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Família e sucessões no segundo ano da pandemia
Esta é a última coluna Família e Sucessões do Migalhas de 2021, o segundo ano da pandemia de Covid-19. Em meio a muitas perdas e dificuldades, poucas alterações legislativas e algumas decisões judiciais de destaque, seguimos lutando contra o grande desafio imposto à nossa geração. Houve um certo contraste entre os dois semestres, o primeiro muito duro e o segundo movido pela esperança da vacina e pela diminuição de casos e de mortes em virtude da doença. Entretanto, como sempre tenho advertido, as dúvidas quanto ao fim da pandemia ainda persistem, infelizmente.
Do ponto de vista legislativo, poucas foram as normas que surgiram, destacando-se duas. A primeira é a lei 14.118, de 12 de janeiro de 2021, que instituiu o programa Casa Verde Amarela - em substituição ao programa Minha Casa, Minha Vida, da lei 11.977/2009 -, para aquisição de imóveis por famílias de baixa renda. A exemplo do diploma anterior, a nova lei trouxe regras que impactam o Direito de Família, cometendo os mesmos erros da anterior. Fiz uma análise pontual desses equívocos na minha coluna de janeiro.
A segunda norma que emergiu foi a lei 14.138/2021, que, após uma longa tramitação no Congresso Nacional, acrescentou um § 2º ao art. 2º-A da lei 8.560/1992 para permitir, em sede de ação de investigação de paternidade, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes do suposto pai. Como é notório, o último diploma específico regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, concretizando o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6º, do Texto Maior. A nova lei consolidou a posição de alguns doutrinadores e a constante de alguns julgados, que já admitiam o citado exame, e foi objeto da minha coluna de abril de 2021.
Quanto às decisões judiciais, seguimos na análise concreta de temas pandêmicos, destacando-se a mudança de orientação quanto à prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. No início da pandemia, como é notório, o Superior Tribunal de Justiça afastou a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, possibilitando apenas a prisão domiciliar e seguindo a recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (por todos: STJ, HC 580.261/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020).
Sucessivamente, veio a lei 14.010/2020, que instituiu um regime transitório em matéria de Direito Privado em tempos de pandemia (RJET). Conforme o seu art. 15, até 30 de outubro de 2020 - data considerada como de fim de abrangência da nova norma -, "a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações". Após a primeira onda da pandemia e a cessação dos efeitos da lei, surgiu debate sobre a possibilidade ou não de prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, havendo variações de entendimentos nas Cortes Estaduais.
Neste ano de 2021, infelizmente, tivemos a segunda onda da pandemia, muito pior do que a primeira, e o Superior Tribunal de Justiça voltou a se pronunciar, no sentido de afastar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado mesmo após o fim da vigência do RJET, desde que presentes os efeitos sociais decorrentes da pandemia. Conforme preciso acórdão da sua Terceira Turma, que aponta a necessidade de se verificar os momentos diferentes da crise e admite a viabilidade de utilização de outras medidas para a efetivação do recebimento do crédito alimentar, "a experiência acumulada no primeiro ano de pandemia revela a necessidade de afastar uma solução judicial apriorística e rígida para a questão, conferindo o protagonismo, quanto ao ponto, ao credor dos alimentos, que, em regra, reúne melhores condições de indicar, diante das inúmeras especificidades envolvidas e das características peculiares do devedor, se será potencialmente mais eficaz o cumprimento da prisão em regime domiciliar ou o diferimento para posterior cumprimento da prisão em regime fechado, ressalvada, em quaisquer hipóteses, a possibilidade de serem adotadas, inclusive cumulativa e combinadamente, as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, nos termos do art. 139, IV, do CPC, de ofício ou a requerimento do credor. Ordem parcialmente concedida, apenas para impedir, por ora, a prisão civil do devedor de alimentos sob o regime fechado, mas facultando ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se pretende diferir o seu cumprimento, sem prejuízo da adoção de outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias" (STJ, HC 645.640/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/03/2021, DJe 26/03/2021). A necessidade de se verificar o momento pandêmico para as conclusões jurídicas é um ponto de destaque do aresto, servindo não só para a análise dos alimentos, mas também para outras questões de Direito Privado que ora vivenciamos.
Ainda em 2021, o próprio Superior Tribunal de Justiça publicou a Edição 178 da ferramenta Jurisprudência em Teses, com orientações jurisprudenciais sobre a Covid-19. De acordo com a tese n. 1, "durante a pandemia da covid-19, faculta ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se prefere diferir o seu cumprimento". E, consoante a tese n. 2, "é possível a penhora de bens do devedor de alimentos, sem que haja a conversão do rito da prisão para o da constrição patrimonial, enquanto durar a suspensão de todas as ordens de prisão civil, em decorrência da pandemia da covid-19".
Todavia, em novembro, o Conselho Nacional de Justiça voltou a recomendar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, diante da melhora do quadro pandêmico, fazendo com que a Terceira Turma do STJ se pronunciasse novamente pela viabilidade da prisão. Vejamos esse novo acórdão, com citação em destaque:
"CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. CABIMENTO CONTRA DECISÃO DENEGATÓRIA DE LIMINAR NA ORIGEM. SÚMULA 691/STF. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. EXCEPCIONALIDADE. MODIFICAÇÃO DE CAPACIDADE ECONÔMICA DO DEVEDOR. PAGAMENTO PARCIAL DOS ALIMENTOS. IRRELEVÂNCIA. AUSÊNCIA DE IMPEDIMENTO ABSOLUTO QUE JUSTIFIQUE A INADIMPLÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO DURANTE A PANDEMIA CAUSADA PELO CORONAVÍRUS. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DESTA CORTE. CUMPRIMENTO EM REGIME DOMICILIAR, DIFERIMENTO DO CUMPRIMENTO E ESCOLHA PELO CREDOR DA MEDIDA CONCRETAMENTE MAIS ADEQUADA. REVISITAÇÃO DO TEMA A PARTIR DO ATUAL CENÁRIO DA PANDEMIA NO BRASIL. NECESSIDADE. RETOMADA DE ATIVIDADES ECONÔMICAS, COMERCIAIS, SOCIAIS, CULTURAIS E DE LAZER. AVANÇO SUBSTANCIAL DA VACINAÇÃO EM TODO O PAÍS. SUPERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE JUSTIFICARAM A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO. RETOMADA DA ADOÇÃO DESSA MEDIDA COERCITIVA. POSSIBILIDADE. 1- O propósito do habeas corpus é definir se, no atual momento da pandemia causada pelo coronavírus, é admissível a retomada da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. 2- É incabível, por força da Súmula 691/STF, a impetração de habeas corpus contra decisão denegatória de liminar proferida pelo Relator no Tribunal de origem, sem que a questão tenha sido apreciada pelo órgão colegiado, ressalvada a excepcional superação desse entendimento diante da possibilidade de concessão da ordem de ofício. 3- A jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que é inviável a apreciação de fatos e provas relacionadas à capacidade econômica ou financeira do devedor dos alimentos e de que o pagamento apenas parcial das parcelas vencidas ou vincendas no curso da execução é insuficiente, por si só, para impedir a prisão civil do alimentante. Precedentes. 4- Desde o início da pandemia causada pelo coronavírus, observa-se que a jurisprudência desta Corte oscilou entre a determinação de cumprimento da prisão civil do devedor de alimentos em regime domiciliar, a suspensão momentânea do cumprimento da prisão em regime fechado e a possibilidade de escolha, pelo credor, da medida mais adequada à hipótese, se diferir o cumprimento ou cumprir em regime domiciliar. Precedentes. 5- Passados oito meses desde a última modificação de posicionamento desta Corte a respeito do tema, é indispensável que se reexamine a questão à luz do quadro atual da pandemia no Brasil, especialmente em virtude da retomada das atividades econômicas, comerciais, sociais, culturais e de lazer e do avanço da vacinação em todo o território nacional. 6- Diante do cenário em que se estão em funcionamento, em níveis próximos ao período pré-pandemia, os bares, restaurantes, eventos, shows, boates e estádios, e no qual quase três quartos da população brasileira já tomou a primeira dose e quase um terço se encontra totalmente imunizada, não mais subsistem as razões de natureza humanitária e de saúde pública que justificaram a suspensão do cumprimento das prisões civis de devedores de alimentos em regime fechado. 7- Na hipótese, a devedora de alimentos é empresária, jovem e não informa possuir nenhuma espécie de problema de saúde ou comorbidade que impeça o cumprimento da prisão civil em regime fechado, devendo ser considerado, ademais, que nas localidades em que informa possuir domicílio, o percentual da população totalmente imunizada supera 80%. 8- Habeas corpus não conhecido. Ordem denegada de ofício" (STJ, HC 706.825/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/11/2021, DJe 25/11/2021).
Portanto, na linha também do último acórdão, é preciso verificar o momento ou a fase pandêmica para se concluir se é viável a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado ou não. Por certo que pode haver uma variação de realidade, sobretudo se surgirem novas ondas pandêmicas diante de novas variantes, o que é bem provável, a justificar novamente a prisão em regime fechado.
Como outra concreção prática importante, em 2021 emergiu paradigmático precedente a respeito da reprodução assistida, prolatado igualmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, especialmente sobre a autorização para o destino de embriões excedentários após a morte. Em votação apertada, a Corte decidiu que "a declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deve ser efetivada por testamento ou por documento análogo". Como justificativas principais do aresto, concluiu-se que "a decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia" (STJ, REsp 1.918.421/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 08/06/2021, DJe 26/08/2021).
O decisum cita várias posições doutrinárias, sendo robusto na sua fundamentação. De todo modo e com o devido respeito à maioria, parece-me que houve um excesso de rigor formal no julgamento final. Por isso, estou filiado ao voto vencido, do Ministro Marco Buzzi, até porque entendo que no caso concreto os embriões teriam o direito de ser implantados.
Analisadas as principais decisões jurisprudenciais no último ano, sem prejuízo de muitas outras, quanto aos eventos jurídicos, dois merecem destaque. Em agosto, ocorreu a II Jornada de Solução Extrajudicial de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, pelo Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação geral dos ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino. Com quatro comissões temáticas - sobre arbitragem, mediação, desjudicialização e novas tecnologias -, surgiram enunciados doutrinários sobre temas de extrajudicialização, alguns deles relacionados a temas de Direito de Família e das Sucessões, como analisei na minha coluna de setembro.
O segundo evento a ser mencionado ocorreu nos últimos dias 27 a 29 de outubro, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões. De forma totalmente remota, participaram mais de dois mil inscritos, confirmando tratar-se de um dos maiores eventos de Direito Privado do País e do mundo. Como já vem ocorrendo desde a edição de 2015, foram apresentados os novos enunciados doutrinários do IBDFAM, como analisei na coluna de outubro de 2021, tratando de temas de grandes repercussões práticas na atualidade, como as consequências jurídicas da pandemia, a violência doméstica, a herança digital, o uso de imagem dos filhos no âmbito virtual, o namoro qualificado, a filiação socioafetiva, a convivência familiar e o divórcio como direito potestativo.
Porém, um dos fatos mais marcantes do ano que termina foi o falecimento do grande Mestre Zeno Veloso, no dia 18 de março de 2021, vítima da Covid-19. O jurista sempre esteve presente em citações e diálogos em meus textos publicados nesta coluna, e, em 2021, três artigos foram dedicados a ele, nos meses de março, maio e junho. O próprio Congresso do IBDFAM foi feito em sua homenagem, sem prejuízo de muitas outras publicações e eventos. A nós, seus discípulos, caberá seguir com a transmissão do seu legado doutrinário nos próximos anos.
Esse é um breve resumo do que de mais relevante ocorreu no último ano a respeito do Direito de Família e das Sucessões, um período muito difícil, com perdas e sofrimentos ainda intensos. Espero, sinceramente, que o ano de 2022 seja melhor do que os dois últimos. Aos nossos leitores, o meu agradecimento por acompanharem esta coluna. Ao Migalhas, mais uma vez o meu Muito Obrigado, por seguirmos com esta parceria de difusão do conhecimento técnico de temas importantes do Direito Civil Brasileiro. Até o próximo ano!
Flávio Tartuce é pós-doutorando e doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAMSP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Artigo publicado no migalhas e disponível: https://www.migalhas.com.br/coluna/familia-e-sucessoes/357218/familia-e-sucessoes-no-segundo-ano-da-pandemia
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