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O direito real de habitação do cônjuge supérstite e o desfazimento do condomínio entre os herdeiros: a primazia da dignidade humana no Direito de Família e das Sucessões
CUNHA[1], Leandro Barbosa da.
RESUMO:O presente texto tem por escopo analisar os conflitos sucessórios que podem ocorrer entre a propriedade dos herdeiros sobre o único imóvel a inventariar e o direito real de habitação conferido em favor do cônjuge ou companheiro sobreviventes,visando a averiguar se deve ter preponderância a extinção do condomínio dos sucessores por intermédio da venda do imóvel, ou o direito de moradia da viúva ou do viúvo sobre o referido bem. Com base no fenômeno da constitucionalização das relações jurídico-privadas, demonstrar-se-á que, para muito além de garantir a moradia, o direito real de habitação visa a proteger o núcleo familiar e o vínculo afetivo que surgiu no lar conjugal, preservando as memórias do matrimônio e do convívio com o falecido naquele ambiente. Assim, será possível concluir que o direito real de habitação guarda razões de ordem humanitária e social ao se constituir como um importante instrumento de proteção da família, devendo limitar a propriedade dos herdeiros e impedir o desfazimento do condomínio enquanto perdurar o exercício da moradia pelo cônjuge supérstite, ressalvadas as eventuais exceções e particularidades que possam surgir em cada caso concreto que for submetido ao exame do Poder Judiciário.
Palavras-chave: Direito real de habitação; cônjuge supérstite; extinção do condomínio; proteção do núcleo familiar.
ABSTRACT: The scope of this text is to analyze the succession conflicts that may occur between the heirs' ownership of the only property to be inventoried and the real right to housing granted in favor of the surviving spouse or partner, in order to ascertain whether the extinction of the condominium should prevail. of successors through the sale of the property, or the right to housing of the widow or widower over the referred property. Based on the phenomenon of the constitutionalization of legal-private relationships, it will be shown that, in addition to guaranteeing housing, the real right to housing aims to protect the family nucleus and the affective bond that emerged in the marital home, preserving the memories of marriage and living with the deceased in that environment. Thus, it will be possible to conclude that the real right to housing has humanitarian and social reasons as it constitutes such an important instrument for the protection of the family, limiting the ownership of the heirs and preventing the condominium from being dissolved for as long as the spouse's housing continues. superstite, with the exception of any exceptions and particularities that may arise in each specific case that is submitted for examination by the Judiciary.
Key-words: Real right to housing; surviving spouse; extinction of the condominium; protection of the family nucleus.
Introdução
A tutela do direito à propriedade transcende as vidas de seus titulares e compõe grande parte da preocupação do Direito Sucessório e, sobretudo, do Direito de Família, tendo em vista seus vários desdobramentos jurídicos e sociais. Contudo, posto que fosse concebido como um poder absoluto e ilimitado, em razão do fenômeno da constitucionalização das relações jurídico-privadas, o exercício da propriedade deve, por força da norma do art. 5º, XXIII, da Constituição Federal de 1988, atender à sua chamada função social, além de sofrer outras limitações em decorrência de ônus reais e de outros fatos jurídicos que possam estar presentes no caso concreto.
Em especial, no cenário sucessório, a regra do art. 1.831 do Código Civil prevê que o cônjuge supérstite, independentemente do regime de bens adotado no matrimônio, possui o direito à moradia quanto ao único imóvel a inventariar, desde que destinado à residência da família. Entretanto, não é incomum que surjam conflitos entre os herdeiros e a viúva – que pode não possuir muito prestígio ante os filhos exclusivos do de cujus –, de modo que os primeiros desejem vender o imóvel para que seja possível extinguir o condomínio, ao passo que a consorte sobrevivente, em razão do vínculo e das memórias afetivas, almeje continuar a residir com sua família no lar do falecido esposo.
O choque de tais pretensões faz nascer, além do litígio, uma vexata quaestio: se deve preceder o direito real de habitação do cônjuge supérstite ou o desfazimento do condomínio dos herdeiros. Não é possível obter uma resposta simplificada para a questão, porquanto ambos direitos, inexoravelmente, encontram respaldo na Constituição Federal de 1988 e necessitam de tutela pelo Poder Público. Por outro lado, também não pode se subtrair o Poder Judiciário de sua função pacificadora, de modo que se faz necessário analisar, com as devidas cautelas, qual é a melhor solução para resolver o problema.
Com base na pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, bem como naanálise da natureza do direito real de habitação, tornar-se-á possível concluir que, por possuir razões de ordem social e humanitária, o direito real de habitação em favor do cônjuge supérstite, desde que preenchidos seus pressupostos do art. 1.831 do Código Civil e atendida sua finalidade primordial de proteção da família, limitará a propriedade dos herdeiros e impedirá o desfazimento do condomínio. Entretanto, não se pode afirmar que isso acontecerá em todas as situações, haja vista que não existe uma resposta in abstracto sobre a problemática proposta, cabendo ao Juiz, em consonância com as circunstâncias e particularidades de cada caso concreto, decidir qual dos dois direitos deverá ter preponderância.
1 – A colisão de interesses no contexto sucessório: entre a moradia e a venda do único imóvel a inventariar
Com o desenvolvimento contínuo do sistema capitalista, não há dúvidas de que o direito real de propriedade se tornou um dos principais institutos do ordenamento jurídico brasileiro, seja para a seara civilista, seja para os mais diversos ramos do Direito. Por ser tamanha sua importância na atualidade, é possível verificar que tanto o tema quanto seus mais variados aspectoscompõem uma relevante parcelada preocupação da jurisprudência nacional, sendo também um objeto recorrentedas pautas legislativas que são apreciadas e votadas pelos parlamentares no decorrer da legislatura. Não por outro motivo, recebeu a proteção constitucional pelo art. 5º, XXII, da Constituição Federal 1988.
Não obstante grande parte dos direitos se encerre com a morte de seus titulares, a propriedade(e seus elementos análogos) possui a aptidão de se projetar no tempo e incidir sobre as mais variadas esferas jurídicasem razão dasparticularidadesde sua natureza real, porquanto as relações jurídicas correspondentes àcoisa, pelo menos via de regra, independem da presença de aspectos personalíssimos. Ao se constatar que o perecimento da vida é um fato inescapável da humanidade, assume inexorável importância disciplinar o destino daquilo que integrava o acervo patrimonial do de cujus – desde seus ativos aos passivos – e, em geral, as demais questões sucessórias atinentes à herança.
Apesar de alguns pensadores, especialmente aqueles de cunho marxista,defenderem que a herança deveria ser extirpada do Direito por supostamente estimular a desídia, há de se ter em vista que ela não é senão uma decorrência lógica do próprio sistema jurídico que se instaurou no Brasil (DANTAS, 1991, p. 449-450), de modo que sua supressão implicaria também na necessidade de alterar diversos outros dispositivos situados fora do próprio Livro de Direito das Sucessões do Código Civil – como as normas referentes aos direitos reais –, além de exigir uma abrupta mudança da mentalidade social brasileira contemporânea.
Segundo a inteligência do art. 1.784 do Código Civil, aberta a sucessão, a herança se transmite desde logo aos herdeiros legítimos e testamentários, fenômeno que ficou conhecido pela expressão francesa droit de saisine. A ideia por trás da transmissão ipso iureé a de que tal ficção evite algum tipo de equívoco no âmbito sucessório (GOMES, 2019, p. 16), não obstante seja possível aos herdeiros aceitar ou renunciar livremente os respectivos quinhões hereditários. De toda sorte, uma vez operada a partilha, a herança como um todo perderá seu caráter de indivisível e os respectivos bens do acervo patrimonial do de cujus passarão a compor o acervo da propriedadedos herdeiros.
Todavia, em se tratando de bem de jaez imóvel – e não havendo disposição testamentária que venha a elidir a incidência do regime da sucessão legítima –, entende-se que haverá condomínio legal entre os herdeiros, ou seja, fracionar-se-á de maneira ideal o bem de tal forma que todos figurarão como proprietários dele em diferentes (ou iguais) porcentagens, sendo possível pactuar as várias formas de uso e usufruto do imóvel entre os coproprietários, ou, inclusive, o desfazimento do condomínioatravés de sua alienação consensual, por exemplo.
De toda sorte, mesmo após a partilha, a doutrina contemporânea do Direito Civil não permite conceber o direito real de propriedade dos herdeiros como absoluto e ilimitado assim como era no modelo oitocentista, no qual o arbítrio do titular lhe permitia exercer os poderes derivados do domínio com total liberdade. Sob a égide dos paradigmas da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – e, mais especificamente, da norma do art. 5º, XXIII, da CF/88 –, as faculdades correlatas à propriedade do bem imóvel devem obediência à sua função social, que se trata de uma limitação que é imposta ao proprietário por força do interesse coletivo:
A perspectiva teleológica da propriedade contemporânea, constitucionalizada, assim, se realiza no cumprimento dos relevantes interesses (e necessidade) de proprietários e não proprietários, uma vez que, coexistindo solidariamente, fomentarão o maior aproveitamento das utilidades dos bens, especialmente dos imóveis. Esqueça-se, tão somente, do aspecto das propriedades coletivas. Nelas a convivência, o respeito e interação são indiscutíveis. Fala-se da propriedade em sua mais pura acepção, ou seja, a titularidade dominial e a ligação da pessoa com o bem. Na medida em que o proprietário respeita o não proprietário, e vice-versa, cada qual cumprindo adequadamente com suas participações, nas atividades jurídicas a que se comprometeram, a função social se verificará por si e a liberdade pretendida se efetivará. (SILVA, 2018, p. 186)
Para além dos deveres impostos pela função social da propriedade sobre o imóvel, é possível que o proprietário também tenha que suportar outras limitações de natureza real em favor de terceiros. Neste sentido, o chamado direito real de habitação – ao contrário de outros direitos reais mais invasivos, como as servidões –, confere ao beneficiário apenas o direito de moradia sobre o bem imóvel. Porém, apesar de sua aparente simplicidade, o direito real de habitação pode engendrar sérios problemas práticos na seara jurídica – principalmente no âmbito sucessório entre os herdeiros.
Por questão de igualdade entre os consortes que contraíram o matrimônio, trata-se de direito que pode ser exercido tanto pelo marido quanto pela esposa, não obstante seja mais rotineiro que a viúva venha a postulá-lo no curso do inventário, ou até mesmo de modo posterior em Juízo. Em razão disso, considerando que, no direito de habitação, a figura da viúva é mais recorrente, apenas para fins de esclarecimento, será utilizado o termo “viúva” em algumas das passagens do presente trabalho, mas sem pretender que isso implique na exclusão do viúvo e do companheiro sobrevivente.
De toda sorte, a regra do art. 1.831 do Código Civil determina que, independentemente do regime de bens pactuado, assegurar-se-á o direito real de habitação em favor do cônjuge supérstite sobre o imóvel que era destinado à residência familiar, desde que seja o único de tal natureza a ser inventariado. Ou seja, segundo a inteligência da norma, a viúva que mantinha matrimônio com o de cujus poderá continuar morando na residência do casal – e tal regra também se estende aos companheiros, por força da Lei n.º 9.278/1996 e do próprio princípio da dignidade familiar, como recomenda o Enunciado n,º 117 da CJF[2].
É certo que, em muitas situações, o tema não provoca maior complexidade, porquanto é relativamente comum que os filhos do consorte que sobreviveu e do autor da herança desejem que a mãe ou o pai permaneça no imóvel que funcionava como moradia para o casal quando em vida, mas há casos nos quais o cônjuge supérstite não figura como genitor ou genitora comum de todosos descendentes envolvidos na partilha, dado que alguns desses herdeiros podem ser originários de outros casamentos ou uniões estáveis do de cujus.
Por consequência, é possível que nem todosnutram o mesmo sentimento de carinho pelo consorte sobrevivente. Aliás, costuma ser até trivial que os filhos exclusivos do falecidosintam desprezo ou rancor em relação à viúva do último matrimônio, que costuma ser vista como alguém que foi responsável por desestruturar a família anteriormente constituída, por ludibriar o genitor para que pudesse se aproveitar de seu acervo patrimonial, dentre outros estigmas que tendem a recair sobre a figura da nova esposa do de cujuse que se reforçam sobremaneira durante a partilha – momento em que, por diversas vezes, recusam-se a entregar algum bem ou valor para ela, ou mesmo a permitir que ela continue a morar na antiga residência do casal.
É no seio dessa discórdia que se origina uma vexata quaestio cuja solução se mostra complexa. Afinal, a inteligência do Código Civil determina que a propriedade se transmite aos herdeiros desde a abertura da sucessão – e, com ela, também as faculdades que são inerentes ao domínio, como o ius ab utendi, o direito de dispor e alienar a coisa móvel ou imóvel. Por outro lado, o art. 1.831 do mesmo diploma confere ao cônjuge supérstite o direito de moradia sobre o único imóvel a inventariar, de modo a engendrar uma possível antinomia prática entre a habitação pela viúva e o direito de propriedade dos demais herdeiros.
À exemplo do mencionado, os filhos de relacionamentos anteriores do de cujus, até mesmo por uma questão de antipatia,podem querer que a viúva seja retirada do único imóvel a fim de que ele seja alienado, enquanto os descendentes do último matrimônio, ao revés, podem ser contrários a isso em razãododesejo de que a mãe permaneça no lar que era núcleo da família. Surge, portanto, uma celeuma no tocante ao desfazimento do condomínio entre os herdeiros do bem imóvel e a possibilidade de o cônjuge supérstite habitá-lo na forma que foi planejada pelo Código Civil.
São pretensões que entram naturalmente em conflito, já que, se o imóvel for vendido para terceiros, não será possível que a viúva mantenha nele sua moradia – a despeito do direito real de habitação que lhe foi conferido pela Lei n.º 10.406/2002 –, e, por outro lado, caso se permita que ela continue a habitá-lo, a vontade dos herdeiros em realizar a venda não será concretizada, arrefecendo sobremaneira as faculdades decorrentes do condomínio que se formou quanto ao imóvel.
Claro, não que a venda em si seja algo impossível em termos jurídicos, porém, na prática,é certo que poucos compradores se interessariam em adquirir a propriedade de um bem imóvel no qual não poderiam exercer o direito de moradia de imediato, porquanto teriam de suportar a devida limitação que foi imposta pelo direito da viúva de habitá-lo. O fato de ter que aguardar algum tipo de renúncia por parte do consorte supérstite, ou, até mesmo, seu eventual óbito,inexoravelmente faz com que o bem se torne pouco atrativo em termos mercadológicos, prejudicando as chances de vendê-lo.
Assim, o presente texto se propõe a examinar essa possível tensão que pode surgir entre o direito póstumo que foi conferido pelo legislador ao cônjuge supérstite para habitar o lar que servia de moradia para a família do falecido e o desfazimento do condomínio dos herdeiros sobre o bem imóvel por intermédio de sua venda, de forma a sopesar qual dos dois direitos deverá ter uma maior preponderância: se o direito real de habitação em favor do consorte sobrevivente, ou o direito de propriedade dos herdeiros com a consequente alienação do imóvel.
Antes de iniciar a análise da vexata quaestio propriamente dita, é de suma importância averiguar a natureza jurídica do direito real de habitação para compreender as nuances e os aspectos principais do instituto para que, ao final, seja possível contrastá-lo com a hipótese de desfazimento do condomínio pela vontade dos herdeiros, dada a complexidade da questão que, para além de ser um problema atinente ao Direito das Coisas, adentra também na seara do Direito Sucessório e, a depender do caso concreto e dos conflitos existentes, até mesmo do Direito de Família; exigindo, portanto, um diálogo entre as normas jurídicas pautado na razoabilidade e na dignidade humana.
2 – A naturezado direito real de habitação sob as luzes da Constituição Federal de 1988
Conquanto não se trate deum objeto muito recorrente nos debates doutrinários e na jurisprudência, o direito real de habitação remonta desde o Código Civil de 1916, porém surgiu no contexto do Direito das Coisas. Com o adventoda Lei n.º 4.121/1962, também conhecido como Estatuto da Mulher Casada, conferiu-se o direito à habitação ao cônjuge supérstite que casou sob o regime da comunhão universal de bens, de modo a excluir, inicialmente, tanto os companheiros quanto os consortes que contraíram matrimônio noutros regimes.
Posteriormente, a companheira também foi contemplada pela Lei n.º 9.278/1996, embora a exigência de um regime de bens específico só veio a ser de fato extirpada pelo atual Código Civil de 2002 – inovação que guarda, sem dúvidas, influência dos paradigmas postos pela Constituição Federal de 1988 –, pois a previsão da Lei n.º 4.121/1962 passava ao largo de resolver o contexto de vulnerabilidade que afetava inúmeras mulheres que não possuíam uma residência própria para habitar após o falecimento de seu cônjuge ou companheiro, tendo em vista que o imóvel a inventariar poderia ser livremente alienado pelos herdeiros.
De toda sorte, conforme mencionado há pouco, o direito real de habitação está previsto pela regra do art. 1.831 do Código Civil e incidequanto ao imóvel que se destinava à residência da família, desde que fosse o único a inventariar; inferindo-se, a contrario sensu, que tal direito não subsiste se houverdois ou mais bens imóveis de mesmo jaez a serem inventariados. Atualmente, embora o regime de bens em si não influencie no reconhecimento da habitação, é necessário que exista casamento ou união estável (por força da equiparação) no momento da morte, pois, do contrário, não estará materializado o elemento nuclear do suporte fático do art. 1.831 do aludido diploma.
Embora não se faça menção expressa, também gera o direito real de habitação o casamento celebrado por pessoas que possuam o mesmo sexo, bem como a união estável homoafetiva. Sem dúvidas, pode parecer uma constatação despicienda sob as luzes do período contemporâneo, mas se deve ter em vista que, no início da vigência da Lei n.º 10.406/2002, muitos tribunais negavam o direito real de habitação nas uniões homoafetivas devido à taxatividade que fora imposta pela lei aos direitos reais como um todo. De toda sorte, trata-se de perspectiva que foi pacificamente superada pela jurisprudência atual.
Dito isso, é possível verificar, pela inteligência do art. 1.831 do Código Civil, que o direito do cônjuge supérstite de residir no único imóvel a inventariar também não depende da presença ou da ausência de alguma classe sucessória específica, de forma que ele poderá ser reconhecido ainda que haja concorrência com os descendentes, com os ascendentes, ou com os herdeiros testamentários, uma vez que o legislador, ao contrário da regra do art. 1.829 do Codex – que dispõe expressamente de uma ordem de preferência –, não fez nenhum tipo de exigência nesse sentido, bastando para sua caracterizaçãoque exista o matrimônio ao tempo do óbito e que o bem imóvel destinado à família seja o único a inventariar.
Isso porque o direito real de habitação do cônjuge supérstite pode ser classificado como ex vi legis, isto é, decorre da própria força da lei e, por isso, origina-se desde o preenchimento dos devidos pressupostos de materialização do art. 1.831 do Código Civil, motivo pelo qual uma hipotética sentençaproferida in juditio que o reconheçapossui eficácia meramente declaratória. Por isso, mesmo que não conste expressamente de escritura pública, não decai nem prescreve o referido direito, nem tampouco deixa de existir no mundo jurídico, já que sua origem remonta desde a abertura da sucessão:
É sucessão anômala que derroga o princípio da unidade da sucessão e, como se trata de um legado ex lege, transmite-se ao cônjuge um direito real limitado quanto a objeto individualmente considerado, certo e determinado, separado do patrimônio hereditário para tal fim, caracterizando tipicamente uma sucessão a título singular. A especial natureza do direito real de habitação, como um verdadeiro legado e finalidade definida, impede que ele desocupe o imóvel; mas, ao contrário, tem dele posse imediata, exercida ainda que sobre a legítima dos descendentes e ascendentes, embora a metade do acervo pertença aos sucessores do autor da herança. (GIORGIS, 2005, p. 124-125).
Ademais, convém salientar que não se pode aliená-lo para que terceiros venham a habitar o único imóvel, pois se trata de direito personalíssimo e vitalício,que se extingue com a morte da viúva e apenas por ela pode ser exercido – o que não impede, entretanto, que a mãe resida com os filhos no lar conjugal (aliás, a conservação da unidade familiar constituída é justamente um dos objetivos do instituto, como será explicado doravante). De toda sorte, como o próprio nome sugere, confere-se ao consorte sobrevivente apenas o poder de moradia, não se permitindo, por exemplo, que arbitre aluguéis ou explore economicamente o imóvel, sob pena de descaracterizar sua natureza protetiva da dignidade familiar[3].
Contudo, há grande polêmica tanto na doutrina quanto na jurisprudência se a cessação do estado de viuvez possui eficácia resolúvel quanto ao direito de habitação. O Códex de 1916 expressamente previa sua extinção em tal hipótese, mas o novo deixou de fazê-lo com a positivação do Código Civil de 2002, aumentando sobremaneira as dúvidas sobre o tema, de modo que, hoje, aindanão há uma resposta segura acerca do problema, nem tampouco cabe analisá-lo por ora, já que foge da temática proposta pelo presente trabalho.
Feitas estas considerações preliminares, a raiz constitucional do direito real de habitação pode ser localizada na norma do art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, haja vista que o instituto se traduz em uminstrumento para consolidar o direito à moradia ao proteger o núcleo familiar que fora constituído antes do falecimento do de cujus, de modo a permitir que nem o cônjuge supérstite nem seus eventuais filhos fiquem desamparados, garantindo um reforço ainda maior à tutela do bem de família.
Entretanto, não se trata apenas de garantir a mera moradia, pois o Código Civil de 2002 visa a assegurar a residência no imóvel específico onde se materializou o casamento ou a união estável, haja vista que o consorte sobrevivente guarda com ele vínculos afetivos em razão daquilo que viveu com o de cujus no local,de modo que, mais que um meio de não prejudicar a subsistência da viúva ou do viúvo que não possui outro local para morar, o direito real de habitação é outrossim inspirado por razões humanitárias e de proteção das memórias familiares vivenciadasdesde o matrimônio – por força inclusive da norma do art. 226 da Constituição Federal de 1988:
O fim social da norma legal é assegurar ao cônjuge sobrevivente a permanência no local onde conviveu com o de cujus, que é o espaço físico de suas referências afetivas e de relacionamento com as outras pessoas. O trauma da morte do outro cônjuge não deve ser agravado com o trauma de seu desenraizamento do espaço de vivência. O direito do cônjuge sobrevivente à vivência ou ao processo de viver prevalece ou é mais relevante que a posse direta do bem adquirido pelos parentes do de cujus. (LÔBO, 2021, p. 62).
Sem dúvidas, é usual que, muito antes do casamento, os enamoradosbusquem realizar o tão desejado sonho de adquirir a casa própriae, quando finalmente conseguem fazê-lo, é certo que não se tratará apenas de um bem material como outro qualquer, mas da concretização de um desígnio comum que foi edificado pelo casal, por vezes, durante longos anos de planejamento. Há toda uma questão semiótica por trás do lar que foi escolhido para servir como núcleo da família, de forma que andou muito bem o legislador ao dispor na Lei n.º 10.406/2002 que o direito real de habitação em favor daquele que sobreviveu independe do regime de bens que fora eventualmente pactuado pelos consortes, pois se visa a proteger, sobretudo, a memória familiar.
Os atuais moldes do referido direito são consequência de um fenômeno que ficou conhecido na seara civilista contemporânea como despatrimonialização das relações jurídico-privadas, pois o viés patrimonial-imobiliário que era característico do modelo oitocentista do Código Civil de 1916, inspirado por ideologias liberais,deu lugar ao primadodo princípio constitucional da dignidade humana (TEPEDINO, 1997, p. 17), de modo que as mais variadas normas jurídicas, para além de simples postulados abstratos, devem ter por escopo não apenas a proteção pecuniária, mas a edificação do homem em sociedade enquanto pessoa e sujeito de direitos e deveres.
O aspecto patrimonial e econômico das relações jurídico-privadas deixa de ter fim em si mesmo e incorpora a função de salvaguardar valores muito maiores (FACHIN, 2002, p. 108), razão pela qual, nesse contexto, o direito real de habitação não pode mais ser visto como apenas um meio de concretização da moradia prevista pela norma do art. 6º da Constituição Federal de 1988, mas sobretudo como um instrumento para preservar as condições de vida, o ambiente e as relações familiares do lar (RODRIGUES, 2002, p. 116), permitindo que a viúva e seus filhos conservem a afetividade que fora construída no local.
Por isso, o cônjuge supérstite poderá habitar o imóvel com sua família de maneira gratuita (CARVALHO, 2019, p. 498), não admitindo a lei que os herdeiros necessários ou testamentários arbitrem aluguéis em seu desfavor, nem tampouco exijam quaisquer tipos de valores ou contraprestações pela moradia. O teor humanitário do instituto afasta pretensões afins, como já decidiu a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp n.º 1846167/SP, estendendo a impossibilidade da cobrança de alugueres inclusive quanto à filha que também residia no imóvel com a viúva, como será explicado melhor doravante.
Assim, é inegável a essência constitucional do direito real de habitação em favor do cônjuge supérstite nos moldes positivados pelo Código Civil de 2002, haja vista que se trata, sobretudo, de uma garantia de proteção material e imaterial do núcleo familiar, de modo que o direito em análise transcende a função de moradia propriamente dita ao considerar a afetividade como um de seus aspectos basilares, evidenciando que o lar conjugal em si é um instituto que merece a devida tutela pelo Poder Público não apenas em seu sentido patrimonial por meio da figura do bem de família,mas também no que concerne aos valores sentimentais e afetivos que foram engendrados durante o convívio matrimonial entre a viúva e o de cujus.
3 – A habitação do imóvel pela viúva ea limitação da propriedade dos herdeiros: a necessidade de ponderar as circunstâncias de cada caso concreto
O conteúdo exposto no capítulo anterior evidencia que, prima facie, o direito real de habitação não impede a venda do imóvel em si – dada a natureza real que se fixa sobre a coisa –, porém acaba por cercear alguns dos principais poderes decorrentes da propriedade, tais quais os de residir e fruir do bem. Entretanto, tal constatação a priori não é capaz de resolver, por si só, a problemática inicialmente aludida que pode surgir no contexto sucessório, no qual os herdeiros figurem como condôminos do único bem que fora inventariado e pretendam aliená-lo, ao passo de que o cônjuge supérstite desejemanter a moradiano mesmo referido imóvel.
De início, é de suma importância reiterar que o direito real de habitação possui natureza personalíssima e vitalícia – logo, temporária por essência, uma vez que, com a morte da viúva, findará também a possibilidade fática e jurídica de habitar o imóvel. Deste modo, ao contrário da servidão e de outros ônus de mesma estirpe, é possível perceber que a faculdade jurídica em análise não ostenta caráter permanente e que se trata do direito real mais restrito do rol do art. 1.225 do Código Civil, haja vista que é uma espécie de uso com finalidade exclusiva de habitação, como já explicado.
Num primeiro momento, considerando que a propriedade é, ao contrário, o mais amplo e completo dos direitos reais, pode-se cogitar que a vontade dos herdeiros em desfazer o condomínio sempre deva prevalecer sobre o direito real de habitação do consorte supérstite – à semelhança do que ocorre na Lei n.º 8.245/1991 com a figura do locatário. Contudo, foi possível perceber que mesmo o domínio não pode mais ser concebido como um direito absoluto e ilimitado, sendo necessário que ele suporte as limitações que podem decorrer do caso concreto e, sobretudo, dos desdobramentos de sua função social perante a coletividade.
Isso também não significa que o direito real de habitação sempre terá precedência, pois, a bem da verdade, exige-se que o magistrado pondere as circunstâncias em cada caso concreto, tendo em vista que se trata de matéria que apresenta demasiada sensibilidade para que seja decidida apenas com a mera subsunção da regra aos fatos.No entanto, se estiverem satisfeitos os requisitos do art. 1.831 do Código Civil, pelo menos a princípio, dever-se-á reconhecero direito real de habitação em favor do consorte sobrevivente, de modo a mantê-lo no lar conjugal mesmo que em contrariedade às vontades dos herdeiros por desejo em desfazer o condomínio.
Nesse sentido, noRecurso Especial n.º 1212121/RJ, julgado em 03/12/2013, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o direito real de habitação limita a propriedade, devendo suportá-lo os condôminos herdeiros do de cujusenquanto a viúva estivesse viva, porquanto se trata de um direito ex vis legisque se destina a manter o cônjuge supérstite no imóvel destinado à residência familiar, de modo que seu exercício não depende da anuênciados descendentes do de cujus – ao contrário do mero comodato, cuja origem não se dá por imposição da lei, mas por um acordo de vontades entre as partes que pactuaram a respectiva moradia.
A mesma ratio decidendi foi aplicada recentemente no já aludidoRecurso Especial n.º 1.846.167/SP, julgado em 11/02/2021 pela 3ª Turma da Corte Superior, no qual se destacou que o direito real de habitação visa a proteger o núcleo familiar e não pressupõe o pagamento de alugueres ou congêneres aos condôminos, de modo que não seria possível exigir nenhuma espécie de contrapartida financeira do cônjuge supérstite – e até mesmo das pessoas que com ele residem – em favor dos herdeiros, uma vez que a habitação limitaria os poderes decorrentes da propriedade.
Ademais, o mesmo acórdão proferido pela 3ª Turma do STJ também salientou que o direito real de habitação não admite a extinção do condomínio – como destacou a ministra Nancy Andrighi –, pois deveria preponderar sobre a venda do imóvel a finalidade protetiva de garantir à viúva a moradia digna no mesmo local onde residia com sua família. Até mesmo porque, do contrário, negar-se-ia vigência ao disposto no art. 1.831 do Código Civil, arrefecendo sobremaneira sua força normativa se a moradia do cônjuge supérstite não pudesse ser oposta à alienação do bem. Assim, preenchidos os pressupostos legais, entendeu a Corte Superior pela precedência do direito real de habitação à venda do imóvel, como demonstra o seguinte trecho da ementa do recente julgado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE EXTINÇÃO DE CONDOMÍNIO CUMULADA COM COBRANÇA DE ALUGUÉIS. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. COMPANHEIRA SUPÉRSTITE. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO CONFIGURAÇÃO. EXTINÇÃO DE CONDOMÍNIO E ALIENAÇÃO DE IMÓVEL COMUM. INVIABILIDADE. ALUGUÉIS. DESCABIMENTO. JULGAMENTO: CPC/2015.
(...)
7. Aos herdeiros não é autorizado exigir a extinção do condomínio e a alienação do bem imóvel comum enquanto perdurar o direito real de habitação (REsp 107.273/PR; REsp 234.276/RJ). A intromissão do Estado-legislador na livre capacidade das pessoas disporem dos respectivos patrimônios só se justifica pela igualmente relevante proteção constitucional outorgada à família (203, I, CF/88), que permite, em exercício de ponderação de valores, a mitigação de um deles – in casu – dos direitos inerentes à propriedade, para assegurar a máxima efetividade do interesse prevalente, que na espécie é a proteção ao grupo familiar.
8. O direito real de habitação tem caráter gratuito, razão pela qual os herdeiros não podem exigir remuneração do companheiro sobrevivente pelo uso do imóvel. Seria um contrassenso atribuir-lhe a prerrogativa de permanecer no imóvel em que residia antes do falecimento do seu companheiro, e, ao mesmo tempo, exigir dele uma contrapartida pelo uso exclusivo.
9. Em virtude do exame do mérito, por meio do qual foi acolhida a tese sustentada pelas recorrentes, fica prejudicada a análise do dissídio jurisprudencial.
10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, provido.
(STJ - REsp: 1846167 SP 2019/0326210-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 09/02/2021, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/02/2021)
O raciocínio jurídico empregado pelo Superior Tribunal de Justiça evidencia que o direito real de habitação não se destina apenas à moradia, mas sobretudo à proteção do núcleo familiar. Como já explicado no capítulo anterior, o referido direito pode ser vislumbrado como um instrumento para a concretização da dignidade humana (XAVIER, 2014, p. 279), uma vez que a manutenção do consorte supérstite no imóvel que era destinado à residência familiarimplica numa continuidade das memórias afetivas que se engendraram em razão doconvívio com ode cujus.
Com base nisso, pensa o presente autor que a extinção do condomínio não é possível nem mesmo se o único imóvel a inventariar for de elevada valia (v.g. uma mansão) e se sua venda permitir à viúva a aquisição de outras casas ou apartamentos, tendo em vista que nenhum outro imóvel será tão especial e único quanto aquele que foi o palco das vivências familiares e amorosas do casal. Há de ser superada a visão patrimonial e oitocentista que orientava os intérpretes da lei, porquanto se trata não apenas de promover a moradia, e sim de fazê-lo de maneira digna e que sobretudo possa reconfortar a dor que o falecimento provocou tanto nos filhos quanto no cônjuge sobrevivente.
Mesmo que o pedido de reconhecimento do direito real de habitação não seja formulado em Juízo no curso do processo do inventário, não se autoriza a alienação do único imóvel destinado à residência familiar se a viúva dele não renunciou expressamente nos autos do inventário ou por meio de escritura pública, nos termos do Enunciado n.º 271 da III Jornada de Direito Civil[4], embora exista posição minoritária no sentido de que se trata de garantia não renunciável, tendo em vista que toca o direito à moradia (TARTUCE, 2021, p. 280). A formalidade se impõe em razão da natureza real do direito, não se admitindo nem a renúncia tácita, nem tampouco sua preclusão, de modo que a mera autorização do cônjuge supérstite para que ocorra a venda do bem, por si só, não afasta o direito real de habitação caso os demais pressupostos do art. 1.831 do Código Civil tenham sido preenchidos.
A renúncia expressa, para além de decorrer da natureza real, faz-se necessária sobretudo porque, na prática, é bastante comum que o consorte sobrevivente seja uma pessoa desprovida de conhecimentos jurídicos – e, por vezes, humilde –, sendo provável que a viúva ou o viúvo sequer tenham cogitado na existência de um direito real de habitação, pois, no imaginário popular, perdura a ideia de que somente os proprietários podem decidir sobre a moradia, enquanto, ao contrário do senso comum, a jurisprudência nacional tem entendido que o referido direito limita a propriedade e impede o desfazimento do condomínio pelos herdeiros. Assim, é de suma importância que o patrono da causa informe a viúva sobre seus direitos e, caso ela concorde com a venda e não deseje continuar a moradia no lar conjugal, seja lavrado instrumento público no qual ela renuncie expressamente à habitação.
Por outro lado, para que o direito real de habitação produza efeitos no mundo jurídico, prescinde-se da inscrição no cartório de registro de imóveis local, como já decidiu, por diversas vezes, o Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 565.820/PR, Terceira Turma, DJ 14/03/2005; e REsp n.º 282.716/SP, Terceira Turma, DJ 10/04/2006), dada sua origem ex vi legis anteriormente explicada. Ademais, é possível, por meio de testamento, instituir o cônjuge como legatário do imóvel, mas não há nenhum tipo de exigência legal afim, tendo em vista a própria natureza do direito real de habitação:
A finalidade deste legado ex lege de habitação é dúplice: garantir certa qualidade de vida ao cônjuge supérstite e impedir que após o óbito do outro cônjuge seja ele excluído do imóvel em que o casal residia, sendo ele o único bem residencial do casal a ser inventariado. Com efeito, se os filhos do falecido e o cônjuge sobrevivente não se entendessem, poderia a qualquer tempo ser extinto o condomínio, com a perda da posse. Com o direito real de habitação, embora partilhado o imóvel entre os herdeiros, o cônjuge reserva para si o direito gratuito de moradia, independente da existência de testamento a seu favor. (CHAVES; ROSENVALD, 2013, p. 856-858).
Em razão de ter como escopo assegurar a moradia do imóvel específico que era utilizado para a residência familiar, o fato de o cônjuge supérstite ser proprietário de outros imóveis particulares não afasta o direito real de habitação, como já decidiu a jurisprudência em mais de uma oportunidade. Para exemplificar, no Agravo de Instrumento n.º 0711296-11.2020.8.07.0000, julgado em 12/08/2020, a 3ª Turma Cível do TJDFT entendeu que o fato de a viúva ser proprietária de mais de um imóvel não obstaria o direito real de habitação, dado que ele teria por escopo impedir que eladeixe de morar onde construiu o vínculo de convivência com o falecido.
No mesmo sentido, no Recurso Especial n.º 1582178/RJ, o STJ proferiu acórdão a fim de esclarecer que o art. 1.831 do Código Civil, ao mencionar a exigência do único imóvel a inventariar, não aludiu em nenhum momento ao patrimônio do consorte sobrevivente, de modo que não é requisito da caracterização do direito real de habitação a inexistência de outros bens no acervo da viúva. O acórdão também explica que o referido instituto possui razões de ordem humanitária e social, pois visa a proteger sobretudo o vínculo afetivo e psicológico que se formou em relação ao imóvel onde a viúva residia com seu falecido esposo. Aliás, no REsp n.º 1134387/SP, o STJ se manifestou no sentido de reconhecer o referido direito ainda que os descendentes sejam filhos exclusivos do de cujus.
Noutro giro, é necessário que o magistrado pondere as circunstâncias específicas de cada caso concreto ao analisar o conflito entre a extinção do condomínio e o direito real de habitação do cônjuge supérstite. Na Apelação Cível n.º 0006468-41.2006.8.19.0203, julgada em 17/12/2009, a 18ª Câmara Cível do TJRJ, apesar de a companheira sobrevivente preencher todos os requisitos elencados pelo art. 1.831 da Lei n.º 10.406/2002, bem como pela Lei n.º 9.278/1996, proferiu-se acórdão para negar o direito real de habitação da companheira, eis que, desde o falecimento de seu companheiro – com o qual não teve filhos –,ela se mudou de Município e passou a viver em residência própria.
Não obstante o art. 1.831 do Código Civil não mencione nenhuma proibição no sentido de que o cônjuge supérstite venha a residirem outro bem imóvel,contrariaria a própria ratio legisdo dispositivo o reconhecimento de direito real de habitação em favor de uma companheira que deixou de morar no antigo lar do falecido. Afinal, o ato de se mudar de Município de forma espontânea se trata de conduta incompatível com a de alguém que preza pelas memórias familiares que foram vivenciadas no imóvel do de cujus, demonstrando que o direito de habitação, em tal caso, não cumpripria com sua finalidade primordial de proteção do núcleo familiar.
Por outro lado, se a referida companheira apenas se ausentasse temporariamente do único imóvel destinado à residência familiar, não se teria descaracterizado o direito real de habitação. Já na Apelação Cível nº 0039081-65.2011.8.19.0001, a 10ª Câmara Cível do TJRJ, em 04/03/2015,rejeitou o pleito de reconhecimento do direito real de habitação em favor do cônjuge supérstite em razão de que, para além de ser proprietária de outros bens imóveis, não restou comprovado nos autos que a viúva sequer veio a residir no imóvel de seu falecido esposo, de modo que não haveria de se falar em proteção do núcleo familiar no que tange a uma casa que nunca foi usada como moradia por ela.
Em face ao exposto, não é possível – nem tampouco recomendável – afirmar in abstractoque o direito real de habitação deva limitar a propriedade dos herdeiros do falecido em todas situações, mostrando-se imprescindível a análise atenta do magistrado quanto às circunstâncias de cada caso concreto, pois só assim será possível dizer se foram preenchidos todos os requisitos do art. 1.831 do Código Civil, e ainda, no caso do reconhecimento do direito real de habitação em favor do cônjuge ou companheiro sobreviventes, se será cumprido o escopo de proteção do núcleo familiar e das memórias afetivas que foram construídas no decorrer do relacionamento com o de cujus.
Entretanto, não é motivo suficiente para autorizar a extinção do condomínio dos herdeiros e a consequente alienação do imóvel, em detrimento da moradia do cônjuge supérstite, a pobreza de um ou de alguns dos sucessores, ou mesmo a presença de herdeiro que seja deficiente físico ou mental, e se infere tal conclusão por duas razões básicas. Em primeiro lugar, a herança nunca teve por finalidade o enriquecimento de seus destinatários, pois, se assim o pretendesse o legislador, estimular-se-ia a desídia entre os herdeiros – o que é completamente indesejável para a sociedade. Em segundo, aos sucessores deficientes, e mesmo àqueles menos favorecidos, existem inúmeras políticas públicas que foram implementadas para combater a pobreza e sobretudo fomentar a inclusão social da pessoa com deficiência, de modo que não é papel da herança resolver nenhuma destas questões.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), por exemplo, pode ser requerido por quem tenha deficiência e atenda aos requisitos que foram postos pela lei, mas há também diversos outros programas que podem auxiliar os sucessores de menor poder aquisitivo, tais como o Auxílio Brasil (ou Bolsa Família), o Salário-Família aos contribuintes, dentre outros programas regionais e locais. Por isso, não se mostra razoável afastar o direito real de habitação da viúvaa pretexto de resolver tais problemas, porquanto, além de vilipendiar o disposto pelo art. 1.831 do Código Civil combinado com a norma do art. 6º da Constituição Federal de 1988, tal solução aviltaria a proteção do núcleo familiar e a continuidade do vínculo afetivo– e de forma desnecessária, dado que existem outros meios de resolver as aludidas situações sem comprometer a moradia do cônjuge supérstite e de seus filhos.
Assim, a constitucionalização das relações jurídico-privadas trouxe diversos avanços de ordem humanista sobretudo ao conferir ao cônjuge e ao companheiro sobreviventes o direito real de habitação sobre o único imóvel a inventariar, e que era utilizado para fins de residência da família, uma vez que se trata de um importante meio para garantir a moradia do viúvo ou da viúva e para proteger o núcleo familiar e seus demais desdobramentos afetivos; devendo, portanto, preponderar, a princípio – ressalvadas as exceções de cada caso concreto –, sobre a vontade dos herdeiros, de modo a limitar temporariamente seus direitos de propriedade e impedir o desfazimento do condomínio pela alienação do imóvel utilizado como moradia pelo cônjuge ou companheiro supérstites.
Conclusão
A origem constitucional se mostra comum tanto em relação ao direito de propriedade quanto ao direito real de habitação que foi conferido pela Lei n.º 10.406/2002 em favor do cônjuge supérstite. Contudo, posto que ambas figuras sejam de grande valia jurídica,diante de um eventualconflito de interesses provocado pela pretensão de desfazimento do condomínio dos herdeiros sobre o único bem imóvel, em face do intuito do consorte sobrevivente em continuar morando no mesmo lar que figura como objeto de interesse de venda pelos herdeiros, dever-se-á resolver a lide em prol do viúvo ou da viúva, ressalvadas as circunstâncias de cada caso concreto que possam descaracterizar, ou até mesmo desvirtuara finalidade protetiva do direito real de habitação.
Embora não seja algo pacífico na doutrina, as reflexões deste trabalho levam o presente autor a pensar que, por se inserir dentro do contexto das limitações da propriedade, o dever dos herdeiros de suportar a moradia do cônjuge supérstite, mesmo que contrária aos seus desígnios,não só deriva como também compõe a função social da propriedade na medida em que o direito real de habitação tem por fito a proteção do núcleo familiar – que é algo muito maior e mais valioso que a mera contrapartida em pecúnia que a venda do imóvel acarretaria aos herdeiros em razão do desfazimento do condomínio. Entretanto, sempre deve o magistrado averiguar se estão presentes seus requisitos e se a finalidade da moradia será efetivamente cumprida, nos termos do art. 1.831 do Código Civil.
Assim, a manutenção do consorte sobrevivente no lar do falecido é a melhor forma de garantir que continuem vivos os sentimentos e as boaslembranças para com ode cujus, evidenciando que, não obstante o direito real de habitação não seja um instituto tão presente nos debates acadêmicos quanto deveria,sua importância prática ainda é muito grande devido às razões humanitárias que ele comporta ao preservar a unidade familiar que foi constituída, representando inclusive uma relevante alteração de mentalidade que decorreu principalmente da constitucionalização das relações jurídico-privadas, e que colabora para construir um Direito Civil mais justo e capaz de edificar a dignidade humana.
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XAVIER, José Tadeu Neves. O direito real de habitação na sucessão do companheiro. In: Revista de Direito Privado. Vol. 15, n. 59, jul./set 2014.
[1] Graduando em Direito pelo UniCEUB.
[2] “O direito real de habitação deve ser estendido ao companheiro”.
[3] Entretanto, há doutrinadores que entendem que, caso a locação decorra de necessidade concreta e o valor dos aluguéis seja revertido para manutenção de outra moradia do cônjuge supérstite, ou até mesmo para sua subsistência, deve ser mantido o direito real de habitação (TARTUCE, 2021, p. 277), sendo que o TJRS já proferiu decisão nesse sentido: “(...)Ainda que o cônjuge não resida no imóvel, sendo este o único bem, possui direito real de habitação. Estando o imóvel locado, e sendo o valor dos aluguéis utilizados na subsistência do cônjuge, o valor deve ser auferido integralmente pelo cônjuge” (TJRS, Agravo 70027892637, 8.ª Câmara Cível, Caxias do Sul, Rel. Des. Rui Portanova, j. 12.03.2009).
[4] “O cônjuge pode renunciar ao direito real de habitação nos autos do inventário ou por escritura pública, sem prejuízo de sua participação na herança”.
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