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É possível proceder ao inventário extrajudicial com herdeiro incapaz?
Izaura Fabíola Lins de Barros Lôbo Cavalcanti*
O presente trabalho tem como ponto central estudar o inventário extrajudicial com herdeiro incapaz, demonstrando que a interpretação literal da letra de lei do artigo 610, caput, do Código de Processo Civil (CPC) vai de encontro ao escopo da Lei nº 11.441/2007 e do próprio espírito do Novo CPC, que é a desjudicialização. Impor o inventário judicial quando há incapaz causa efeitos deletérios aos herdeiros e aos demais interessados. É necessário alterar o texto do artigo supramencionado para que o inventário extrajudicial com herdeiro incapaz possa ser realizado em todo o Brasil. Todavia, enquanto a alteração não é realizada, segundo o Projeto de Lei de Desburocratização, PL 217/2018, diversas Corregedorias-Gerais de Tribunais de Justiça têm relativizado a regra e promovido o caminho da desjudicialização. A proposta deste trabalho é mostrar que o herdeiro incapaz não deve ser empecilho para o inventário administrativo, uma vez que a sua realização traz diversas repercussões positivas para todos os envolvidos e não causa prejuízo ao herdeiro incapaz, além de contribuir com o descongestionamento das demandas do Poder Judiciário. Portanto, foi utilizado o método hipotético-dedutivo, o procedimento da pesquisa bibliográfica, abordagem qualitativa e objetivo descritivo, finalidade aplicada, com o intuito de alcançar o objetivo almejado.
PALAVRAS-CHAVES: Desjudicialização. Inventário Extrajudicial. Herdeiro Incapaz. Artigo 610, caput, do CPC.
ABSTRACT
The present work has as its central point to study the extrajudicial inventory with an incapable heir, demonstrating that the literal interpretation of the letter of law of article 610, caput, of the Code of Civil Procedure (CPC) goes against the scope of Law No. 11.441/2007 and of the very spirit of the New CPC, which is extrajudicial procedure. Imposing the judicial inventory when there is incapable causes harmful effects to the heirs and other interested parties. It is necessary to chance the text of the aforementioned article so that the extrajudicial inventory with an incapable heir can be carried out throughout Brazil. However, while the change is not carried out, according to the Bill of Bureaucratization, PL 217/2018, several Internal Affairs-General of Courts of Justice have relativized the rule and promoted the path of extrajudicial procedure. The purpose of this work is to show that the incapable heir should not be an obstacle to the administrative inventory, since its realization brings several positive repercussions for all involved and does not harm the incapable heir, in addition to contributing to the decongestion of the demands of the Judicial power. Therefore, the hypothetical-deductive method was used, the bibliographical research procedure, qualitative approach and descriptive objective, applied purpose, in order to reach the desired objective.
KEYWORDS: Extrajudicial Procedure. Extrajudicial Inventory. Incapable Heir. Article 610 of the CPC.
INTRODUÇÃO
Os anseios da sociedade por uma justiça mais célere, eficiente e sem burocracia vêm sendo tema de debates e discussões há anos, pelos operadores do direito. A busca por um Poder Judiciário que atenda de forma satisfatória às necessidades da sociedade contemporânea passa pela mudança do sistema que deixa a exclusividade e apresenta uma via alternativa como forma de amenizar o colapso na esfera judicial. Diante de inúmeras ações que são propostas judicialmente pela sociedade que vem de uma cultura do litígio, disponibilizar uma maneira de se resolver as demandas de forma consensual reduz o congestionamento no Judiciário, diminui a morosidade, afasta as desavenças e aumenta a eficiência do sistema.
Nessa esteira, o herdeiro incapaz não deve se empecilho para que o inventário seja realizado de forma extrajudicial. É necessário relativizar a norma de maneira que se autorize aos Cartórios de Notas produzirem escrituras públicas de inventário e partilha com herdeiro incapaz, proporcionando aos interessados a opção de escolher entre essa modalidade, célere, consensual, eficiente e econômica, ou a via judicial que, na maioria das vezes, se apresenta morosa, litigiosa e de alto custo.
O trabalho se propôs a responder à seguinte questão: É possível proceder ao inventário extrajudicial com herdeiro incapaz? Essa pergunta será respondida com base em todo o arcabouço pesquisado para a produção deste trabalho.
Diante de tudo o que foi analisado, fez-se possível constatar que o inventário extrajudicial com herdeiro incapaz é um tema recente, com um vasto campo de discussão e debate pelos operadores do Direito. E que existe o Projeto de Lei do Senado nº 217, de 2018, em andamento, para normatizar o tema e suprir a omissão deixada pela Lei nº 11.441/07.
A temática envolvendo herdeiro incapaz, recentemente levantada devido à decisão inovadora do magistrado da comarca de Leme em São Paulo, não é praticada nas serventias extrajudiciais justamente porque faltam normativas estaduais para regulamentar a permissão. Relativizar tal exigência, resulta num grande avanço para a desjudicialização e incentivando a jurisdição voluntária.
É POSSÍVEL PROCEDER AO INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL COM HERDEIRO INCAPAZ?
Recentemente essa problemática foi apresentada ao tabelião Thomas Nosch Gonçalves, do Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP). O tabelião foi pioneiro em realizar inventário extrajudicial com herdeiro incapaz, trabalho que rendeu frutos positivos para todos os envolvidos, principalmente para o menor, parte mais vulnerável nesse processo, que foi beneficiado pela atitude inovadora e conjunta do tabelião, advogado, magistrado e representante do Ministério Público. Esse trabalho, desenvolvido com responsabilidade e em sintonia com a realidade social, foi o provedor de uma nova visão e interpretação do artigo 610, caput, do CPC.
É notório que a Lei nº 11.441/2007 tem como principal finalidade a desjudicialização, promovendo o inventário extrajudicial como instrumento colaborativo para o desafogamento do sistema judicial, que é abarrotado de inúmeras demandas. Visa à garantia do princípio da razoável duração do processo, conforme determina o artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “Art. 5º LXXVIII ? a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Alguns doutrinadores já manifestaram críticas plausíveis sobre a postura do legislador diante de um fato revolucionário e inovador, haja vista ele ter deixado de abordar, com maior profundidade, um assunto tão importante e com grande potencial de promover a jurisdição voluntária em larga escala, com segurança jurídica, economia e celeridade. Por mais que se tente comparar o inventário notarial ao arrolamento sumário ou sumaríssimo, nenhum desses dois oferece a mesma celeridade e eficiência que apresenta o inventario extrajudicial.
Acrescem Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 156) que, segundo o princípio da unidade notarial, não existe processo no inventário administrativo, pois é ato único em que se lavra, lê e assina a escritura pública numa só circunstância, observado o princípio instrumental do art. 215 do CC.
O caput do artigo 610 do Código de Processo Civil traz duas restrições à feitura do inventário administrativo: não ter testamento e não ter interessado incapaz. A primeira delas foi abordada na seção anterior, sendo comprovado que sua exigência não faz muito sentido, tanto que diversos Estados autorizam a produção do inventário extrajudicial com testamento. Parece algo já superado por grande parte da doutrina e jurisprudência.
No que tange ao interessado incapaz, e aqui se inclui o herdeiro incapaz, o objetivo foi proteger o mais vulnerável. Contudo, é necessário que a análise dessa restrição se dê de forma mais intensa, pois proteger o incapaz não significa literalmente impor a via judicial como único meio de se proceder ao inventário. Até porque essa é a via mais danosa para quem se acha em situação de vulnerabilidade e precisa receber sua fração da herança para prover seus gastos. Impor o inventário judicial para o herdeiro incapaz é castigar quem já está em desvantagem; essa não é a decisão mais adequada. O papel de proteção dos incapazes cabe ao Ministério Público, que deve acompanhar todo o procedimento do inventário, seja ele judicial ou extrajudicial, e diante da observação de que o incapaz está sendo prejudicado, deve levar o caso ao Judiciário.
Nessa linha de entendimento, se a partilha é de fração ideal (partes iguais) e não há prejuízo para nenhuma das partes, por que impor a via judicial para o inventário se nessa via a divisão da fração será a mesma? Percebe-se que diante da ausência de prejuízo e da partilha por fração ideal, a exigência da inexistência de interessado incapaz perde o sentido. A proteção ao incapaz permanece, só que agora, numa modalidade de inventário mais célere, esse vulnerável vai receber e desfrutar do patrimônio que lhe cabe por direito, sem ter de aguardar anos para receber sua parte na herança.
Esse novo entendimento, que nasceu da decisão inovadora da 3ª vara cível da Comarca do Leme, deve ser visto como uma grande conquista a ser repetida em outros Estados. A exemplo do Acre, conforme expõe seu Tribunal de Justiça:
O Diário da Justiça Eletrônico trouxe na edição desta quinta-feira, 9, a Portaria 5914-12, que dispõe sobre a realização de inventário extrajudicial, em tabelionato de notas, quando houver herdeiros interessados incapazes. O documento é assinado pelo titular da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco, juiz de Direito Edinaldo Muniz.
O inventário extrajudicial, previstos desde 2007, pela Lei 11.441, é uma possibilidade legal de transmissão dos bens para os herdeiros, quando há um consenso, de forma célere e com menos custos para o cidadão. Esse tipo de procedimento segue e aprofunda um precedente da Justiça do Estado de São Paulo. A novidade é a possibilidade para herdeiros interessados incapazes terem acesso mais fácil ao inventário diretamente no cartório. Contudo, a minuta final da escritura e acompanhada da documentação pertinente, precisa ser previamente submetida à aprovação da vara responsável, antecedida, evidentemente, de manifestação do Ministério Público, tudo isso visando à devida proteção dos interesses dos herdeiros incapazes. Portanto, não haverá nenhum prejuízo aos menores e incapazes, pois a aprovação desses inventários continuará dependendo da manifestação favorável do Ministério Público e da prévia aprovação da Justiça. O procedimento é simples e desburocratizado, em forma de pedido de providência, sem a incidência de custas processuais para que não aconteça, por evidente, uma duplicidade na cobrança. Contudo, sem nenhum prejuízo do devido pagamento dos emolumentos cartorários.
Dessa forma, com a autorização judicial e o acompanhamento do Ministério Público, foi possível realizar o inventário administrativo com herdeiro incapaz no Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP).
Segundo Germano, Nalini e Gonçalves (2021, n.p.):
Se a transmissão da herança se dá imediata e automaticamente com o óbito da pessoa, pelo chamado direito de saisine (CC art. 1.829), não há porque recorrer ao Judiciário, quando a partilha se fizer de forma ideal ou igualitária, havendo ou não menores interessados. A situação é claríssima. Imagine-se inventário com três herdeiros, com divisão do patrimônio igualmente entre eles, na proporção de 1/3 (um terço) para cada um. Ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal. Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Exatamente por não haver prejuízo aos incapazes na partilha ideal, um sensível magistrado da Comarca de Leme, proferiu recentemente uma decisão paradigmática: concedeu alvará para que uma escritura de partilha fosse feita em tabelionato de notas, mesmo com um dos herdeiros menor de idade, exatamente porque a partilha se faria de forma ideal (processo 1002882-02.2021.8.26.0318). Essa decisão criativa e inovadora merece aplauso, pois ajudou a desafogar o Judiciário sem deixar desprotegido o menor. Com isso, o inventário será feito no cartório escolhido pelos interessados (Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga – SP).
Trata-se de uma decisão a servir de inspiração para outros profissionais do direito, quais advogados, tabeliães, registradores, promotores de justiça e magistrados, além dos próprios legisladores do Congresso Nacional [...]. O inventário feito nos cartórios de notas, além de atenderem à normatividade, são muito rápidos e todos sabem que a lentidão é uma das principais máculas do sistema Judicial. Aguarda-se que o tirocínio dos parlamentares acolha a sugestão de lege ferenda e amplie o rol de atribuições dos notários, para que o interesse de menores e incapazes não impeça o inventário em cartório extrajudicial, desde que a partilha seja ideal e igualitária.
Como bem destacam Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 153):
Dúvida maior poderia haver nos casos em que se verifica a existência de interesse público relacionado à proteção do patrimônio de herdeiros ou legatários com natureza fundacional e incapazes. No entanto, estando devidamente representados, e não havendo conflito nem oposição do Ministério Público, deve ser-lhes facultada a via extrajudicial [...]. Assim, poderiam os membros do Parquet atuar também em inventários e partilhas extrajudiciais que envolvessem incapazes e fundações. Evidentemente, a concordância do membro do Ministério Público com o teor do ato seria parte integrante e indissociável dele, e sua discordância conduziria os interessados à via judicial. Assim, estando todos concordes e adequadamente informados, inclusive o órgão do Ministério Público, deve-se permitir que as demandas sucessórias sejam resolvidas de forma definitiva nos serviços extrajudiciais. Nesse sentido, ressalte-se que o juiz não deve ser figura indispensável para a solução amigável em que estejam envolvidos incapazes ou fundações. A atuação do Ministério Público mostra-se suficiente para garantia do zelo para com os interesses de incapazes e de fundações. Nesse sentido, a ressalva da lei quanto aos incapazes deve ser interpretada como reforço para especial proteção de seus interesses, na linha do que o Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277/DF (BRASIL, 2011, n.p.).
Tartuce (2019, p. 6) esclarece sobre o Projeto de Lei de Desburocratização:
Na verdade, para que não surjam argumentos contrários a todas essas posições doutrinárias e jurisprudenciais de avanço, parece-me que a melhor solução é a reforma do art. 610 do CPC/2015, admitindo-se o inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento – desde que todos os herdeiros concordem –, até mesmo havendo filhos incapazes do de cujus. Tais alterações são almejadas pelo grande Projeto de Lei de Desburocratização, originário de comissão mista formada no Senado Federal. Pelo PL 217/2018, que é específico sobre o preceito em comento, passaria ele a ter a seguinte dicção: “Havendo testamento, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3º Havendo interessado incapaz, o Ministério Público deverá se manifestar no procedimento, para fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica do inventário e da partilha feitos por escritura pública. § 4º Na hipótese do § 3º, caso o tabelião se recuse a lavrar a escritura nos termos propostos pelas partes, ou caso o Ministério Público ou terceiro a impugnem, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz”. Faz o mesmo o projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões elaborado pelo IBDFAM, que originou o PL 3.799/2019, proposto pela senadora Soraya Thronicke, que tem conteúdo no mesmo sentido.
Esse Projeto apresenta a seguinte ementa: “Altera o art. 610 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, para permitir a realização de inventário extrajudicial quando houver possíveis implicações no interesse de incapazes”. E mais:
Altera o Código de Processo Civil, para estabelecer que, havendo interessado incapaz, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, caso em que o Ministério Público deverá fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica. O procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz caso o tabelião, o Ministério Público ou terceiro se manifestem contrariamente aos termos propostos.
É de se destacar que até o momento da produção deste trabalho, a última tramitação do referido Projeto de Lei deu-se em 5 de agosto de 2018, com a ação de encaminhamento à publicação, à Comissão de Conciliação e Justiça, em decisão terminativa.
Essa tendência da desjudicialização buscando soluções fora do Judiciário vem sendo frequentemente debatida por doutrinadores. Entre eles, Flávio Tartuce, que vem trabalhando para a sua aplicação em todo o país.
No Direito Sucessório tem se buscado cada vez mais a extrajudicialização, o que contribuiu para Projeto de Lei de Desburocratização. Almeja-se alterar o texto do artigo 610 do atual Código de Processo Civil, cuja finalidade é reduzir a burocracia que envolve o inventário. Diversas normas de Corregedorias-Gerais de Tribunais de Justiça têm relativizado essa regra, a exemplo dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Segue-se o teor do Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil, repetido na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (Enunciado n. 77) e na I Jornada de Direito Processual Civil (Enunciado n. 51). Dessa forma, havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, o inventário com testamento pode ser feito por escritura pública no Cartório de Notas, desde que todos os interessados sejam capazes e concordes (TARTUCE, 2018, p. 6).
A despeito de esse entendimento estar sendo praticado em alguns Estados da Federação, o Projeto de Lei de desburocratização vai além, pois sua inovação abarca também a questão do herdeiro incapaz no inventário administrativo. Parece que esse Projeto de Lei veio também com o papel de suprir a omissão da Lei nº 11.441/07 no que se refere ao inventário extrajudicial com testamento e herdeiro incapaz. A proposta é que seja alterado o texto do artigo 610, caput, do Novo Código de Processo Civil, a fim de promover a desjudicialização em todo o país e suprir o que o legislador da Lei nº 11.441/07 deixou de abordar.
Expõe Tartuce (2018, p. 6):
A proposta do projeto em estudo é bem mais audaciosa, pois o art. 610, caput, do Novo Código de Processo Civil passaria a prever, pura e simplesmente que, inexistindo acordo entre os herdeiros e os legatários do falecido, proceder-se-á ao inventário judicial. Se houver acordo, sem qualquer outra ressalva, a via extrajudicial, por escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, passa a ser plenamente possível. Conforme o seu § 1º, também com tom bem abrangente, a incluir até o pedido de adjudicação de bens, “se todos os herdeiros e os legatários forem concordes ou se só houver um herdeiro, o inventário e a partilha ou, se for o caso, a adjudicação poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras”. Insere-se, ainda, previsão de que, mesmo havendo herdeiro incapaz, a via extrajudicial é possível, desde que haja a atuação do Ministério Público perante o Tabelionato de Notas, sendo necessária a homologação do inventário por esse órgão em um procedimento administrativo perante o Cartório (proposta de § 3º para o art. 610 do CPC/2015). Eventualmente, se o Ministério Público desaprovar a escritura, o Tabelião de Notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura ao juiz, que poderá suprir a homologação do MP por meio de sentença, em sede de demanda que segue o procedimento de jurisdição voluntária (eventual § 4º do art. 610 do CPC/2015).
Por todo o exposto, a exigência da ausência de interessado incapaz é algo que precisa ser repensado quando a finalidade é promover a desjudicialização de um sistema que por vezes é abarrotado, que não consegue dar conta das inúmeras demandas e que fere os princípios da razoável duração do processo e do acesso à justiça. Ademais, a incapacidade não se confunde com a maioridade, podendo o herdeiro ser emancipado para se tornar habilitado a participar do inventário extrajudicial.
Por sorte, algumas Corregedorias Estaduais têm providenciado normativas sobre o tema, incentivando seus colaboradores a atuarem a favor da desjudicialização, no sentido de relativizar os requisitos do artigo 610, caput, do Código de Processo Civil. Enquanto não é feita a alteração desse artigo, as Corregedorias-Gerais de Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e do Acre vêm trabalhando na direção da desburocratização do inventário administrativo com herdeiro incapaz. Esse entendimento inovador tem servido de inspiração para que os demais Estados possam aderir a essa corrente, produzindo normativas nesse sentido.
O caminho é longo, mas o primeiro passo já foi dado no Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP), resultado de um trabalho conjunto entre tabelião, magistrado, Ministério Público e advogado, em que todos se empenharam com o objetivo de garantir à parte vulnerável o acesso à justiça e a razoável duração do processo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei nº 5.869 de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/L11441.htm>. Acesso em: 21 set. 2021.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 março 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13105.htm>. Acesso em: 21 set. 2021.
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BRASIL. Projeto de Lei do Senado nº 217, de 2018. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/133124> Acesso em: 21 set. 2021.
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GERMANO, José Luiz; NALINI, José Renato; GONÇALVES, Thomas Nosch. Um passo adiante. Migalhas. 2021. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/349886/>. Acesso em: 11 set. 2021.
REFOSCO, Helena AGAPITO, Priscila; BRAGA JUNIOR, Carlos Alves. Inventário e partilha extrajudiciais: testamento, incapazes, fundações e questões correlatas. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). V. 6, N. 1, Out., 2020. DOI: HTTPS://DOI.ORG/10.15210/RFDP.V6I1.18516. E-ISSN:2448-3303. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/issue/view/1014>. Acesso em: 21 out. 2021.
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TARTUCE, Flávio. Propostas para a desburocratização do direito de família e das sucessões brasileiro. Instituto Brasileiro de Direito de Família ? IBDFAM. 2018. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/1254/Propostas+para+a+desburocratiza%C3%A7%C3%A3o+do+direito+de+fam%C3%ADlia+e+das+sucess%C3%B5es+brasileiro> Acesso em: 24 ago. 2021.
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