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A herança digital como instituto de Direito Sucessório e a doutrina zenista
Jones Figueirêdo Alves
Introdução.
Em webinário de lançamento (30.09.21) da “Revista do Advogado”, de n. 151 (set/2021), com estudos dedicados a Zeno Veloso, a Associação dos Advogados de São Paulo (AASPc, sob direção de Viviane Girardi (presidente) e Fátima Cristina Bonassa (vice-pres./diretora da revista), homenageou o saudoso jurista, símbolo do direito privado contemporâneo.
A edição, coordenada por Giselda Hironaka e José Fernando Simão, reuniu vinte e sete articulistas, com a participação dos juristas portugueses Fernando Araújo e Antonio Pinto Monteiro e deste articulista, quando tratamos sobre a herança digital como novo instituto de direito sucessório.
Zeno Veloso, que o direito privado recebeu de sua magna doutrina a inspiração para realizar-se como um melhor direito, exerceu a aguda percepção de o direito ser produzido por sua utilidade à vida. Como a própria vida haverá de ser útil em valor intrinseco dos seus essenciais fins. Útil sem retrocessos, útil ao mundo ideal que habita dentro de nós, útil como sabedoria.
Zeno tinha essa magia de encantamentos, festejava a vida e o direito no sorriso comprometido com a amizade sólida. Fornecendo ensinanças, iluminando as ciências em palavras eruditas e didáticas, emocionando plateias, futurizando os direitos. Com simplicidade dos sábios, um épico em nossa cultura juridica ao tempo de sua obra demandar, motivar e resultar grandes avanços do direito e da justiça.
Missionário de reflexões juridicas humanistas e transformadoras, arregimentadas pelo brilho de sua inteligencia, Zeno revolucionou os direitos das famílias e das sucessões:
(i) No direito familista, desponta, o instituto da multiparentalidade, tema 662 do Supremo Tribunal Federal, quando em 21.09.2016, no RE n. 898.060-SC, sufragada a tese juridica de a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impedir o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios. Não é demais anotar, Zeno Veloso vinte anos antes, ao tratar do estatuto da filiação (1997) (01) haver preconizado a tese da socioafetividade como orientadora da filiação, a partir da posse do estado de filho.
(ii) No direito sucessório, incursionou com os mais primorosos estudos, destaca-se o “Direito hereditário do cônjuge e do companheiro” (2010) (02) onde discutiu a disciplina do art. 1.790 do Código Civil no trato da participação do companheiro na sucessão.
Assim, o STF no Tema 809 de Repercussão Geral, reconheceu, de forma incidental (10.05.17), a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 e declarou o direito de a convivente participar da herança de seu companheiro diante do regime jurídico do art. 1.829 do Código Civil/2002. A sua obra foi citada pelo Relator do RE 878.694-MG, Min. Luís Roberto Barroso, em arrimo da inconstitucionalidade declarada por distinção discriminatória do regime sucessório entre cônjuges e companheiros.
Notabilizado no direito sucessório por seus estudos testamentários, (indicando insuficiências de conteúdo do art. 1.216 Código Civil/1916), no tocante às heranças digitais, Zeno Veloso dedicou seu último tempo de jurista, preocupado com uma sistematização legal adequada à transmissão hereditária.
A tanto, empreendeu importantes reflexões, permutando ideias com juristas de sua maior amizade como Flavio Tartuce, Giselda Hironaka, José Fernando Simão, Mário Delgado e com Karina Nunes Fritz, estudiosa do tema (para saber das novidades da Alemanha).
O seu interesse precursor, conferido ao tema mais polemico do direito sucessório, como admitido por Giselda Hironaka, animou nosso artigo sobre herança digital, a convite da AASP, instituição legitimada em sua reconhecida tradição cultural à homenagem a Zeno. Não seria diferente a motivação senão compartilhar todas as inquietações de jurista que aproximou o direito ao seu futuro, cuidando do novo instituto jurídico.
Instituto novo. A Herança Digital, desafia a futurização do direito sucessório, suscitando questionamentos, a partir de sua conceitualização, resumida na doutrina como o acervo resultante de todo o conteúdo criado e armazenado em rede pela pessoa do morto.
Há um vácuo normativo na ordem jurídica, visualizada pelo Código Civil, pelo Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) e pela LGPD (Lei n. 13.709/2018), que silencia a respeito, em seus diplomas legais.
Como o direito sucessório tratará os ativos digitais constituídos em uma nova categoria dos bens sem o devido regramento da transmissão hereditária? Ou como o titular dos bens dispor a respeito deles, após a sua morte? Como instituir uma tutela póstuma dos dados pessoais e assegurar a privacidade?
A propósito, estudo do testamento de bens digitais, bem ao gosto de Zeno Veloso, foi produzido por Eduardo Chaves e Julia Guimarães. Exaltam que “o testamento elencando a existência de bens eletrônicos e manifestando a vontade impede que seja necessária a intervenção do Poder Judiciário para decidir sobre o tema e, consequentemente, garante que a vontade do testador seja impositiva para seus herdeiros” (03)
De saída, à mingua de normatividade específica, sustento que a resposta imediata a esse desafio será admitir, no efeito da transmissão imediata aos herdeiros legítimos dos bens da herança (art. 1.784 do CC), a acepção do “todo unitário” constante do art. 1.791 do Código Civil. Tem-se em conta que a herança digital também nele se contempla. Esta é a posição de Flávio Tartuce, adiantando que o princípio da sucessão não distingue a natureza dos bens.
Os ativos digitais poderão ser suscetíveis de negociações comerciais ou não, de reconhecido conteúdo econômico-patrimonial ou, diferentemente, de exclusivos valores existenciais.
Nesse passo, admitido todo conteúdo digital suscetível de herança, problematização diz respeito à reserva de intimidade do falecido, a saber de suas contas pessoais, e-mails e todos os demais arquivos digitais, situados como dados existenciais do extinto usuário; na hipótese, eventualmente não transmissíveis. Haveria, com sua morte, também a extinção dos bens existenciais, assegurando-lhe a privacidade post-mortem?
Como regular a questão das plataformas digitais de aplicativos em dispondo ou não de poder absoluto e exclusivo de término-instante das contas, no evento-morte do titular, ou para executar as distinções, tarefa adequada somente à figura do contato-herdeiro?
A este cumpriria implementar distinção entre o estritamente pessoal, insuscetível de transmissibilidade, e o de “conveniência memorial”, cabendo-lhe, por decisivo, transferir aos herdeiros os acervos constitutivos de informações necessárias à preservação da memória.do falecido.
À falta de indicação nominal prévia do “contato-herdeiro”, cumprirá:
(i) o inventariante, além de arrolar bens da herança digital objetiva, consistente de conteúdos digitais patrimoniais (v.g. ativos digitais em contas bancárias, aplicações financeiras, blogs em sites, músicas e livros digitais). indicar quem terá acesso aos conteúdos digitais de caráter privado (bens existenciais), que integrarão a herança (fotos, correspondências, diários biográficos, v.g.) distinguindo-os daqueles que se apresentem como “extensões da privacidade” do autor da herança e, por isso mesmo, intransmissíveis.
(ii) o juiz do inventário nomear a pessoa de confiança indicada ou profissional com referido múnus (ou empresa especializada), que reconheça, dentro da herança digital, bens que constituam direitos exclusivos e pessoais do falecido, “de vinculação intrínseca à pessoa do titular”, “circunstância que impede transferência aos herdeiros e impõe sua extinção com a morte do titular” (04).
No caso, segundo Flávio Tartuce, cuidam-se de bens de eficácia pessoal, interpessoal e social da vida privada do de cujus, que exigem respeito.
Impõe-se também saber se “somente é possível a transmissão mortis causa da herança digital por ato de última vontade (“sucessão testamentária”)? Ou deve haver, por espécie, também sucessão legítima? Flávio Tartuce oferece visão densa ponderando suficiente a distinção entre os bens personalíssimos e não personalíssimos, sendo transmitidos por sucessão estes últimos. Bons exemplos serão os perfis de mídias sociais como pessoais e não pessoais, valendo conferir o valor de cada perfil.
Dos ativos digitais. Bens digitais patrimoniais se apresentam em diversidade tal à transmissibilidade sucessória, que a despeito da falta da normatividade específica, bem demonstram conjunto exato do que seja herança digital robusta em sua consistência.
A monetização dos perfis, o marketing digital que persevera nos sites; blogs dos “influencers” ou “youtubers” que, falecidos, legam uma eventual continuidade dos sítios e espaços na internet; moedas virtuais (criptomoedas), com valores mensuráveis na realidade de mercado, fortunas não visíveis (05); pontos de milhagem acumulados em programas de fidelidade do falecido; aquisição de músicas, livros ou files em aplicativos digitais; jogos on line com valores acumulados, são exemplos dos muitos ativos digitais existentes.
Impende avaliar os bens digitais imateriais, que se traduzem nas redes sociais, pelo acervo de contas, postagens, contatos pessoais, likes e seguidores, que podem significar elementos sucessórios ou não. Designadamente, os e-mails e mensagens, senhas de programas e outros bens adquiridos em rede, integram o suporte virtual e estão a merecer o devido tratamento legal.
Do leading case alemão. O mais importante julgado no tema herança digital surge do leading case da “garota de Berlim”, uma adolescente morta em trágico acidente no metrô da cidade (06).
O Bundesgerichtshof (BGH) admitiu acesso ao conteúdo da conta digital da jovem, por parte dos pais, interessados em apurar o seu suposto suicídio e as suas causas (27.08.2020). O Tribunal entendeu que o contrato de uso da plataforma digital, entre a usuária e o Facebook, pelo princípio da sucessão universal (§ 1922, I, BGB) transmitia-se, automaticamente, aos seus genitores e somente em havendo declaração expressa da falecida, em contrário, o acesso seria negado.
Decidiu-se pela nulidade de cláusula contratual da intransmissibilidade da conta, restritiva ao próprio fim do contrato, quando ocorrendo, pela disposição pactuada, vir o seu acervo resultar na posse e propriedade da empresa gestora da plataforma. Diante do julgado paradigma, sobreveio prevista nos contratos de uso da rede social a indicação pelo titular, de um “contato-herdeiro”, a decidir pelo uso continuado ou não e/ou o destino da conta do titular falecido.
Karina Nunes Fritz confronta o julgado alemão com decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (09.03.21) (07) que “chancelou a apropriação pelo Facebook da conta de usuária, em detrimentos dos herdeiros”. No caso, a genitora, após morte da filha usuária da rede social, dispondo da senha do seu perfil, passou a usá-lo com novos registros de eventos de sua vida e a manter conversações com seus contatos. Todavia, o Facebook encerrou a conta, extinguindo o perfil existente. A decisão paulista apontou que a conta teria caráter pessoal (existencial) e, por isso, o seu conteúdo não seria transmissível.
São decisões que demonstram o quanto necessário legislar a respeito e diante da insuficiência normativa, conveniente suprir as lacunas da lei para bem orientar a herança digital, a merecer tratamento sucessório.
Conclusões. De efeito, reflexões são estratégicas no sentido de que:
(i) O direito sucessório deve considerar o que forma a herança digital e o destino dos bens que a caracterizam, sob pena de extinta com o morto a sua própria herança digital, herança digital não existir nenhuma, em contrassenso com a irrecusável realidade dos bens jurídicos digitais;
(ii) A expressão da vontade do usuário é o paradigma decisório; diante da falta de contrariedade expressa, a herança digital transmite-se, com a abertura da sucessão, por princípio inerente do direito sucessório (princípio da saisine). De tradição francesa (sec. XIII), antes do nosso Código Civil, aportou no direito brasileiro, pelo menos com Alvará de 1754.
(iii) De tudo convém e, antes, recomenda, tenhamos o planejamento da destinação dos bens, designadamente dos bens digitais, diante da evolução tecnológica que nos envolve, inexoravelmente, no mundo virtual.
Há uma necessidade urgente de tratamento legal à herança digital em fenômeno de enfuturamento do direito sucessório.
Atualmente, concentram-se no PLS n. 6.468/2019 e PL n.3.050/2020, as propostas que alteram o Código Civil, introduzindo parágrafo único ao seu art. 1.788, a dizer transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais de titularidade do autor da herança. Apenas isso, sem uma disciplina exauriente
Diante do significado de a doutrina ser imprescindível ao novo instituto jurídico, Zeno Veloso é lembrado, como referencial ao presente desafio do direito sucessório.
A inspiração de sua presença, como doutrinador e pessoa, renova-se na observação fiel de José Baptista Villela, expressando:
“Zeno é um dialético, por excelência. Nada pensa de que em seguida não desconfie. O seu espírito é uma espécie de campo de batalha, onde a cada afirmação corresponde uma contestação oposta com vigor e parcialidade. Nada admite que não antes tenha passado pelo fogo da contraprova”.
A dialética da doutrina zenista é uma herança. Resulta digitalizada no espírito de todos nós. Ele, o grande acervo.
Referências:
(01) VELOSO, Zeno. Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade. Prefácio: João Baptista Vilela. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, 228 p.
(02) VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. Prefácio: Rodrigo da Cunha Pereira. São Paulo: Saraiva, 2010, 224 p.
(03) CHAVES, Eduardo Vital. GUIMARÃES, Julia Fernandes. Testamento de bens digitais evita intervenção do Judiciário no assunto. Consultor Jurídico, 02.11.2020. Web: https://www.conjur.com.br/2020-nov-02/chaves-guimaraes-testamento-bens-digitais
(04) FRITZ, Karina Nunes. Herança digital: quem tem legitimidade para ficar com conteúdo digital do falecido? In: Guilherme Magalhães Martins e João Victor Rozatti Longhi. Direito digital, direito privado e internet. 3ª ed. Indaiatuba: Foco, 2020, pp. 193-210.
(05) MARTINS, Luciano Godoi. Bitcoin e os enunciados do CJF como diretrizes interpretativas. In: ESPOLADOR, Rita de Cássia Resquetti Tarifa. PAVÃO, Juliana Carvalho (Org.). Direito Contratual Contemporâneo, vol. I. Londrina (PR) Thoth Ed., 2019, pp. 141-152.
(06) FRITZ, Karina Nunes. A garota de Berlim e a Herança Digital. In: BROCHADO TEIXEIRA, Ana Carolina. TEIXEIRA leal, Lívia (Coord.). Herança Digital. Controvérsias e Alternativas; Indaiatuba (SP): Ed. Foco Jurídico, 2021, pp. 227-243.
(O7) TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado. Apelação n. 1119688-66-2019.8.26.0100, Rel. Des. Francisco Casconi. Consultor Jurídico, 18.03.2021. Web: https://www.conjur.com.br/2021-mar-18/exclusao-perfil-facebook-morte-nao-gera-dever-indenizar
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico, 03.10.2021
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