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A derrotabilidade da exigência do regime de separação obrigatória de bens aos nubentes maiores de setenta anos em face das circunstâncias de cada caso concreto
CUNHA[1], Leandro Barbosa da.
BORGES[2], Fabiana Aparecida Ferreira Peres.
RESUMO: O presente texto tem por objetivo analisar se a regra jurídica que impõe o regime da separação obrigatória de bens aos nubentes maiores de setenta anos que decidam contrair matrimônio pode, não obstante a ausência de uma disposição legal expressa nesse sentido, ser excepcionada diante das circunstâncias particulares de cada caso concreto e das outras normas que eventualmente venham a entrar em conflito normativo com tal regime, ou se, ao contrário, não se mostraria adequado criar reservas à lei. Com base na insuficiência da lógica do “tudo ou nada” proposta por Ronald Dworkin e no moderno fenômeno de derrotabilidade das regras jurídicas, demonstrar-se-á que a incidência de todas as normas – incluindo aquela que impõe a separação legal de bens – não está condicionada tão somente ao preenchimento de seus vários pressupostos materiais, mas também exige que não exista algum tipo de condição concreta capaz de arrefecer seu conteúdo eficacial. Assim, por consequência das circunstâncias do caso concreto, concluir-se-á que outras normas podem vir a obter a precedência em relação ao regime de separação obrigatória de bens, de modo a permitir que o nubente maior de setenta anos possa pactuar de maneira livre o regime de bens que for de sua vontade.
Palavras-chave: Regime da separação obrigatória de bens; nubentes maiores de setenta anos; derrotabilidade das regras jurídicas; circunstâncias do caso concreto.
ABSTRACT: This text aims to analyze whether the legal rule that imposes the regime of mandatory separation of property to spouses over seventy years of age who decide to enter into marriage can, despite the absence of an express legal provision in this regard, be exempted from the particular circumstances of each concrete case and of the other rules that eventually come into normative conflict with such regime, or if, on the contrary, it would not be appropriate to create reservations to the law. Based on the insufficiency of the "all or nothing" logic proposed by Ronald Dworkin and the modern phenomenon of defeatability of legal rules, it will be demonstrated that the incidence of all rules - including those that impose the legal separation of goods - do not it is conditioned only to the fulfillment of its various material presuppositions, but it also demands that there be no kind of concrete condition capable of cooling down its effective content. Thus, as a result of the circumstances of the case, it will be concluded that other rules may take precedence over the mandatory separation of property regime, in order to allow the betrothed over seventy years of age to freely agree the regime of goods that is of your will.
Key-words: Mandatory separation of assets regime; spouses over the age of seventy; defeatability of legal rules; circumstances of the case.
Introdução
Há muito a obrigatoriedade do regime de separação legal de bens no casamento dos nubentes cuja idade ultrapasse setenta anos é alvo de críticas tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, incluindo até mesmo alegações de uma suposta inconstitucionalidade de tal regime de bens ante a violação da dignidade humana, conquanto não exista, por ora, nenhum tipo de posição definitiva sobre o tema. Por isso, a regra jurídica do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002, que versa sobre a imposição da separação obrigatória de bens às pessoas maiores de setenta anos que contraem matrimônio, permanece vigente.
Levando em conta que o Supremo Tribunal Federal não promoveu a pacificação da matéria, devem os juristas e demais operadores do direito, para além de promover reflexões sobre o assunto, buscar também mecanismos de ordem prática que sejam aptos a atenuar as consequências negativas geradas aos idosos, em alguns casos, pela imposição do regime de separação obrigatória de bens, dado que o Código Civil não comporta exceções em que o nubente maior de setenta anos possa optar pelo regime que preferir por meio da celebração de pacto antenupcial.
Assim, o presente trabalho pretende examinar se a regra jurídica disposta no inciso II do art. 1.641 da Lei n.º 10.406/2002 comporta exceções, ou se, ao contrário, preenchidos os seus pressupostos materiais de incidência – quais sejam: a respectiva celebração de casamento e a presença de um nubente maior de setenta anos –, não se poderá impedir a imposição do regime de separação legal mesmo que os consortes voluntariamente desejem fixar outro regime de bens.
Partindo de uma visão sistêmica do Direito Civil, defende-se que a vexata quaestio versa, sobretudo, acerca da questão da derrotabilidade das regras jurídicas, de modo que, por meio da pesquisa bibliográfica, demonstrar-se-á que a distinção comumente realizada entre as regras e os princípios através da lógica do “tudo ou nada” de Ronald Dworkin não se mostra suficiente ante a complexa realidade social, porquanto as regras, assim tais quais os princípios, possuem um caráter prima facie que admite limitações normativas conforme as particularidades do caso concreto, bem como em atenção às outras normas que se também se insiram nas antinomias aparentes.
Por intermédio da compreensão do caráter prima facie da regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil, torna-se possível encontrar exceções à obrigatoriedade da separação legal de bens aos nubentes maiores de setenta anos de idade mesmo que preenchidas as condições de incidência de tal regra, evidenciando que ela comporta – e, sobretudo, exige –, à semelhança dos princípios, uma espécie de ponderação com outras normas que também estejam presentes no dado contexto do conflito normativo; permitindo-se, desta feita, que se engendrem exceções à inteligência do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002 em proveito do conteúdo eficacial de outras regras e princípios que devem ter precedência para que o ordenamento jurídico possa promover a maior proteção do nubente idoso.
1 – O regime de separação obrigatória de bens e a proteção dos nubentes maiores de setenta anos: entre as virtudes e os problemas provocados pela previsão legal
Inexoravelmente, o casamento é um dos institutos jurídicos de maior cunho social da sociedade contemporânea, haja vista que, não obstante as finalidades legais propostas pelo legislador, o mesmo ato também é capaz de simbolizar o amor existente entre os consortes, bem como a respectiva comunhão de esforços para superar as adversidades do cotidiano, além de possuir uma enorme conotação religiosa a depender das crenças envolvidas, sendo possível inferir que, apesar da diminuição do número de casamentos nos últimos anos, ainda se trata de um instituto nevrálgico.
Em especial, muitos casamentos são realizados por pessoas com elevadas diferenças de idade e, sobretudo, de ordem econômico-patrimonial, em que um dos consortes – em regra, o mais velho –, possui um poder aquisitivo muito superior àquele da outra parte que pretende contrair o matrimônio, evidenciando que, nos mais diversos casos, a ganância pelos bens e valores de titularidade daqueles cuja idade é mais elevada, em conjunto ao fato de que a expectativa de vida de tais indivíduos tende a ser relativamente menor, acaba por subverter o intuito jurídico-social de fomentar a criação de uma família por meio do casamento.
Com base nisto, e visando a proteger os consortes de idade mais avançada contra relacionamentos fugazes e pretensiosos, foi positivada a norma do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002, segundo a qual é obrigatório o regime da separação legal de bens no caso de casamento celebrado por consorte cuja idade seja maior que 70 (setenta) anos, conforme alteração proposta pela Lei n.º 12.344/2010. Consequentemente, por força legal – ainda que em contrariedade à vontade do consorte idoso –, o regime de bens deverá ser, em tal caso, o da separação obrigatória.
A principal ideia da previsão do inciso II do art. 1.641 do referido diploma é a de impedir que pessoas muito jovens se casem com maiores de setenta anos apenas por interesses ligados ao patrimônio do idoso – desvirtuando, consequentemente, o casamento –, de modo a inviabilizar que o cônjuge mantenha a condição de meeiro quando do término da sociedade conjugal por meio do divórcio. Aliás, até mesmo no caso de falecimento, a norma do art. 1.829, inciso I, da Lei n.º 10.406/2002 institui que o consorte sobrevivente que era casado sob o regime da separação obrigatória não irá concorrer com os descendentes para fins hereditários, diminuindo sobremaneira as possibilidades de que os bens do de cujus sejam transmitidos para sua esfera particular por força legal.
Por uma questão de lógica – e de razoabilidade –, excepcionalmente, é possível que exista patrimônio comum a ser partilhado quando da dissolução da sociedade conjugal mesmo que na vigência do regime de separação legal de bens. Neste sentido, em julgado de 2018, entendeu a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, nos Embargos de Divergência no Recurso Especial n.º 1623858 (MG) que poderia ocorrer a comunicação dos bens patrimoniais comprovadamente adquiridos por intermédio do esforço comum mesmo no regime da separação obrigatória de bens. Tal entendimento encontra lastro no enunciado da Súmula n.º 377 do STF[3], que, basicamente, relativiza, em prol da dignidade humana e da solidariedade familiar, o preceito do art. 1.641, inciso II, do CC.
Apesar do louvável intuito do legislador de proteger os idosos contra relacionamentos pautados em interesses meramente econômicos – além de preservar os quinhões dos herdeiros e desestimular casamentos que não tenham por finalidade a constituição de uma família –, há de se ter em vista que a imposição do regime de separação legal inexoravelmente impede que os consortes, em comum acordo, possam alterar o regime de bens por intermédio do pacto antenupcial; cerceando, num primeiro momento, a autonomia privada.
Ou seja, pela interpretação literal do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, um adulto maior de setenta anos, mesmo que queira, não poderia se casar sob o regime da comunhão parcial de bens, por exemplo. Sem contar que, a depender do contexto fático-social existente, é possível que a finalidade protetiva da separação legal crie uma espécie de perigo reverso para o idoso. Neste sentido, caso faleça o cônjuge mais jovem, aquele que é maior de setenta anos, a princípio, não será seu meeiro nem tampouco herdeiro – a menos que haja algum tipo de testamento em seu favor, costume este que não é comum à maioria dos brasileiros que residem no País.
Ademais, ao contrário de apaziguar as dúvidas, a Súmula n.º 377 do STF contribuiu para um cenário de insegurança jurídica, já que, a depender do entendimento adotado, pode a separação obrigatória se tornar, na prática, muito semelhante ao regime da comunhão parcial de bens. Devido ao perfil profissional de um ou de ambos os cônjuges, a formação dos aquestos pode até mesmo inviabilizar a atividade econômica que é exercida por eles, mas, como não seria possível optar pelo regime da separação convencional – dada a imposição do inciso II do art. 1.641 do Código Civil –, criar-se-ia uma verdadeira desproteção ao idoso em face do teor da Súmula n.º 377 do STF.
História semelhante é narrada pelo jurista Zeno Veloso em um artigo publicado no Jornal O Liberal, do Belém do Pará, no qual ele revela o drama de um casal que o contratou para a feitura de um parecer, já que ambos consortes possuiriam perfis economicamente ativos e suas atividades profissionais envolviam a constante circulação de bens (o marido, de 71 anos, era investidor imobiliário; e a esposa, de 60 anos, corretora), mas, sob a égide da separação legal de bens – e por força da Súmula n.º 377 do STF –, o regime acabaria por funcionar tal qual o da comunhão parcial, de modo a criar grandes riscos aos seus ofícios[4].
Diante de tais dificuldades de ordem prática, surgiram diversos debates doutrinários acerca de uma suposta inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002. O Enunciado n.º 125 da I Jornada de Direito Civil, por exemplo, retrata a vertente que observa uma possível contrariedade do dispositivo aos ditames constitucionais, de modo a propor que seja revogado, uma vez que ele acaba por promover uma discriminação ao consorte maior de setenta anos – o que seria vedado pela ratio essendi da Lei n.º 10.741 de 2003, o Estatuto do Idoso.
De toda sorte, considerando que o dispositivo é, por ora, constitucional, mas sem ignorar os diversos problemas de ordem prática que a separação obrigatória de bens é capaz de engendrar, a doutrina e a jurisprudência paulatinamente vêm buscando soluções para flexibilizar a inteligência do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002 em favor da autonomia privada do idoso. O próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu (STJ, REsp 918.643/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 26.04.2011, DJE 13.05.2011), com esteio no Enunciado n.º 261 da III Jornada de Direito Civil[5], que não se aplica a separação legal ao casamento quando, antes de se atingir setenta anos de idade, existia prévia união estável entre os nubentes.
Portanto, sem dúvidas, na prática, é possível verificar um conflito aparente entre a ideia da proteção patrimonial do idoso e a autonomia da vontade ou, até mesmo, a dignidade humana. Porém, ao observar que a norma do regime da separação obrigatória deriva de uma regra jurídica – e não de um princípio propriamente dito –, surge certo desconforto, haja vista que, pela doutrina clássica, as regras seriam estruturas rígidas pautadas na lógica do “tudo ou nada” proposta por Ronald Dworkin, de modo que não seria possível excepcionar uma regra sem que houvesse uma previsão legal, dado que ou ela incidiria totalmente, ou não incidiria.
Por tal ótica clássica, a regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil deve se subsumir ao caso concreto sempre que preenchidos seus pressupostos materiais, isto é, no sentido de impor necessariamente o regime de separação legal de bens aos nubentes maiores de setenta anos idade que decidam casar, de modo que, caso uma pessoa que se encontre em tais circunstâncias opte por contrair matrimônio, não seria possível opor nenhum tipo de exceção legalmente prevista.
Ocorre que clássica dicotomia entre regras e princípios vem sendo questionada por uma perspectiva mais crítica que demonstra a insuficiência e a simplicidade da lógica do “tudo ou nada” de Ronald Dworkin, haja vista que se torna patente o caráter prima facie de algumas regras quando são postas em face de determinadas circunstâncias fáticas e conflitos normativos, evidenciando que, na verdade, o mero preenchimento dos pressupostos materiais não basta para que uma regra jurídica incida – diferente do que se ensina constantemente nos Cursos de Direito.
Visando a apresentar uma solução para a problemática acerca da necessária imposição do regime de separação legal de bens aos maiores de setenta anos de idade, isto é, se pode ou não ser excepcionada a inteligência do inciso II do art. 1.641 do Código Civil a depender do caso concreto – tal como tem feito a jurisprudência, em consonância com o Enunciado n.º 261 da III Jornada de Direito Civil –, torna-se de nevrálgica importância investigar o possível caráter prima facie das regras jurídicas, porquanto uma perspectiva crítica quanto à clássica distinção entre regras e princípios talvez seja capaz de demonstrar que as primeiras podem sofrer limitações à semelhança dos princípios jurídicos, de modo fornecer um novo tratamento para a vexata quaestio proposta no presente trabalho.
Afinal, em tese, preenchidos os pressupostos materiais da regra do inciso II do art. 1.641 da Lei n.º 10.406/2002, dever-se-ia verificar, impreterivelmente, o aludido fenômeno da incidência da norma sobre o suporte fático (e a consequente irradiação de situações jurídicas), porém, como já salientado, a própria jurisprudência brasileira, em função das particularidades dos casos concretos, admite a flexibilização da inteligência do mencionado dispositivo, de modo a evidenciar que a subsunção da regra do regime de separação obrigatória de bens para os nubentes maiores de setenta anos pode não ser tão rígida tal como seria esperado pela lógica do tudo ou nada de Ronald Dworkin.
2 – O caráter prima facie das regras e a inexistência de mandamentos definitivos a priori
A compreensão de que tanto as regras quanto os princípios possuem jaez normativo foi de fundamental importância para promover o avanço da dogmática jurídica, haja vista que possibilitou a compreensão da natureza complexa dos direitos fundamentais positivados pelo Poder Constituinte Originário em 1988, bem como o desenvolvimento de algumas técnicas específicas para a solução de conflitos normativos, como é o caso do sopesamento (ou ponderação), que costuma ser o método adotado pelos intérpretes e operadores do direito em geral a fim de solucionar problemas jurídicos envolvendo dois ou mais princípios.
Pela doutrina clássica, conquanto as duas espécies normativas aludidas possuam força cogente e sejam deontológicas, ambas não poderiam ser confundidas. Neste sentido, as regras são usualmente apontadas como prescrições rígidas estabelecidas pelo legislador, cuja aplicabilidade é regida pela chamada lógica do “tudo ou nada”, isto é, ou suas incidências sobre os casos concretos se darão de forma integral (DWORKIN, 2007, p. 39), de modo a irradiar todas as situações jurídicas que são esperadas, ou, do contrário, não ocorrerá nenhum tipo de subsunção, uma vez que, por intermédio de tal perspectiva doutrinária, não seria possível que as regras incidissem parcialmente.
Por consequência, diante de um eventual conflito entre duas ou mais regras capazes de regular uma mesma situação fática, apenas uma poderia prevalecer em detrimento das outras, razão pela qual os critérios utilizados para solucionar antinomias entre normas de tal natureza são os da hierarquia, especialidade e cronologia (BOBBIO, 1999, p. 80-81), os quais são, de certo modo, excludentes entre si, corroborando para a noção de que as regras conflitantes não podem coexistir num mesmo caso concreto que esteja submetido à análise do Poder Judiciário.
Ao revés, os princípios são concebidos como espécies de mandamentos de otimização, porquanto, ainda que conflitantes, devem incidir na maior medida do possível, isto é, sem que um acabe por inibir a eficácia do outro, devendo o operador do direito examinar todas as circunstâncias fáticas envolvidas antes de escolher, fundamentadamente, qual dos princípios deve ter precedência (ÁVILA, 2009, p. 43). Seria possível constatar, portanto, uma flexibilidade que se mostra maior que aquela que existe em relação às regras.
Sobretudo, tais normas possuem um teor abstrato maior que o das regras, de forma que é necessário que o intérprete realize o sopesamento entre elas, conforme a doutrina da Kollisionsgesetz, ou, numa tradução aproximada para o português, a Lei de Colisão, popularizada no Brasil por intermédio das obras do jurista alemão Robert Alexy que, utilizando-se de fórmulas derivadas da Lógica Moderna, expressou qual deve ser o modus operandi para que seja possível determinar a precedência de um princípio em relação a outro nas situações concretas de um possível conflito:
Se o princípio P1 tem precedência em face do princípio P2 sob as condições C: (P1 P P2) C, e se do princípio P1, sob as condições C, decorre a consequência jurídica R, então, vale uma regra que tem C como suporte fático e R como consequência jurídica: C à R . As condições sob as quais um princípio tem precedência em face de outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a consequência jurídica do princípio que tem precedência. Essa lei, que será chamada de “lei de colisão”, é um dos fundamentos da teoria dos princípios aqui defendida. (ALEXY, 2015, p. 99).
De toda sorte, os Cursos de Direito da graduação e as mais diversas obras doutrinárias hodiernamente apontam tais características como sendo exclusivas dos princípios, enquanto as regras seguiriam a já mencionada ideia do “tudo ou nada”. Contudo, tal diferença qualitativa, a rigor, não subsiste em todos os casos, porquanto, a depender do contexto fático que estiver disponível, as regras podem deixar de exercer o viés de mandamento definitivo e evidenciar um caráter prima facie semelhante àquele que existe para os princípios, dado que é possível atribuir um peso maior a certos dispositivos em detrimento de outros.
Afinal, por diversas vezes, não obstante a materialização dos suportes fáticos de determinadas regras – isto é, satisfeitos seus pressupostos de incidência –, não se irradiam as situações jurídicas que eram inicialmente previstas pela lei, dada a existência de outras normas também importantes para o caso concreto e cujos conteúdos eficaciais assumem o condão de inibir os efeitos esperados pelas regras (LOPES, 2016, p. 124-125). Claramente, essa ideia crítica vai de encontro àquela lógica proposta pelo jurista Ronald Dworkin de que haveria uma completa diferença entre os mandamentos definitivos e aqueles de otimização.
A título de exemplo, a Lei Distrital n.º 6.138/2018, que institui o Código de Obras e Edificações do Distrito Federal, dispõe no § 1º do art. 133[6] que, na hipótese de haver uma obra não passível de regularização (v.g., uma casa construída numa calçada), aplicar-se-á a sanção de intimação demolitória, na qual constará um prazo fixado em até trinta dias para que se efetue a remoção da estrutura cuja irregularidade seja insanável, sob pena de demolição compulsória pelo Poder Público. Caso o servidor responsável opte por fornecer um prazo de exatos cinco dias ao destinatário para que efetue a demolição da obra, haverá, portanto, conformidade com aquilo que dispôs a lei.
Por mais que se apresente como um possível mandamento definitivo – isto é, que o prazo pode ser de até trinta dias –, e embora não existam exceções legais no referido diploma que permitam a prorrogação ou a dilação por um período superior a tal limite, há de se ter em vista que, em alguns casos, o prazo de até trinta dias não se mostra suficiente para que se efetue a demolição de forma voluntária, o que vilipendia o princípio da razoabilidade previsto no art. 2º da Lei Federal n.º 9.784/1999 – diploma este que versa sobre o processo administrativo.
Considerando que a devida observância do limite temporal encontra respaldo no princípio da legalidade, nota-se que a busca por um período maior que aquele que consta da Lei Distrital n.º 6.138/2018 em razão das particularidades do caso concreto provoca, a rigor, um conflito aparente entre a legalidade e a razoabilidade, de modo que é possível verificar que a precedência de um destes mandamentos de otimização referidos em relação ao outro afetará na incidência da regra do § 1º do art. 133 de tal diploma normativo; inferindo-se, portanto, que, não obstante preenchidas as condições materiais de tal norma, o limite temporal de trinta dias poderá ser ultrapassado, a depender do caso.
Trata-se do fenômeno que ficou conhecido como derrotabilidade das regras jurídicas, isto é, a circunstância de que as prescrições contidas nas regras possam ceder total ou parcialmente em proveito de outras normas, dados os conflitos normativos existentes e até mesmo as particularidades do caso concreto a ser analisado, embora seus pressupostos materiais de incidência estejam preenchidos – corroborando para demonstrar que as regras, a rigor, não são mandamentos definitivos de per si, uma vez que possuem um caráter prima facie que pouco se difere daquele constantemente atribuído pela doutrina aos princípios que integram o ordenamento jurídico:
A própria caracterização de uma norma como prima facie diz sobre sua possibilidade de não regular de modo conclusivo, estando sujeita a não ter todos seus efeitos jurídicos ativados em função de possíveis conflitos com outras normas de sinal contrário. Reconhecendo-se que isso é possível, uma norma não deixa de ter um caráter definitivo para adquiriram caráter prima facie. As regras, portanto, não adquirem, mas possuem um caráter prima facie. E o mesmo vale para os princípios. No caso excepcional de não entrarem em conflito, sua regulação prima facie se tornará definitiva, mas isso não significa dizer que adquirem um caráter definitivo. (SACRAMENTO, 2019, p. 12).
Afinal, se uma determinada regra se comporta de maneira definitiva – como é o caso da já examinada previsão do limite da fixação de até trinta dias para demolir a estrutura irregularmente edificada –, não significa que ela perca o caráter prima facie, porquanto, a variar do peso atribuído no conflito entre a regra e outra norma em certas situações, é possível verificar a flexibilização do mandamento que inicialmente se comportava como definitivo, em proveito da predominância de eventuais valores que também estavam presentes no litígio que foi submetido à análise pelo Judiciário.
Ao reconhecer que as regras possuem um caráter prima facie, é possível constatar que, ao contrário do que é hodiernamente lecionado, o simples preenchimento dos pressupostos materiais para que tais normas incidam não basta para que a irradiação de efeitos ocorra[7], uma vez que a ponderação entre os princípios subjacentes envolvidos no contexto das antinomias das regras pode resultar na atribuição de mais peso a uma determinada regra em detrimento de outra, de modo a derrotar a eficácia de uma das normas conflitantes. Trata-se de um processo dinâmico e variável em função das particularidades de cada caso, de modo que não se pode afirmar com segurança que comportamento de um dispositivo será estanque:
Em resumo, a derrotabilidade das regras se origina da limitação da capacidade humana em prever todas as circunstâncias relevantes e, por conseguinte, da correspondente deficiência estrutural das regras. Se as condições de uma regra são satisfeitas, então a conclusão se segue, a menos que ocorra uma exceção, ou seja, se a, então b, a menos que c. Uma vez que não é possível prever todas as exceções, não é possível criar uma regra sem exceções. Consequentemente, de acordo com as proposições de Wang e Hart, as regras jurídicas necessariamente têm a capacidade de acomodar exceções. (BÄCKER, 2011, p. 55-82).
Ademais, além da consciência de que a cognição do homem não é capaz de prever todas as exceções possíveis a uma regra a fim de descrevê-las nos enunciados normativos, não se pode olvidar que o Direito é, essencialmente, linguagem, porquanto os conceitos de crédito, débito, direito, dever, responsabilidade civil, crime, dentre outros mais, não existem no mundo físico, nem tampouco podem ser percebidos sensorialmente, constituindo-se como verdadeiros frutos interpretativos da mente humana, embora o plano jurídico seja tão real quanto o mundo físico.
Sobretudo, todos os institutos que integram o ordenamento jurídico surgem por meio da interpretação (MARMOR, 2000, p. 58-59), esta que funciona, aliás, como uma espécie de filtro transcendental para que o homem possa captar aquilo que esteja presente na realidade, dado que o próprio intelecto pressupõe a linguagem como um fator intransponível que se situa entre o sujeito e o objeto (SCHLEIERMACHER, 1999, p. 11). No entanto, os processos hermenêuticos realizados por determinado intérprete dependem, inexoravelmente, de um conjunto de pré-conhecimentos que integram a carga existencial daquele que se põe diante de um texto ou elemento da realidade (HEIDEGGER, 1988, p. 207), demonstrando a condição a posteriori do conhecimento.
Disso se infere que um mesmo texto pode adquirir diversas interpretações em função dos parâmetros hermenêuticos adotados, bem como dos intérpretes envolvidos, de modo que não existe um sentido único ou definitivo para um enunciado, nem tampouco uma razão superior que seja capaz de engendrar significados imutáveis (COELHO et al, 2002, p. 16-17), pois a cognição humana, conforme já explicado, é limitada e constantemente influenciada tanto pelo contexto fático-histórico quanto pelas ideologias presentes na sociedade (GADAMER, 1998, p. 19), podendo distorcer ou orientar a atividade interpretativa.
Não foi outro o motivo que levou grande parte da doutrina nacional e internacional a distinguir o enunciado da norma jurídica propriamente dita, porquanto esta seria um produto da interpretação que se realiza do texto (KELSEN, 2006, p. 387-390). Por isso, a essência linguística do Direito reforça ainda mais o caráter prima facie das regras, conquanto grande parte dos doutrinadores ainda insista na ideia de que elas seriam mandamentos definitivos regidos sob a lógica do “tudo ou nada”. No entanto, uma visão crítica demonstra com acerto que não somente os princípios possuem caráter prima facie, haja vista que todas as espécies normativas são passíveis de admitir uma exceção no caso concreto, ainda que preenchidos os pressupostos de incidência.
Assim, o Direito é um conjunto de relações linguísticas relativamente maleáveis cujos institutos e normas jurídicas se engendram por intermédio dos processos interpretativos que são desenvolvidos pelos operadores do direito com base em seus horizontes de sentido e em suas experiências pessoais (ROBLES, 2005, p. 1-2), de forma que não existem verdades absolutas quando se trata de hermenêutica. Ora, se o humano não é dotado de algum tipo de razão superior que lhe permita acessar os sentidos perfeitos das normas, não se poderá afirmar, a rigor, que exista em si um mandamento definitivo que não possa ser mitigado ante o caso concreto.
Por conseguinte, tanto as regras jurídicas quanto os princípios são dotados de caráter prima facie e, em face dos conflitos normativos que podem surgir, é totalmente possível que as particularidades existentes provoquem a inibição dos efeitos de determinadas regras em proveito do conteúdo eficacial de outras normas do ordenamento; evidenciando, desta feita, que a derrotabilidade é um atributo que se faz presente em todas as espécies normativas e que pode ser justificada em razão da impossibilidade humana de prever de antemão, in abstrato, todas as exceções possíveis que os mandamentos podem enfrentar.
3 – Os nubentes maiores de setenta anos e o regime de separação legal de bens: o caráter prima facie da regra do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002
O Direito de Família, por possuir uma forte conexão com aspectos sociais altamente mutáveis no tempo e no espaço, tende a ser inegavelmente o mais dinâmico e, de certa forma, instável dos ramos civilistas, porquanto há uma constante necessidade da jurisprudência de adaptação das normas jurídicas ao contexto no qual elas se inserem, sob pena de que deixem de apresentar correspondência biunívoca às expectativas sociais e, consequentemente, percam grande parte da eficácia que lhes é esperada.
Nesse sentido, antes de adentrar ao tema deste trabalho, convém salientar que a interpretação desempenha um papel nevrálgico para garantir que as disposições legais mantenham coerência com a realidade que é regulada. O disposto no art. 1.565 da Lei n.º 10.406/2002, que versa sobre a constituição do matrimônio, por exemplo, refere-se apenas a “homem e mulher”, porém a hermenêutica, visando a garantir a finalidade social e familiar da norma, atribui-lhe sentido extensivo, de modo a abarcar também o casamento entre duas mulheres ou dois homens, isto é, sem excluir os relacionamentos homoafetivos.
Afinal, nota-se que o caminho interpretativo mais seguro é aquele que parte de uma visão sistêmica que abranja tanto as outras normas constitucionais quanto aquelas que são infraconstitucionais. Sobretudo, também se deve analisar o Direito em conjunto com as várias circunstâncias sociais que se fazem presentes em cada situação cotidiana, dado que a norma deve ser mais que aquilo que se encontra meramente escrito pela letra da lei, sob pena de que haja um abismo entre o ordenamento jurídico e a sociedade:
Querer aprisionar o direito de uma época ou de um povo nos parágrafos de um código corresponde mais ou menos ao mesmo que querer represar um grande rio num açude: o que entra não é mais correnteza viva, mas água morta e muita coisa simplesmente não entra. Se além disso se levar em conta que cada uma das leis já estava superada pelo direito vivo no momento me que ficou pronta e a cada dia está sendo mais superada, então deve-se reconhecer o imenso campo de trabalho, praticamente virgem, que aqui se abre ao pesquisador de direito. (EHRLICH, 1986, p. 374).
O mesmo pode ser dito no que tange à problemática do presente texto, isto é, se a imposição do regime de separação obrigatória de bens aos nubentes maiores de setenta anos que optem por contrair casamento pode ou não ser excepcionada a depender das condições fáticas que se façam presentes e das outras normas integrantes do conflito normativo. De início, embora a literalidade do inciso II do art. 1.641 do Código Civil não permita exceções, há de se ter em vista, conforme o exposto, que um texto isolado nem sempre é suficiente para transmitir a integridade existencial de uma norma jurídica.
Ademais, some-se a isso o fato de que as regras jurídicas, conforme exposto, possuem um caráter prima facie, porquanto, não obstante a materialização dos suportes fáticos, podem os efeitos previstos sofrer limitações totais ou parciais em função da precedência de outras normas que também se insiram no mesmo contexto. De toda sorte, num primeiro momento, considerando que ainda não se decidiu ainda pela inconstitucionalidade do inciso II do art. 1.641 da lei civilista, aquele que contrai casamento e possui mais de setenta anos não poderá escolher o próprio regime de bens, conforme aponta a inteligência do aludido dispositivo, cuja vigência ainda se impõe.
Em consequência disto, por uma questão sistêmica, não se pode negar a eficácia in abstrato da mencionada regra – até porque ela possui um inexorável cunho protetivo para os idosos contra relacionamentos com pessoas eventualmente mais jovens quando estas possuem apenas interesses patrimoniais. Se não houvesse a obrigatoriedade da separação legal de bens, muitos dos consortes de idade superior a setenta anos, a fim de não desagradar o seu cônjuge, nem tampouco fomentar um clima de desconfiança, poderiam vir a optar pelos regimes da comunhão parcial ou universal de bens, de modo a vulnerabilizar uma parte do patrimônio do idoso ou, a longo prazo, gerar uma insegurança aos herdeiros potenciais. É inegável, portanto, que a previsão do art. 1.641, II, do Código Civil possui uma razoável ratio essendi.
Isso não significa, entretanto, que o mesmo será válido para toda e qualquer situação, de forma que os operadores do direito precisam estar atentos às demais regras e princípios que também possam incidir sobre o contexto fático-histórico. Afinal, esta mencionada regra jurídica – assim como qualquer outra norma que integre o ordenamento – é dotada de caráter prima facie e pode, consequentemente, ser derrotada por postulados normativos que devam ter preponderância em relação à imperatividade da separação legal de bens aos maiores de setenta anos que decidam contrair matrimônio com outro consorte.
Convém rememorar o já aludido acórdão que julgou o REsp 918.643/RS e propôs o entendimento de que, caso exista uma união estável antes do advento de setenta anos de idade do companheiro, tornar-se-ia possível excepcionar o disposto no art. 1.641, inciso II, do Código Civil a fim de permitir que os cônjuges possam, em comum acordo, alterar o regime de bens da forma que desejarem. Trata-se de uma evidente hipótese de derrotabilidade da obrigatória separação legal de bens, embora o Superior Tribunal de Justiça não tenha empregado tal expressão no decisum referido.
Ora, ao considerarem que a existência de união estável prévia ao advento dos setenta anos é uma condição capaz de elidir a incidência da regra em comento, os Ministros da Corte Superior deram precedência ao princípio da autonomia privada, de modo a trazer à baila a irradiação dos efeitos previstos pela regra jurídica do parágrafo único do art. 1.640 da Lei n.º 10.406/2002 em detrimento da norma do art. 1.641, inciso II, do mesmo diploma, de modo a demonstrar que é possível encontrar exceções à imposição do regime da separação legal de bens para os nubentes maiores de setenta anos.
Aliás, considerando que tal regime tem por finalidade essencial proteger os idosos contra relacionamentos fugazes (comumente) mantidos com pessoas mais jovens, também seria nítido o caráter prima facie da disposição ao analisar a validade de um pacto antenupcial celebrado por dois cônjuges cujas idades sejam superiores ao limiar de setenta anos. Afinal, por mais que um hipotético matrimônio sob tais circunstâncias fosse condição apta para fazer incidir a regra do inciso II do art. 1.641 do Código Civil, haveria um aparente conflito com o princípio da razoabilidade, pois, se ambos consortes possuem a mesma faixa etária, não teria sentido em alegar a necessidade de proteção recíproca do patrimônio de ambos.
Na opinião dos presentes autores, este também seria um caso de uma possível derrotabilidade do disposto no art. 1.641, inciso II, do Código Civil. Noutro giro, com base na situação narrada pelo jurista Zeno Veloso – que foi exposta nas páginas anteriores –, também seria possível notar o caráter prima facie da obrigatoriedade da separação legal de bens prevista pelo Código Civil, pois, se ambos consortes desenvolvem constantes atividades econômicas e financeiras e necessitam de um regime de bens que diminua ao máximo as chances de formação de aquestos, é nítido que a separação legal, por força da Súmula n.º 377 do STF, mostrar-se-ia indesejável e, não obstante, ainda poderia criar gravíssimos entraves à subsistência do casal.
Pareceria contraditório, em tal caso, negar aos cônjuges a possibilidade de optar, por meio de pacto antenupcial, pelo regime da separação convencional de bens, quando a ratio essendi do próprio art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002 é justamente a de impedir a formação de aquestos e a futura condição de herdeiro do de cujus do consorte supérstite. Ora, se a modalidade convencional de separação é aquela que garante, no caso concreto, uma maior proteção aos nubentes, não haveria motivo para negar que exerçam suas vontades.
Outra situação no mínimo curiosa – embora não tão comum no cenário prático da vida cotidiana –, e que poderia levantar a discussão sobre a derrotabilidade da imposição do regime da separação obrigatória de bens, seria aquela na qual o maior de setenta anos se mostra como uma pessoa pobre, enquanto, ao revés, o consorte mais jovem é milionário. Se o intuito da regra do referido dispositivo é a proteção do patrimônio do idoso, impedir a escolha do regime de bens em tal caso implicaria na vulnerabilidade do cônjuge mais velho, já que, caso dissolvida a sociedade conjugal por divórcio, ele provavelmente não receberia nada, e, em caso de morte, havendo descendentes, o cenário acabaria por ser o mesmo.
Estes são alguns exemplos os quais demonstram que há de se reconhecer o caráter prima facie da regra do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002, sob pena comprometer a própria ratio legis que foi prevista. Tais casos também indicam que, para que incida uma regra, não basta o mero preenchimento dos pressupostos materiais (isto é, que o maior de setenta anos contraia matrimônio), pois se mostra de nevrálgica importância considerar as hipóteses nas quais a norma em comento pode vir a ser derrotada em prol de outras normas que devam ter precedência no caso concreto.
Entretanto, não se está dizendo que a previsão do mencionado dispositivo possa ser sempre derrotada. Basta figurar a situação na qual um magnata maior de setenta anos, que possui um patrimônio milionário, apaixona-se por uma jovem de vinte e cinco anos (a qual, hipoteticamente, só está interessada nos bens pecuniários do idoso) e decide com ela contrair matrimônio. Sob a influência de sentimentos intensos, em tal hipótese, se não fosse imposto o regime da separação obrigatória, o magnata poderia sofrer grandes prejuízos patrimoniais, de modo que, neste caso, a regra do art. 1.641, inciso II, mostrar-se-ia minimamente razoável.
É certo que tal solução também pode ser alvo de diversas críticas, dado que, apesar de se encontrar eventualmente sob os intensos devaneios do amor, a vontade do maior de setenta anos ainda poderia ser considerada para fins de escolha do regime de bens. Aliás, como já explicado, até mesmo a constitucionalidade da norma é questionada tanto na jurisprudência quanto na doutrina, mas, sem dúvidas, na hipótese narrada, seria mais plausível a imposição do regime de separação legal de bens que nas outras anteriormente citadas.
Contudo, não é objetivo deste trabalho negar a vigência de tal regime, nem tampouco defender sua inconstitucionalidade – dada a impertinência deste tema para a resolução da problemática proposta –, mas tão somente demonstrar que a regra contida no inciso II do art. 1.641 do Código Civil possui caráter prima facie e deve, portanto, ser interpretada em conjunto com as outras normas e circunstâncias fáticas presentes, de modo que não se verifica óbice à sua derrotabilidade – desde que o contexto assim o recomende em função de valores mais importantes para a proteção do idoso.
Portanto, apesar da questionável constitucionalidade do art 1.641, inciso II, do Código Civil – e isso nunca se negou –, enquanto se mantiver sua vigência, é de suma importância que os operadores do direito se sensibilizem e considerem que a obrigatoriedade do regime da separação legal de bens se trata de uma regra jurídica de caráter prima facie que admite, por consequência, inúmeras exceções possíveis a variar das particularidades e das complexidades que se façam presentes.
Sem contar que não existem óbices legais para que se criem hipóteses de derrotabilidade da aludida regra (do contrário, a Corte Superior não o teria feito) – ainda mais quando se tem por escopo a proteção do idoso tanto em termos patrimoniais e afetivos quanto de no que concerne à potencialização da dignidade humana, de modo que é recomendável examinar, com a devida atenção, cada caso concreto a partir de seus elementos, visando a averiguar se é cabível – ou recomendável – permitir que os maiores de setenta anos possam optar pelo regime de bens que for de sua preferência.
Conclusão
A superação do entendimento de que a distinção entre regras e princípios se baseia em um critério qualitativo representa um grande avanço para a dogmática jurídica, não obstante poucos doutrinadores brasileiros considerem que ambas espécies normativas possuem um caráter prima facie que admite, portanto, a derrotabilidade daquilo que foi disposto pelo legislador, uma vez que, não bastasse a limitada cognição humana, o Direito é ainda um plexo sistêmico de normas jurídicas que precisam estar em constante diálogo.
No caso do Direito de Família, a perspectiva de que a regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil apresenta caráter prima facie tende a ser muito positiva para que o operador do direito possa, fundamentadamente e diante das circunstâncias do caso concreto, estabelecer algumas exceções à obrigatoriedade do regime de separação legal de bens, de modo a atenuar as consequências nefastas que podem surgir da referida imposição aos nubentes maiores de setenta anos de idade que decidam contrair matrimônio, porquanto nem sempre tal opção se mostra, na prática, a mais favorável para o consorte mais velho, como foi possível verificar no decorrer deste trabalho.
Em que pesem os respeitáveis argumentos que são hodiernamente levantados quanto à inconstitucionalidade do art. 1.641, inciso II, da Lei n.º 10.406/2002, não se pode olvidar que tal regra permanece vigente no ordenamento jurídico brasileiro, incidindo todos os dias sobre inúmeros casamentos celebrados por idosos. Por isso, embora seja muito importante criticar a separação legal de bens sob o ponto de vista constitucional, seria recomendável manter, pelo menos a curto prazo, uma perspectiva pragmática sobre o assunto, isto é, devem buscar a doutrina e a jurisprudência meios de minimizar os efeitos negativos que tal regra traz, motivo pelo qual se mostra importante adotar a constatação de que o art. 1.641, inciso II, do Código Civil se trata de uma norma de caráter prima facie que admite derrotabilidades.
Inexoravelmente, a proteção dos idosos maiores de setenta anos deve preceder à regra do art. 1.641, inciso II, do Código Civil caso o regime da separação obrigatória de bens não se mostre adequado ante as diversas particularidades do caso concreto, mas, se, ao revés, as circunstâncias demonstram que o cônjuge mais jovem possui apenas interesses de cunho patrimonial – ou interesses que, de alguma forma, possam vir a subverter as finalidades do matrimônio, bem como criar uma situação de vulnerabilidade –, parece razoável concluir que o regime mencionado tende a ser mais protetivo para o idoso e seus herdeiros.
De toda sorte, enquanto a norma do inciso II do art. 1.641 do referido diploma se mantiver vigente, não deve o intérprete do enunciado normativo decidir pela incidência ou não incidência do dispositivo sem antes considerar todas as circunstâncias fáticas, bem como as regras e princípios que também possam colidir naquele contexto, capazes de influir sobre a qualidade de vida do nubente maior de setenta anos, haja vista que o Direito de Família deve possuir uma alta capacidade de adequação, dada a complexa realidade social brasileira.
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[1] Graduando em Direito pelo UniCEUB e estagiário.
[2] Pós graduada em Direito, advogada e professora do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).
[3] “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
[4] O artigo está disponível aqui:
[5] “A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos, quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade”.
[6] Art. 133. A intimação demolitória é imposta quando se trate de obra ou edificação não passível de regularização.
§ 1º O infrator é intimado a efetuar a demolição no prazo de até 30 dias.
[7] No mesmo sentido, um dos primeiros juristas a tratar sobre o tema da derrotabilidade das regras foi H. L. A. Hart, em 1948, no ensaio The Ascription of Responsability and Rights: “Quando o estudante aprende que no direito inglês há condições positivas para a existência de um contrato válido, [...] sua compreensão do conceito legal de um contrato é ainda incompleta [...]. Pois, tais condições, embora necessárias, não são suficientes, e ele ainda tem que aprender o que pode derrotar a alegação de que há um contrato válido, mesmo que todas essas condições sejam satisfeitas. O estudante ainda tem que aprender o que implica a expressão ‘a menos que’” (HART, 1951, p. 145-166).
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