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A guarda compartilhada tornou o binômio da obrigação alimentar ultrapassado?
Bruna Barbieri Waquim[1]
Fernando Salzer[2]
A guarda compartilhada se tornou regra legal em nosso país e vem, cada vez mais, se consolidando na dinâmica dos arranjos familiares. Pais e mães, famílias maternas e paternas, estão cada vez mais se acostumando à ideia de que o Superior interesse dos filhos e netos crianças e adolescentes não pode ficar à mercê da qualidade ou constância da relação entre os adultos. A guarda compartilhada trouxe um grito de liberdade e alforria à relação parental-filial, que não é mais subordinada à existência e exigências da (ex) relação conjugal / amorosa.
Isto nos faz refletir sobre a necessidade de contextualizar e repaginar institutos jurídicos criados no momento histórico em que vigorava o modelo de guarda unilateral: assim como não se trata mais do direito de “visitas”, mas sim do “direito à convivência familiar”, precisamos ponderar qual a repercussão da consolidação do modelo de guarda compartilhada à fixação da obrigação alimentar.
No país, o número de registros de guarda compartilhada quase triplicou entre 2014 e 2017, passando de 7,5% dos casos de divórcio de casais com filhos menores para 20,9%, de acordo com as Estatísticas do Registro Civil, do IBGE. Os estados com os maiores índices de compartilhamento da guarda, em 2017, foram Espírito Santo (32,7%), Bahia (29,4%) e Amazonas (28,7%). Entre as capitais, os maiores percentuais foram registrados em Vitória-ES (61,2%), Curitiba-PR (54,6%) e Salvador-BA (54,4%)[3].
Por isso, esta é a hipótese de investigação que, em uma despretensiosa conversa entre os presentes autores, passou a ser cultivada como transformação de um paradigma e agora é colocada à comunidade familiarista para debate: tratar a obrigação alimentar como um cálculo que movimenta apenas duas variáveis (“necessidade x possibilidades”) já está superado, pois a guarda compartilhada trouxe o elemento “tempo disponível” como fator fundamental para cálculo do quantum obrigacional alimentar.
Tempo: muito lento para os que esperam, muito rápido para os que têm medo, muito longo para os que sofrem, muito curto para os que se alegram[4]. O tempo é um fato jurídico, determinante para várias questões jurídicas, e que na “sociedade do cansaço” de hoje, para fazer referência ao termo cunhado por Byung-Chul, é uma das moedas mais preciosas, que se confunde com o próprio potencial de ser ser humano.
No Direito, a repercussão do elemento “tempo” já é vista, por exemplo, na teoria do desvio produtivo do consumidor, que garante a indenização pelo “tempo desperdiçado”: é o fato ou evento danoso que se consuma quando o consumidor, sentindo-se prejudicado, gasta o seu tempo vital – que é um recurso produtivo – e se desvia das suas atividades cotidianas – que geralmente são existenciais[5].
A nova análise sobre o tempo também está presente na regra legal da guarda compartilhada, em que não há mais espaço para interpretações calcadas em funções estereotipadas de homens e mulheres, papéis padronizados de mães e pais: toda e qualquer hermenêutica ter em foco a figura de cuidadores parentais, corresponsáveis pela proteção, cuidado e sustento dos filhos comuns.
Os recentes estudos de usos do tempo vêm mostrando que os homens ainda participam pouco das tarefas domésticas e que, apesar de ainda trabalharem menos horas semanais que os homens, as mulheres desenvolvem jornadas totais (trabalho produtivo somado com o trabalho reprodutivo) bastante superiores às masculinas[6].
A chamada “divisão sexual do trabalho” sob a qual vivemos atualmente remonta às origens do desenvolvimento de um capitalismo patriarcal que destinou aos homens os trabalhos produtivos – remunerados – e as mulheres os trabalhos reprodutivos – isentos de remuneração, sem valorização ou reconhecimento social e considerados naturais para as mulheres, chamados de “atos de amor”: limpeza da casa, a alimentação, o vestuário, a educação, a saúde, bem como as relações afetivas e a socialização dos indivíduos do grupo familiar[7].
Trazer ao cálculo da obrigação alimentar o elemento “tempo” também significa combater o modelo arcaico que tornava invisíveis as repercussões da concentração dos cuidados primários com os filhos, ou seja, significa levar à equação alimentar também o tempo de trabalho reprodutivo que possa ser delegado à mulher – ou ao homem – de forma desproporcional, impactando inclusive no seu potencial de trabalho produtivo.
Se um dos genitores concentra os cuidados com a prole em virtude da indisponibilidade de tempo do outro genitor em compartilhar os cuidados primários e tempo de convivência presencial, significa que este genitor que concentra o tempo de cuidado com os filhos (concentra o trabalho reprodutivo) possui menos tempo para dedicar-se aos trabalhos produtivos (e remunerados) além do seu próprio autocuidado (lazer, cuidados com a saúde, entre outros).
Interessante notar que para incluir a variável disponibilidade de tempo no cálculo do quantum da obrigação alimentar, não se mostra preciso efetuar nenhuma alteração legislativa, mas apenas aplicar as regras já vigentes, como, por exemplo, as disposições constantes nos artigos 1.568, 1.579 e 1.703. todos do Código Civil.
A conjugação de tais dispositivos deixa claro que na vigência da sociedade parental os genitores envolvidos são obrigados a concorrer, na proporção de seus “recursos” (na visão tradicional, bens + rendimentos), para o sustento, cuidado e educação dos filhos comuns. Aqui, necessariamente deve se incluir na ótica de “recursos” também a disponibilidade de tempo para realização do trabalho reprodutivo.
Quando a dedicação de tempo de um dos cuidadores ao filho é muito maior que a do(s) outros genitores, há decréscimo patrimonial de bem jurídico da pessoa que dedica seu tempo à cria, gerando enriquecimento sem causa dos demais, o que não é admitido pelo ordenamento jurídico nacional, conforme se conclui pela conjugação das disposições contidas nos artigos 871 e 884, ambos do Código Civil.
Não se trata de “compensar” nem de “indenizar” o tempo que o genitor A ou B passe a mais com os filhos. A proposta de incluir a disponibilidade de tempo como terceiro elemento informativo da obrigação alimentar busca um equilíbrio entre o tempo de trabalho produtivo e o tempo de trabalho reprodutivo nas relações humanas, possibilitando, inclusive, que se diminuam as questões de gênero que atravessam o tema da guarda – aqui entendida como tempo de convivência – dos filhos.
O cenário ideal é a divisão equânime de tempo de convivência e sua respectiva responsabilidade (financeira, emocional, etc.), mas quando a dinâmica de uma família parental não comportar essa distribuição de tempo mais proporcional entre os lares – especialmente nas situações em que um genitor alegue menor disponibilidade de tempo para custódia física dos filhos – que esse fato seja levado em consideração também no estabelecimento da obrigação alimentar, posto que aquele genitor ou genitora que atender ao maior tempo de cuidado com os filhos (trabalho reprodutivo) terá proporcionalmente menor tempo dedicado para seu próprio trabalho produtivo, o que impossibilita, por via de consequência lógica, maiores condições de atendimento às necessidades materiais dessa prole.
Entendemos, assim, que a igualdade parental alimentada pela adoção da guarda compartilhada afasta os estereótipos dos papéis sociais familiares em relação aos filhos, e invoca uma nova resposta jurídica.
Por isso, o direito deve ser modernizado, sendo o antigo binômio alimentar calcado na “necessidade x possibilidades”, substituído por uma proporcionalidade que leve em conta as reais necessidades dos filhos, primordialmente no que tange ao cuidado e proteção, versus as possibilidades financeiras e patrimoniais dos genitores, conjugada essas com a disponibilidade de tempo que cada um dos atores parentais dedica ao cuidado, a proteção e à educação dos filhos comuns.
Apresentamos, assim, a proposição do novo trinômio da obrigação alimentar para o necessário debate: necessidade x possibilidades x disponibilidade de tempo. Uma mudança mais que necessária para tornar o instituto da obrigação alimentar mais ancorado aos fundamentos dos tempos hodiernos.
À guisa de conclusão, deixamos ao leitor a mais que pertinente reflexão de Luis de Camões sobre mudanças:
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o Mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.
REFERÊNCIAS
DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: um panorama.
GUEDES, Moema de Castro. Percepções sobre o papel do Estado, trabalho produtivo e trabalho reprodutivo:uma análise do Rio de Janeiro. Cadernos pagu(47), 2016:e164720. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8647273/14235.
LUZ, Thânia Cristina. AS ESCALAS DO TRABALHO REPRODUTIVO NO COTIDIANO DAS MULHERES: O CORPO, A CASA E A COMUNIDADE. Disponível em: http://www.enanpege.ggf.br/2019/resources/anais/8/1562608509_ARQUIVO_GT23_ThaniaCristinaLuiz.pdf.
[1] Doutora em Direito pelo CEUB. Mestre em Direito e Instituições do Sistema da Justiça pela UFMA. Assessora Jurídica no TJMA. Educadora Parental. Vice-Presidente do IBDFAM/MA. Professora universitária. Palestrante e autora dos livros “Relações Simultâneas Conjugais: o lugar da Outra no Direito de Família” (2010), “Alienação Familiar Induzida: aprofundando o estudo da Alienação Parental” (2018, 2ª edição) e a Coleção “Alienação Parental na perspectiva dos direitos das crianças e dos adolescentes: impactos no Judiciário e nas Políticas Públicas” (2021).
[2] Advogado Familiarista, Procurador do Estado de Minas Gerais e membro do IBDFAM.
[3] Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/2019/03/12/ibge-pais-dividem-responsabilidades-na-guarda-compartilhada-dos-filhos/ .
[4] Frase atribuída a Henry Van Dyke.
[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: um panorama.
[6] GUEDES, Moema de Castro. Percepções sobre o papel do Estado, trabalho produtivo e trabalho reprodutivo:uma análise do Rio de Janeiro. Cadernos pagu(47), 2016:e164720. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8647273/14235.
[7] LUZ, Thânia Cristina. AS ESCALAS DO TRABALHO REPRODUTIVO NO COTIDIANO DAS MULHERES: O CORPO, A CASA E A COMUNIDADE. Disponível em: http://www.enanpege.ggf.br/2019/resources/anais/8/1562608509_ARQUIVO_GT23_ThaniaCristinaLuiz.pdf.
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