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O narcisismo e a Clínica do Direito
Todos os atos e fatos jurídicos são determinados e influenciados pelo sujeito do inconsciente. Isto porque o sujeito de direitos é um sujeito desejante, e é ele quem faz movimentar toda a máquina judiciária em torno, principalmente, dos restos do amor que vão parar na justiça. Daí a importância da Psicanálise para o Direito. Os processos judiciais litigiosos são, na verdade, a materialização de uma realidade subjetiva em que cada parte acredita dizer a verdade. São versões que fazem aversões. Para que os profissionais do Direito não se tornem instrumentos do “gozo” do cliente e não participem de uma montagem perversa, que muitas vezes se torna o litígio conjugal e parental, é importante que se entenda alguns conceitos psicanalíticos, como por exemplo, Inconsciente, Desejo, Gozo, Sexualidade, Desamparo, Fetichismo e Narcisismo (Cf. Verbetes do meu Dicionário de Direito de Família), seja pela perspectiva da Magistratura, Ministério Público, Defensoria Pública ou Advocacia. Todos esses conceitos se entrelaçam, se complementam, e nos remete para um mais além do nosso tradicional exercício com o Direito. Na advocacia, entender essas concepções psicanalíticas é desenvolver e afinar uma escuta e percepção mais refinada de nossos clientes. Por isto o nosso escritório pode ser uma “Clínica do Direito”.
Um dos conceitos pouco explorado, e pouco entendido entre nós, é o de narcisismo, que tem sua origem no mito de narciso, que acompanha a civilização ocidental desde a Grécia antiga. Durante uma caçada, Narciso faz uma pausa junto a uma fonte de águas claras. Ao ver-se refletido naquelas águas supôs estar vendo um outro ser e, paralisado, não conseguiu desviar o olhar de seu próprio rosto. Apaixonou-se por si mesmo, colocou os braços na água para abraçar a si próprio, a sua própria beleza. Atormentado por esse desejo impossível, feriu-se até a morte, ao constatar que era ele mesmo objeto do seu amor.
A expressão narcisismo foi usada pela primeira vez em 1887, pelo psicólogo francês Alfred Binet, para descrever uma forma de fetichismo, no sentido da própria pessoa se tornar objeto sexual de si mesmo. Aliás, fetichismo é também um conceito psicanalítico importante, e entendê-lo pode ajudar os operadores do Direito não se tornarem fetichistas da lei, isto é, não fazer da lei um fetiche. Freud em seu texto de 1914 “Sobre Narcisismo: Uma introdução”, tece esse conceito, embora já tivesse se referido a ele em uma nota em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, em 1910. Durante toda a sua obra ele vai amadurecendo esse conceito e desenvolve a ideia de narcisismo primário (é uma etapa fundamental na construção do sujeito) e secundário, e ao final conclui que o narcisismo faz parte de nossa estrutura psíquica: o narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do usufruto de autopreservação, que, em certa medida, pode, justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva. (Sobre o narcisismo: uma introdução. Obras Psicológicas completas. Trad. Thenura de O. Britto, Paulo, Paulo Henrique de Britto e Christiano M. Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974, P. 90). Mais tarde, Jacques Lacan diz que o narcisismo originário constitui-se no momento em que a criança capta sua imagem no espelho, que por sua vez é baseada na do outro, mais precisamente a imagem da mãe. O bebê para se constituir como sujeito é necessário se separar desta imagem da mãe, que no princípio, ele e a mãe constituem uma só pessoa. É assim que ele se vê. Para tornar-se sujeito é necessário ir abandonando esse narcisismo primário.
A expressão narcisismo se popularizou e foi recebendo várias conotações. Ainda hoje é um conceito psicanalítico em evolução. Em síntese, ele traduz a ideia do amor do indivíduo por si mesmo. Quando em excesso, pode se tornar um distúrbio narcísico. As redes sociais são hoje o grande templo de narcisos. Mais do que nunca as pessoas, como no mito de Narciso, tem se afogado no espelho à procura da própria imagem. Podemos afirmar que o narcisismo é a estrutura predominante do nosso tempo, realçada e estimulada pelas redes sociais. Na verdade, ela é limitadora dos laços sociais reais. Da mesma forma que Tales de Mileto (624 a 548 AC), um dos primeiros filósofos que ficou conhecido pela frase “Tudo é água”, síntese de sua filosofia, podemos afirmar hoje que “Tudo é narcisismo”.
Todos nós precisamos de uma certa dose de narcisismo para existir, afinal a autoestima e amor próprio depende da libido narcísica. Da mesma forma, o bom Advogado tem que ser um pouco paranóico (desconfiar e achar que pode ter algo por detrás) e também obsessivo (cuidar de detalhes). Mas o excesso de narcisismo é a porta aberta para a pessoa entrar em um quadro patológico e perder o contacto com a realidade na medida em que ele só vê o próprio umbigo. O distúrbio narcísico torna a pessoa incapaz de olhar para além de si mesmo, e a deixa incapaz de lidar com as necessidades do outro. Elas se acham tanto, que acabam se perdendo. O mais grave de tudo é que perdem a capacidade de amar o outro, pois só amam a própria imagem, e no mundo atual, espelhada no compartilhamento de fotos.
Quando os clientes chegam até nós, na maioria das vezes, por terem sido rejeitados por aquele que eles achavam que iria amá-lo e querê-lo para sempre, além de deparar-se com o seu desamparo estrutural, está ferido narcisicamente. Temos que aprender a lidar com as nossas feridas narcísicas. Não é fácil, mas necessário. Se se entende isto pode-se evitar os eternos e degradantes litígios judiciais.
Um outro exemplo de “paulada” no narcisismo é o envelhecer. Por mais que saibamos que a libido se desloca para outros aspectos da vida, por mais que nos consolemos que vamos perdendo a juventude, mas ganhando maturidade e sabedoria, não é fácil ver o nosso corpo se deteriorar, a pele afinar e enrugar, cabelos ficarem brancos e não termos a mesma vitalidade de alguns anos atrás etc. O envelhecer é também deparar-se com uma ferida narcísica. Oscar Wilde foi um dos melhores escritores a falar sobre isto em sua obra de 1890 “O retrato de Dorian Gray”, que também inspirou filmes em várias versões, sendo o último em 2009. Um jovem aristocrata, Dorian Gray deseja ser eternamente jovem e belo. Para isso troca sua alma pela juventude. A sua alma e velhice iriam sendo registradas no retrato feito por um pintor, e ele permaneceria jovem.
Nossa existência social depende do olhar do outro. Em tempos de redes sociais e de tráfego de informações via internet, precisamos fazer com que os outros acreditem quem somos para alimentar nossa imagem e ilusão narcísica. E assim, vender nossa imagem egóica mega valorizada. Tudo isso vem a serviço, principalmente, de tamponar nosso vazio existencial e não suportar deparar com nosso desamparo estrutural. E é neste sentido que o conceito de narcisismo interessa ao Direito das Famílias. Somado a outros conceitos psicanalíticos, ele nos faz compreender muito melhor a realidade subjetiva que se apresenta nos processos judiciais e no discurso de nossos clientes, cujo narcisismo se deteriora na medida em que o sujeito se depara com o seu sentimento de rejeição, desamparo.
Se o fim da conjugalidade e as questões da parentalidade, forem bem elaborados psiquicamente, certamente os aspectos jurídicos serão bem resolvidos, e as partes não precisarão litigar. E para isto basta que se entenda que ninguém é tão bom, tão maravilhoso quanto gostaria de ser, ou como achava que era. Saber lidar com a dor e o sentimento de ter sido rejeitado é o antilitígio. Pode, inclusive, evitar práticas de atos de Alienação Parental. É preciso sair do espelho, deparar-se com sua incompletude, finitude e, entender que o nosso desamparo faz parte da nossa estrutura psíquica. Afinal somos sujeitos de desejo, e desejo é falta. Sempre faltará algo em nós. Daí nosso desamparo estrutural. Entender isto possibilita voltar a ter a capacidade de amar o outro além de si mesmo. Afinal, parafraseando Freud, é o amor que nos humaniza o nos civiliza. Eis aí uma reflexão que deve conduzir a nossa ética do Direito das Famílias e fazer do escritório de Advocacia uma verdadeira Clínica do Direito.
Rodrigo da Cunha Pereira
Advogado, Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família IBDFAM, Doutor (UFPR) e Mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise.
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