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O novo casamento contraído pela viúva e suas implicações ao direito real de habitação: entre a liberdade para amar e o eterno luto ao falecido
CUNHA[1], Leandro Barbosa da.
O direito real de habitação previsto pela regra do art. 1.831 do Código Civil em favor do cônjuge ou companheiro supérstite se materializa quando o lar conjugal figura como único imóvel a inventariar, de modo que seus principais efeitos jurídicos são manter o consorte sobrevivente no local onde vivia com o falecido, bem como preservar as memórias afetivas que ali foram construídas[2]. Apesar de ser aplicável tanto a homens quanto a mulheres, o direito real de habitação foi originalmente concebido sobretudo para garantir à viúva – que figura como beneficiária, na maioria dos casos – a moradia de forma vitalícia e em condições dignas juntamente aos seus familiares.
Não obstante a aparente simplicidade que o direito real de habitação possui, a regra do art. 1.831 do Código Civil pode vir a apresentar aos juristas graves dificuldades a depender do contexto fático. Afinal, seria idílico acreditar que o legislador, no momento da elaboração da lei, conseguiria prever todas as devidas hipóteses de incidência da norma, pois a adequação das regras e princípios se trata de uma tarefa que, por decorrência da vedação do non liquet e da inafastabilidade da jurisdição, incumbe ao Poder Judiciário por meio da análise individual das demandas que a ele forem submetidas.
Neste sentido, suponha-se que uma viúva, após dez dolorosos anos da perda de seu marido, e ainda habitando a única residência que serviu de lar para o casal, tenha decidido se casar mais uma vez, porém com um homem que conhecera há alguns anos e que, não obstante não pudesse suprir a ausência do de cujus, tornou-se uma pessoa outrossim especial na vida dela. Após celebrado o tão festejado matrimônio, talvez alguns filhos do de cujus não se sintam confortáveis em saber que a mãe passara a residir no lar do falecido pai com outro homem – por considerarem que isso seria um desrespeito –, enquanto outros, felizes com o casamento, podem eventualmente apoiar a mãe em sua nova fase amorosa.
Se, porventura, os descendentes que não concordam com o matrimônio almejarem que a mãe perca o direito real de habitação que possui em relação ao lar do falecido, e, para tanto, decidam por ingressar judicialmente em busca de concretizar tal pretensão, por certo que surgirá ao juiz o impasse de decidir se a celebração de um novo casamento por parte da viúva seria um fato jurídico apto a ensejar a perda do direito de moradia, até então existente sobre o imóvel, ou, se, ao contrário, ainda poderia continuar a nele residir de forma vitalícia.
Com base na situação hipotética que foi narrada acima, é possível observar que se trata de uma questão complicada. Afinal, em vista de que o referido direito se destina a assegurar não só a moradia, mas, sobretudo, proteger as memórias afetivas que foram engendradas na residência durante o convívio familiar com o falecido, há de se considerar que o casamento posterior ao óbito constituirá uma nova família em relação à qual o de cujus, naturalmente, nunca pertenceu quando em vida.
Por outro lado, se é certo que a até então viúva terá, após o matrimônio, um marido (ou esposa) – além de criar vínculos de afetividade com seus parentes –, também é inegável que o advento de uma nova família não implica numa ruptura total com aquela anteriormente constituída. Isso porque o de cujus pode ter deixado filhos em comum com a viúva, ou mesmo outras pessoas que conviviam com o casal e que eram igualmente importantes em termos de afetividade, de modo que as memórias construídas na residência do falecido ainda se mostrem valiosas não só para a viúva como também os outros familiares que viviam no local.
Como é possível notar, a referida vexata quaestio não possui uma resolução simples. O tema parece ter se tornado ainda mais relevante em face do cenário pandêmico que surgiu no Brasil desde o ano de 2020, haja vista que, devido ao elevado número de mortes que ocorreram, é provável que muitas pessoas perderam seus maridos e esposas – além de outros entes queridos. Contudo, apesar de a morte ser um evento traumático na vida de muitos indivíduos, é certo que ela nem sempre provoca em todos uma aversão suficiente a ponto de impossibilitar o surgimento de um novo amor, ou, sobretudo, de outro matrimônio.
Para agravar ainda mais a controvérsia no que tange ao novo matrimônio da viúva, a redação do art. 1.831 do Código Civil em nada ajuda para resolver a problemática, de modo que vexata quaestio ficou a cargo da doutrina a da jurisprudência. Mesmo assim, ainda não foi possível sedimentar uma resposta definitiva e absoluta sobre o tema.
Ao contrário do que ocorre no presente, no modelo oitocentista, dispunha a regra do parágrafo primeiro do art. 1.611 do Código Civil de 1916 que: “O cônjuge viúvo se o regime de bens do casamento não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filho deste ou do casal, e à metade se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do ‘de cujus’.”. Ou seja, diferente da Lei n.º 10.406/2002, o antigo Códex dispunha expressamente que o direito real de habitação só duraria até a cessação do estado de viuvez – que ocorreria com ou com a morte, ou com advento de novo matrimônio.
Em razão de a lei ter disposto expressamente sobre o tema, à época, não se originaram maiores dúvidas acerca da interpretação do dispositivo. Por outro lado, com a positivação do Código Civil de 2002, considerando que foi suprimida a previsão do antigo § 1º do art. 1.611, surgiram controvérsias acerca da continuidade da proibição de novo casamento para fins de permanência do exercício da moradia decorrente do direito real de habitação. Neste sentido, é possível encontrar juristas que se posicionaram no sentido de que a regra jurídica anterior que propunha o término do referido direito no caso de novo casamento ainda se faz presente no atual ordenamento jurídico brasileiro:
O novo Código Civil, no art. 1.831, assegura ao cônjuge viúvo o direito real de habitação, qualquer que seja o regime de bens. Interessante, porém, observar que, apesar de continuar sendo previsto o direito real de habitação, nada se menciona sobre o momento da cessação dessa situação na hipótese de o cônjuge viúvo se casar novamente ou constituir vida em comum com outra pessoa. De qualquer modo, nada leva a crer que o novo texto receberá interpretação diversa daquela existente à luz do art. 1.611, § 2º. do Código Civil de 1916. (WALD, 2009, p. 94).
Para tal corrente, a constituição de novo casamento por parte da viúva demonstraria que ela possui condições econômico-financeiras para fornecer a mínima subsistência para a família que se formou – sobretudo porque, via de regra, as despesas tendem a ser repartidas entre os consortes, de modo a aumentar o poder aquisitivo da família. Como consequência de tal raciocínio, o direito real de habitação não mais seria necessário, porquanto ambos cônjuges poderiam usar de seus patrimônios para adquirir outro local de moradia para que se torne o novo núcleo espacial da família.
Haveria também a possibilidade de traçar outro argumento contrário à permanência da outrora viúva no imóvel do de cujus, que é o fato de que a celebração de novo matrimônio implicaria numa espécie de “desrespeito” às memórias do falecido ao permitir que ela conviva com outro homem na mesma residência que serviu de lar conjugal. É certo que o de cujus, pelo menos a princípio, não poderia se sentir juridicamente ofendido em razão de estar morto, porém seus vários parentes e amigos poderiam entender que a permanência da viúva no local implicaria numa espécie de vilipêndio à honra do falecido.
Com o devido respeito às opiniões contrárias, entende o presente autor que nenhum dos argumentos expostos acima merece prosperar. De início, não se pode perder de vista que o direito real de habitação possui natureza real, conforme aponta a regra do art. 1.225, VI, do Código Civil. Em razão disto, vigora em relação a ele o princípio da tipicidade, isto é, deve-se dar uma atenção maior à literalidade do dispositivo, porquanto tais faculdades jurídicas possuem, via de regra, oponibilidade erga omnes, demandando que as hipóteses que tratem sobre o surgimento (e, por paralelismo das formas, sobre a extinção) do direito real estejam previstas de maneira expressa na lei. Ou seja, o princípio da tipicidade deve ser entendido:
como manifestação específica da legalidade no campo do direito das coisas, i.e., os direitos reais precisam estar normativamente previstos (CC/16, art. 674 e CC/02, art. 1.225); só existem, os direitos reais, como tais, se a situação enquadrar-se rigorosamente na regra de direito - subsumindo-se aos respectivos elementos definitórios - que os prevê. (ALVIM NETO, 2006, p. 178).
Ora, ao observar que o legislador voluntariamente retirou a previsão do § 1º do art. 1.611 do Código Civil de 1916, subentende-se que a mens legis foi a de suprimir a vedação constante alhures, já que, se desejasse manter a cessação da viuvez como fato jurídico ensejador do término da eficácia do direito real de habitação, tê-lo-ia feito expressamente tal como o fez outrora. O simples ato de suprimir a redação demonstra o claro intuito de remover a regra até então existente no ordenamento jurídico brasileiro (SCHREIBER et al, 2020), de modo que, no cenário contemporâneo, entende a maior parte da doutrina que o referido direito só se extingue, em termos naturais, com a morte da viúva.
Em sentido semelhante, o TJMG vem ressaltando que, como a regra do art. 1.416 do Código Civil determina que são aplicáveis à disciplina do direito real de habitação as regras relativas ao usufruto, não mais subsiste como causa extintiva o ato de cessar a viuvez, como é possível perceber pela leitura da seguinte ementa:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE IMISSÃO DE POSSE - DIREITO REAL DE HABITAÇÃO - NOVO CASAMENTO - AUSÊNCIA DE CAUSA EXTINTIVA - SENTENÇA MANTIDA.
- Nos termos do artigo 1.831 do Código Civil, é assegurado ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação, cujas causas de extinção são as mesmas previstas para o usufruto. Inteligência do art. 1.416 c/c o art. 1.410 ambos do CC/2002. Portanto, o fato de o cônjuge supérstite ter contraído novo matrimônio não acarretou a extinção do direito de permanecer residindo no imóvel.
(Tribunal de Justiça de Minas Gerais TJ-MG - Apelação Cível : AC 10000181350372001 MG, Publicado em 12/04/2019)
Ao se referir à redação do art. 1.831 do Código Civil, o TJMG salientou no aludido acórdão que: “Com efeito, o dispositivo legal acima indicado não estabelece qualquer ressalva, inclusive quanto à possibilidade de novo casamento, e, sendo assim, o fato de a autora ter constituído novo matrimônio em 2013 não acarretou a extinção do direito real de habitação. Isso porque, a teor do art. 1.416 do Diploma Civil, as causas de extinção do direito real de habitação são as mesmas do usufruto”.
É verdade que algumas causas de extinção do referido direito real de habitação não se encontram expressamente escritas, mas derivam de sua própria natureza, como num hipotético caso em que a viúva nunca tenha morado com o de cujus e, mesmo assim, decida pleitear o direito à moradia sobre o único imóvel dele. Claramente, a pretensão deveria ser indeferida, pois não houve construção de memórias afetivas no referido lar, razão pela qual não seria atingido o objetivo proposto pela regra do art. 1.831 do Código Civil, embora a situação narrada atenda à sua literalidade – porém não à finalidade social, nos termos da regra do art. 5º da LINDB, que exige do intérprete um esforço hermenêutico-teleológico.
Também desfiguraria o referido direito se, porventura, após se casar com outro nubente, a outrora viúva optasse por se mudar geograficamente para o domicílio do marido e, de forma simultânea, desejasse manter o direito à moradia quanto à casa do de cujus para usá-la apenas durante as férias. Ora, neste caso, a aplicação da regra do art. 1.831 do Código Civil mostrar-se-ia despicienda ante o nítido abuso de direito. Tal situação, contudo, distingue-se sensivelmente e passa ao largo do ato de celebrar um novo matrimônio, porquanto:
A intenção manifesta do legislador – via direito real de habitação – não é punir, ou suprimir direitos do cônjuge sobrevivente (como ocorria anteriormente, fazendo depender o benefício da manutenção da viuvez), mas sim, proteger os membros da família, assegurando-hes o direito de habitação, quando ele é o único imóvel daquela natureza a inventariar. (LEITE, 2002, p. 116).
Justamente por isso, não parece que o Código Reale tenha pretendido manter a regra do modelo oitocentista em seu espírito normativo, pois, além de a ter suprimido da redação, condicionar o direito à moradia ao estado de viuvez implicaria em obrigar a viúva a permanecer em um luto eterno (HIRONAKA, 2004, p. 247), de modo a lhe exigir fidelidade atemporal para com o de cujus. Com a devida vênia às respeitáveis opiniões contrárias, pensa o presente autor que o discurso por trás da imposição da viuvez reflete os resquícios de uma cultura patriarcal e machista que visa a oprimir os sentimentos e a liberdade da mulher.
Também não prospera o argumento de que a celebração de novo matrimônio evidencia a desnecessidade do instituto do direito real de habitação devido à soma dos patrimônios dos consortes. Afinal, sob a égide da constitucionalização das relações jurídico-privadas, não é concebível que o direito elencado pela regra do art. 1.831 do Código Civil seja visto apenas como um meio de garantir a moradia, haja vista que, conforme já explicado anteriormente, visa-se a resguardar sobretudo as memórias afetivas associadas ao lar conjugal, motivo pelo qual não faz sequer sentido, ante tal ratio legis, cogitar que o eventual somatório dos patrimônios retire o direito real de habitação da viúva.
Ademais, considerando principalmente o atual contexto pandêmico que impactou nas finanças de milhões de brasileiros, seria ingenuidade acreditar que a eventual constituição de novo matrimônio demonstraria a existência de recursos suficientes para custeio da família, haja vista que muitas pessoas realizam empréstimos financeiros ou dilapidam grande parte do patrimônio para realizar o casamento, de modo que ficam, durante anos, endividadas após a realização das cerimônias necessárias para o ato.
Nenhum outro imóvel, ainda que mais requintado ou mais bem avaliado em termos de pecúnia, guardará a mesma carga empírica que a residência que serviu de palco para as vivências familiares quando ainda era vivo o autor da herança. Na medida em que a viúva e seus eventuais filhos sempre serão parte da família do de cujus, ainda que ela venha a contrair matrimônio, não se desfaz a família anteriormente constituída, nem muito menos a carga emocional que se faz presente no imóvel, porque ela se conservará enquanto vivos forem os amigos e parentes do de cujus.
Ao contrário de desrespeitar a “honra do falecido”, a permanência da viúva, de seus filhos, e do eventual novo cônjuge, contribui para manter acesas todas as boas lembranças que a família teve com o de cujus no imóvel, somando-se com as que se engendrarão das interações entre a antiga e a nova família, mas sem que isso implique na supressão das memórias associadas ao falecido. Sendo assim, haverá, ao final, não apenas a preservação do direito à moradia, mas, sobretudo, da dignidade e da continuidade da família do de cujus.
Em razão disto, tampouco se mostra relevante que o consorte atual seja proprietário de outros imóveis, ou que possua dinheiro suficiente para adquirir mansões, porque a regra do art. 1.831 do Código Civil apenas exige que o imóvel do autor da herança seja de fato o único a inventariar. Materializado o suporte fático de tal dispositivo, não restará óbice para que ocorra sua incidência, dada a raiz história do direito real de habitação em ser um plus para que os aspectos sucessórios não se reduzam a termos patrimoniais:
Além dessas disposições regulando a sucessão, em propriedade, do cônjuge sobrevivente, há o art. 1.831 do Código Civil, que lhe assegura, qualquer que seja o regime de bens, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar. O legislador quer preservar as condições de vida, o ambiente, as relações, enfim, evitar que a viúva ou o viúvo tenha de se mudar, de ser privado de sua moradia. (RODRIGUES, 2002, p. 116).
Isso não significa, entretanto, que a viúva que contraiu novo matrimônio deverá ter o direito real de habitação em toda e qualquer hipótese. Primeiramente, conforme o brocardo do tempus regit actum, é de suma importância verificar a data da abertura da sucessão, pois, se tiver ocorrido ainda na vigência do Código Beviláqua, aplicar-se-ão as disposições relativas ao direito real de habitação que constavam da lei anterior. Logo, em tal hipótese, admitir-se-ia que a cessação da viuvez devido a novo casamento viesse a ser causa extintiva do direito real de habitação assim como era no passado.
Embora não pareça ser este o caminho mais adequado do ponto de vista do paradigma da Constituição Federal de 1988, trata-se de questão que é atinente ao Direito Intertemporal e à segurança jurídica, razão pela qual, embora não mais vigente o Código Civil de 1916, ocorre a ultraeficácia da regra de seu art. 1.611, § 1º. O mesmo entendimento vem sendo partilhado pelo Superior Tribunal de Justiça ao lidar com situações nas quais a sucessão fora aberta quando ainda vigia a legislação revogada, conforme evidencia a seguinte ementa:
DIREITO DAS SUCESSÕES. RECURSO ESPECIAL. SUCESSAO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. DIREITO DE USUFRUTO PARCIAL. ART. 1.611, 1º. DIREITO REAL DE HABITAÇAO. ART. 1.831 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INAPLICABILIDADE. VEDAÇAO EXPRESSA DO ART. 2.041 DO NOVO DIPLOMA. ALUGUÉIS DEVIDOS PELA VIÚVA À HERDEIRA RELATIVAMENTE A 3/4 DO IMÓVEL.
1. Em sucessões abertas na vigência do Código Civil de 1916, a viúva que fora casada no regime de separação de bens com o de cujus, tem direito ao usufruto da quarta parte dos bens deixados, em havendo filhos (art. 1.611, 1º, do CC/16). O direito real de habitação conferido pelo Código Civil de 2002 à viúva sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens do casamento (art. 1.831 do CC/02), não alcança as sucessões abertas na vigência da legislação revogada (art. 2.041 do CC/02).
2. No caso, não sendo extensível à viúva o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do atual Código Civil, os aluguéis fixados pela sentença até 10 de janeiro de 2003 - data em que entrou em vigor o Estatuto Civil -, devem ser ampliados a período posterior.
3. Recurso especial provido.
(REsp n. 1.204.347/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 2/5/2012)
Em julgado mais recente, de igual modo decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE COTAS CONDOMINIAIS. SUCESSÃO. ABERTURA. CÓDIGO CIVIL DE 1916. DESCENDENTES. EXISTÊNCIA. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. HERDEIRA. NÃO CONFIGURAÇÃO. IMÓVEL. AQUISIÇÃO. ANTERIOR AO CASAMENTO. PROPRIEDADE EXCLUSIVA DO FALECIDO. MEAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PARCELAS VINCENDAS DEVIDAS. CURSO DO PROCESSO. FINAL DA RELAÇÃO OBRIGACIONAL. ART. 557 DO CPC/1973. OFENSA. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. A controvérsia a ser dirimida no recurso especial reside em verificar se (i) em ação de cobrança de cotas condominiais o cônjuge sobrevivente é parte legítima para figurar no polo passivo da demanda, porquanto não ostenta a qualidade de herdeira do falecido, proprietário do imóvel em discussão, e (ii) se são devidas as parcelas vencidas no curso do processo, inclusive aquelas em data posterior à prolação da sentença.
3. Na hipótese, o imóvel foi adquirido exclusivamente pelo falecido em data anterior ao casamento contraído sob o regime de separação parcial de bens com o cônjuge supérstite. Nessa condição, a viúva não possui direito à meação do bem, que não se comunica entre os nubentes.
4. A questão sucessória deve ser dirimida pela lei vigente à época da abertura da sucessão, no caso, o Código Civil de 1916.
(...)
8. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido que, na ação de cobrança de cotas condominiais, são devidas todas as parcelas que se vencerem no curso do processo, durante todo o período que perdurar a relação obrigacional, por se tratarem de prestações periódicas, nos termos do art. 290 do Código de Processo Civil de 1973.
9. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.
(REsp n. 1.704.579/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 7/12/2018)
No mesmo sentido é a doutrina de Nelson Rosenvald:
A lei de toda e qualquer sucessão é a lei da data do óbito. Assim, todos os óbitos verificados antes de 11.01.2003 seguem as regras sucessórias do Código Civil de 1916, mesmo que a partilha seja ultimada tempos depois da vigência da nova lei civil. O registro da sentença que ultima o inventário é ato meramente declaratório de uma aquisição que já se deu de pleno iure com o óbito. A lei nova não pode retroagir para capturar as sucessões anteriores ao Código Civil de 2002 - mesmo no período de vacatio legis - sob pena de malferir a garantia fundamental dos sucessores ao direito adquirido e incorporado ao seu patrimônio ao tempo da legislação revogada. Enfim, o aspecto temporal é fundamental na sucessão, sobremaneira diante das severas modificações da ordem de vocação hereditária no Código Civil de 2002 em favor do cônjuge (art. 1.829 c/c o art. 1.845 do CC)”. (ROSENVALD, 2008, p. 2.153).
Para além da data de abertura da sucessão, outro ponto fundamental – e que é pouco explorado pela doutrina quando o assunto é direito real de habitação – diz respeito ao contexto no qual o de cujus não era marido, mas companheiro da viúva. Isso porque, não obstante a Constituição Federal de 1988 busque proteger a união estável como unidade familiar, e apesar de o companheiro sobrevivente também ter direito real de habitação, não é correto inferir que se trate a união estável no ordenamento jurídico brasileiro de forma idêntica ao casamento no tocante aos direitos, pois, pelo princípio da especificidade, aplica-se à união estável a Lei n.º 9.278/1996, a qual, como se sabe, permanece vigente nos dias atuais.
Segundo a regra do parágrafo único do art. 7º da referida lei especial: “Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família”. Ou seja: ao contrário do que ocorre com o art. 1.831 do Código Civil, o legislador, ao elaborar a Lei n.º 9.278/1996, manteve a norma segundo a qual o término da viuvez extingue o direito real de habitação[3].
Por força da tipicidade, neste caso, continua a incidir o desmantelamento do direito real de habitação da viúva caso esta tenha contraído matrimônio após a data do óbito de seu companheiro – e isso independentemente do momento da abertura da sucessão, porquanto, ainda que sob a égide da Lei n.º 10.406/2002, trata-se de específico regramento correlato à união estável. Assim tem entendido o Superior Tribunal de Justiça, aliás, há quase dez anos:
DIREITO CIVIL. SUCESSÃO. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. POSSIBILIDADE. VIGÊNCIA DO ART. 7° DA LEI N. 9.278/96. RECURSO IMPROVIDO.
1. Direito real de habitação. Aplicação ao companheiro sobrevivente. Ausência de disciplina no Código Civil. Silêncio não eloquente. Princípio da especialidade. Vigência do art. 7° da Lei n. 9.278/96 Precedente: REsp n. 1.220.838/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012.
2. O instituto do direito real de habitação possui por escopo garantir o direito fundamental à moradia constitucionalmente protegido (art. 6º, caput, da CRFB). Observância, ademais, ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. art. 1º, III, da CRFB).
3. A disciplina geral promovida pelo Código Civil acerca do regime sucessório dos companheiros não revogou as disposições constantes da Lei 9.278/96 nas questões em que verificada a compatibilidade. A legislação especial, ao conferir direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, subsiste diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal direito àqueles que convivem em união estável. Prevalência do princípio da especialidade.
4. Recurso improvido.
(REsp 1156744/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 18/10/2012)
No mesmo sentido já decidiu o TJDFT, conforme é perceptível no acórdão abaixo, proferido um ano após a decisão-paradigma do STJ:
CIVIL. USUFRUTO. SUCESSÃO ABERTA NA VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. CÔNJUGE SOBREVIVENTE E HERDEIROS DO FALECIDO. CONDENAÇÃO EM ALUGUÉIS. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. LEI 9.278/96.
1. O art. 7º da Lei 9.278/96 determina que "Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família".
2. O direito real de habitação restou positivado em 1996, assegurando ao cônjuge sobrevivente o usufruto do imóvel independentemente do pagamento de aluguel.
3. Recurso desprovido.
(Acórdão n.713842, 20110110897920APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revisor: NÍDIA CORRÊA LIMA, 3ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 24/07/2013, Publicado no DJE: 25/09/2013. Pág.: 135 – grifo nosso)
Ademais, o mesmo TJDFT, em recente julgado proferido no dia 09 de fevereiro de 2021, reiterou o entendimento de que, ainda que a abertura da sucessão tenha se dado após o advento do Código Civil de 2002, continua a incidir a inteligência do parágrafo único do art. 7º da Lei n.º 9.278 de 1996, conforme o seguinte trecho do acórdão proferido nos autos do Processo n.º 0718246-04.2018.8.07.0001, oportunidade na qual a 8ª Turma Cível salientou que: “(...) Por outro lado, o fato da ré ter contraído novo casamento, em 02.08.2018, obsta o seu direito real de habitação, conforme expressa previsão do parágrafo único do art. 7º da Lei 9.278/96”.
Não obstante o direito real de habitação guarde em si razões constitucionais e afetivas de proteção da dignidade familiar e das memórias do lar conjugal, não podem restar olvidados os princípios da tipicidade e da especificidade no que concerne ao parágrafo único do art. 7º da Lei n.º 9.278/1996 – do que se pode concluir que a viúva que mantinha união estável e que contraia novo casamento perde o direito de habitar o antigo lar do falecido –, nem os aspectos da temporalidade quanto à abertura da sucessão. No mais, observa-se que, não havendo abuso de direito por parte da viúva, ainda que venha a celebrar novo matrimônio após falecimento de seu esposo, não ocorrerá prejuízo sob o ponto de vista do direito real de habitação contanto que ela permaneça no imóvel nos estritos fins de habitação.
Ante o exposto, é possível verificar que a “liberdade para amar” não pode se converter em abuso do direito real de habitação – sob pena de desconfigurá-lo –, todavia também não se deve exigir da viúva o eterno luto ao de cujus, de modo que é perfeitamente possível que ela venha a contrair novo matrimônio com outro nubente sem que isso implique necessariamente na perda do direito previsto pelo art. 1.831 do Código Civil. Preenchidos os pressupostos materiais de tal dispositivo, adquire a viúva, por conseguinte, o direito de exercer a habitação no antigo lar conjugal de maneira vitalícia. Mesmo assim, não será despicienda a análise individualizada pelo Juiz de cada caso concreto visando a verificar se a moradia atenderá às finalidades da norma, conforme dispõe a inteligência do art. 5º da LINDB.
Referências Bibliográficas
ALVIM NETO, José Manoel de Arruda. Princípios Gerais do Direito das Coisas: Tentativa de Sistematização. Atualidades de Direito Civil. V. I. Coord. Angélica Arruda Alvim e Everaldo Augusto Cambler. Curitiba: Juruá, 2006.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família [do Instituto Brasileiro de Direito de Família]. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil: direito das sucessões. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
ROSENVALD, Nelson. Código Civil Comentado. Coordenador: PELUSO, Cezar. 2ª edição. Barueri/SP: Editora Manole, 2008.
SCHREIBER, Anderson. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
WALD, Arnoldo. Direito Civil: Direito das Sucessões. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] Advogado, Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (CEUB) e Pós-Graduando em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
[2] Acerca da natureza jurídica do direito real de habitação e de seus pormenores, confira-se o artigo disponível no site do Portal do IBDFAM e que também foi escrito pelo presente autor, conforme o link a seguir: < https://ibdfam.org.br/artigos/1755/O+direito+real+de+habita%C3%A7%C3%A3o+do+c%C3%B4njuge+sup%C3%A9rstite+e+o+desfazimento+do+condom%C3%ADnio+entre+os+herdeiros%3A+a+primazia+da+dignidade+humana+no+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+das+Sucess%C3%B5es>. Acesso em 11/01/2022.
[3] Para o presente autor, a regra do parágrafo único do art. 7º da Lei n.º 9.278/1996 não guarda conformidade com o atual parâmetro constitucional, mas, considerando que a norma ainda não foi objeto de controle pelo Supremo Tribunal Federal, entende-se que ela continua a produzir efeitos até que seja declarada sua inconstitucionalidade. Por isso, embora haja discordância quanto ao seu conteúdo, é imperioso considerar que ela ainda é aplicável.
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