social, que no passado já foi definida como sendo o conjunto de escravos, servos, gens[3] e cognados, todos submetidos ao poder do pater familias e, hoje, já temos outras bases de construção familiar.
O estereótipo construído no passado, o qual colocou gerações e gerações de mulheres sob julgo de maridos, que foi reafirmado incansavelmente pela teledramaturgia, repisando a lenda: “famílias felizes são aquelas formadas por pai, mãe e filhos”, deixando de fora da prometida “felicidade” as demais famílias que não se adequam ao estereótipo social, já está desacreditado.
Claro que, na atualidade, ainda temos mães, pais, filhos, irmãos e avós, mas a família do passado, com forte característica patriarcal (principalmente na América latina) cujo homem era visto como detentor do poder, apoiado no baluarte econômico, desde o fim da segunda grande guerra, padece de adeptos.
Hoje, fala-se em Direito das famílias de modo plural e ampliado, não apenas aquela formada dentro do estereótipo, a família pós-moderna vai além do vínculo biológico, ela é formada pelo vínculo afetivo, tendo inúmeras variações, seja as constituídas por mães ou pais solteiros, famílias formadas por novos casamentos, agregando filhos de casamentos anteriores e filhos do novo casal, casamentos entre indivíduos do mesmo gênero etc.
Porém, uma coisa ainda permanece estável desde Ruy Barbosa “a família em si é a célula mater da sociedade”, e sendo ela a principal responsável pela sua construção e transformação, apesar de estar sob o manto protetivo da Constituição Federal, também é afetada pela aceleração da tecnologia, que migra cada vez com maior intensidade para o ambiente familiar.
Já foi noticiado na França[4] e na China[5] pessoas propondo casamento com robôs e hologramas[6], no Japão[7] também recentemente saiu notícias de homens que encomendavam robôs com a estética igual da esposa e depois pediam o divórcio da esposa para ficar com os robôs.
Mas este fato em si não é tão preocupante, alinho-me a Aristóteles quando afirma que os homens são seres sociais e, por isso, a era dos robôs não nos afastará de relacionamentos entre humanos.
O que tem gerado preocupação é a notícia sobre o novo tipo de negócio que está aquecendo o mercado japonês: o aluguel de pais, maridos, filhos e noivos. Em resumo, o aluguel de “personagens de uma família”, a fim de compor uma vida fictícia para agradar aquela parte da sociedade que não aceita relacionamentos diferentes daqueles “estereótipos tradicionais”.
Quem montou a agencia foi o empresário e ator Yuichi Ishii, a agência conta hoje com dois mil atores[8], os quais são contratados para desempenhar papéis de familiares e amigos, e inclusive Yuichi também atua como pai de aluguel de uma menina, há nove anos. Ao falar sobre o papel de sua agencia o empresário/ator defende seu negócio como um serviço de extrema necessidade para a sociedade japonesa.
Imediatamente lembrei do texto de Zygmunt Bauman[9] que trata do amor líquido, o autor descreve que os relacionamentos afetivos na pós-modernidade estavam temperados pelo que ele chamou de “amor líquido” ou seja, relacionamentos instáveis, sem forma ou substância, efêmeros, em que o amor é tão transitório e, neste contraponto, passei a refletir sobre a fragilidade dos relacionamentos modernos.
Vejam, se afeto em nosso ordenamento é reconhecido como um valor jurídico tão forte, capaz de desfazer vínculos biológicos entre familiares, a fim de trazer à tona a realidade dos vínculos familiares sob a ótica do afeto, este tipo de “negócio familiar”, praticado no Japão, não pode ser visto com naturalidade, sem qualquer tipo de crítica social.
Naturalmente surge o questionamento: Quem adoeceu, a sociedade que insiste em cobrar o estereótipo de pessoas para se enquadrarem em suas expectativas, ou as famílias que adoeceram a ponto do abandono afetivo paterno/materno gerar a necessidade do aluguel de pai ou mãe para estancar a dor da ausência, sem acreditar na possibilidade humana da resiliência e da superação?
Inclino-me a acreditar que ambos adoeceram, é certo que teremos que repensar, sobre o papel das “expectativas sociais” e das novas tecnologias nos relacionamentos familiares, para, com isso, buscarmos a nossa real felicidade, o que só será possível pela revalorização das relações humanas. Não podemos aceitar a “Família líquida” como a mais adequada para compor o papel social esperado, é necessário persistir na luta pela defesa do afeto em todas as suas dimensões, inclusive na pós-modernidade.
E neste sentido, se ratifica a importância do IBDFAM também no Japão, que representa uma esperança aos que padecem, visto que corajosamente leva a possibilidade do debate e da reflexão pela necessidade do respeito a Dignidade da Pessoa Humana, inclusive no momento de atender a padrões sociais.
Artigo publicado no Portal Magis em 13.02.2022, na Coluna “Família aos bocados”
Link: https://magis.agej.com.br/familia-pos-moderna-sera-que-estamos-entrando-na-era-da-familia-liquida/
[1] COULANGES DE FUSTEL, Numa Denis. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. 2ª ed. Bauru: Edpro, 1999, p. 36.
[2] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p 54.
[3] Gens: o conjunto de agnados (os submetidos ao poder do pater familias, em decorrência de casamento cum manu) e os cognados (parentes pelo lado materno).
[4] Disponível em: https://curiosamente.diariodepernambuco.com.br/project/mulher-fica-noiva-de-robo-que-ela-mesma-projetou-na-franca/
[5] Disponível em: https://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/engenheiro-chines-se-casa-com-mulher-robo-construida-por-ele-mesmo.ghtml
[6] Disponível em: https://noticias.r7.com/internacional/japones-se-casa-com-holograma-em-cerimonia-de-r-67-mil-14112018
[7] Disponível em: https://coisasdojapao.com/2018/03/homem-se-apaixona-por-boneca-e-troca-a-esposa-no-japao/
[8] Disponível em: https://inews.co.uk/news/world/relatives-for-hire-family-romance-fake-actors-japanese-business-loneliness-232622
[9] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 7.
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