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A Recente circular do seguro de responsabilidade civil
Sempre quando me deparo com a publicação de uma nova Circular ou, então, de uma Resolução normativa emanada pela Superintendência de Seguros Privados- SUSEP -, me assalta um certo receio que não chega e, absolutamente, não se enquadra na hipótese de qualquer temor reverencial. Explico melhor. O temor reverencial, por exemplo, é aquele temor que o filho tem em relação ao seu pai e que não constitui causa de Defeito do Negócio Jurídico- coação, artigo 153 do nosso Código Civil -, ou intimidaçãoque, aqui, pode ser objeto deimpugnaçãoà declaração de vontade previsto na parte final do §123 do BGB. (Código Civil Alemão).
O temor que me assola no caso focalizado diz respeito a um princípio básico constitucional, diversas vezes salientados em inúmeras crônicas, pertinenteà hierarquia das Leis.
O nosso Código Civil cuida da Responsabilidade Civil em sede de contrato de seguro, infelizmente, em um único dispositivo legal, vale dizer, o que se acha contempladono artigo 787. Nada mais!
Pois bem. A SUSEP através da Circular nº 637 de 27/07/2021, publicado no DOU em 28/07/2021, dispõe sobre os seguros do grupo responsabilidades.
Será que uma norma de grau bastante inferior sob a ótica legislativa pode ter tal elastério de lobrigar prever todas as hipóteses de responsabilidades oriundas de fatos inerentes as atividades humanas?
Cuida-sede 28 artigos com prazo determinado para viger, ou seja, com inícioem 1º de setembro de 2021.
Todavia, malgrado essas pontuações introdutórias que me parecem de extremada importância, vamos adentrar no tema propriamente dito, que impacta e fere, a meu sentir,o conteúdo constitucional acima enfatizado.
Assim, permito-me, caros leitores e estimadas leitoras, tecer minhas primeiras considerações sobre os artigos ali expostos.
Nas disposições iniciais, são adotadas as seguintes definições (art. 2º):
“I – seguro de responsabilidade civil à base de ocorrências (occurrencebasis): tipo de contratação em que a indenização a terceiros, pelo segurado, obedece aos seguintes requisitos:
- os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice; e
- o segurado apresente o pedido de indenização à seguradora durante a vigência da apólice ou nos prazos prescricionais em vigor”.
Penso que na letra “b” supra o legislador deveria, ao menos, se referir ligeiramente aos termos prescricionais estampados no inciso II, letras “a” e “b”, assim como no § 3º, inciso IX, do Código Civil que é fruto de lei ordinária, ex vi legis, inciso III do artigo 59 da Constituição Federal de 1988.
A Resolução, etc., está prevista no inciso VII deste artigo constitucional, portanto, bem abaixo da graduação que o processo legislativo deve inteira obediência.
Ademais, é princípio assente em doutrina que o poder regulamentar só poderá traçar normas secundumlegem, ou seja, jamaispraeteroucontra legem.
Ao azo, calha trazer nesta assentada os ensinamentos do grande jurisconsulto Pimenta Bueno, que advertia:
“De princípio, também incontestável, que o Poder Executivo tem por atribuição executar e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se que ele cometeria grave abuso em qualquer das seguintes hipótese: 1. Em criar direitos ou obrigações novas, porquanto seria uma inovação exorbitante de sua atribuição”. (Direito Brasileiro, 1.857, página 236).
Vejam só, caros leitores edistintas leitoras, desde os tempos do Império essas afirmações sempre eramrespeitadase acatadas pelos doutos.
Vamos em frente.
O item II do artigo 2º desta Resolução, diz:
“Seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claimsmadebasis): tipo de contratação em que a indenização a terceiros, pelo segurado, obedece aos seguintes requisitos:
- os danos ou o fato gerador tenham ocorrido durante o período de vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade; e
- o terceiro apresente a reclamação ao segurado durante a vigência da apólice, ou durante o prazo adicional, conforme estabelecido no contrato de seguro”.
Olhem aí, novamente, a utilização deanglicismo.
A expressão estrangeira que se utiliza a Resolução em pauta se referea uma base de sinistros feitos, que é um modo de resseguro em que a data do relatório do sinistro é considerada a data correspondenteao evento do sinistro.Vale sublinhar, que os sinistros avisados ao segurador durante a vigência do contrato de resseguro estarão cobertos, independentemente de quando ocorreram.
Já o inciso III deste artigo em comento, determina:
“‘seguro de responsabilidade civil à base de reclamações (claimsmadebasis) com notificações: tipo de contratação em que a indenização a terceiros obedece aos seguintes requisitos:
..........
Neste ponto a Resolução em tela elenca da letra “a” até a letra “d” hipóteses de danos e casuísticas de fatos geradores, envolvendo terceiros que apresentem reclamações ao segurado durante a vigência da apólice ou, tautologicamente[UdW1] , durante os prazos prescricionais previstos na lei material.
Quanto ao inciso IV há referência novamente ao seguro de responsabilidade civil à base de reclamações nas quais são contempladas situações de casuísmos plasmados da letra “a” a “c”.
No item V são previstos custos de defesas, inclusive judiciais.
O item VI se estabelece a data limite de retroatividade ou data retroativa de cobertura. O VII - limite máximo de garantia; VIII - limite máximo de indenização; IX - limite agregado; X - notificação do tomador ou segurado; XI - período de retroatividade; XII - prazo adicional; XIII - reclamação manifestada por terceiro; XIV - qualificação do tomador do seguro e, por fim, neste derradeiro inciso estão previstos os parágrafos primeiro a terceiro que tratam, respectivamente, da obrigatoriedade da utilização de glossário; palavras e expressões utilizadas no conteúdo do seguro e, por último a referência a definições equivalentes às mencionadas nos incisos do caput do artigo 2º desta Resolução.
Dentro desta toada pretendo, agora, tecer considerações no que tange o Capítulo II, que normatiza os “Aspectos Gerais” do Seguro de Responsabilidade Civil, assim como sua classificação de acordo com a natureza dos riscos, suas atribuições e o limite em que ele é aplicável dentro do contexto securitário.
Deveras. O Capítulo II normatiza os Aspectos Gerais do Seguro de Responsabilidade Civil.
Assim como estáprevisto nasDisposições Gerais do Seguro, artigo 757 do Código Civil, no Seguro de Responsabilidade Civil, a sociedade seguradora garante o interesse legítimo do segurado, “quando este for responsabilizado por danos causados a terceiros e obrigado a indenizá-los, a título de reparação, por decisão judicial ou decisão em juízo arbitral, ou por acordo com os terceiros prejudicados, mediante a anuência da sociedade seguradora, desde que atendidas as disposições do contrato”. (Artigo 3ºdessa Circular).
Os autores franceses Mazeaud&Tunc, clássicos no tema Responsabilidade Civil, traçam uma dicotomia entre a cláusula de não responsabilidade e o Seguro de Responsabilidade Civil, quando ensinam:
“No seguro de responsabilidade, o autor da culpa reforça sua responsabilidade; em lugar de livrar-se de sua obrigação, a sustenta por obrigação do segurador; o dano causado à vítima será reparado com maior seguridade por quanto o responsável está segurado. No Seguro de Responsabilidade Civil se permite ao responsável cumprir com sua obrigação de reparar”. (Tratado Teórico y Práctico de La Responsabilidad Civil Delictual y Contractual. Tradução livre do autor. Ediciones Jurídicas Europa-América, Buenos Aires, tomo tercero, volumen II, página 2).
Os parágrafos 1º e 2º do caput do artigo 3º dispensam maiores comentários.
No §3º deste artigo da Circular está dito que a sociedade seguradora poderá oferecer outras coberturas como custos de defesa dos segurados, bem como de multas e penalidades a eles impostas. Estas disposições, via de regra, constam expressamente nos Códigos de Seguros de outros países, vale dizer, são normatizadas sempre em sede de lei ordinária como se requer na legislação brasileira e seria bem mais oportuna, ou ao menos bem mais convinhável aos nossos princípios constitucionais.
Já no que concerne ao §4º é uma situação, como diria o sistema romano exarado no dito dares ipsaloquitur, vale dizer, - fala com a própria coisa – uma vez que a contratação de outra cobertura requer menção detalhada deste fato na proposta.
O disposto nos §§5º e 6º são decorrências da própria sistemática do Seguro de Responsabilidade Civil, tais como reclamações de terceiros e o limite dos danos que jamais poderão exceder o limite contratado.
No artigo 4º da Circular pautada a norma ali estabelecida diz respeito a natureza dos riscos, tais como seguros RC D&0; RC profissional; RC riscos ambientais; RC riscos cibernéticos e RC geral.
O artigo 5º trata da faculdade de contratação à base de reclamações e/ou notificações ou, ainda, descobertas à base de ocorrências. Este artigo e seu parágrafo único têm uma redação, data vênia, deplorável.
O artigo subsequente, isto é, o 6º trata da exclusão de coberturas pela prática de atos ilícitos vedados pelo nosso Código Civil. É a meu ver um bis in idem.
Quanto ao artigo 7º há uma redação bastante confusa e até certo ponto ininteligível, a meu sentir, ao sabor de maiores esclarecimentos que merece esta cobertura securitária às partes contratantes.
No artigo 8º está prevista a vedação de referência a qualquer tipo de legislação estrangeira, quando o âmbito geográfico do seguro for o território nacional, o que me parece um pouco óbvio.
No parágrafo único deste artigo, se permite o uso de expressões estrangeiras, desde que sua definição conste do glossário do seguro.
Dentro deste Capítulo, o artigo 9º menciona a necessidade da identificação da personalidade jurídica dos contratantes, se pessoa física ou jurídica.
A possibilidade de livre escolha ou da utilização de profissionais credenciados pelos segurados é abordado no item II do artigo acima mencionado.
Finalmente, o direito de ressarcimento – sub-rogação convencional - inciso III do artigo 346 do Código Civil - é contemplado em item de idêntica numeração romana no ventilado artigo 9º desta Circular, só ressaltando que ele poderá ser incorporado neste instituto jurídico (sub-rogação), mesmo que seja decorrente de atos ilícitos dolosos, malgrado estes danos sejam ocasionados por terceiros. De fato e neste ponto, de pleno acordocom o bom direito o que está normatizado neste inciso posto que emabsoluta sintonia com o § 1º do artigo 786 do nosso Código Civil, que dispõe:
“Salvo dolo, a sub-rogação não tem lugar se o dano foi causado pelo cônjuge do segurado, seus descendentes ou ascendentes, consanguíneos ou afins”.
Há, sem dúvida alguma, aqui, perfeita sintonia da Circular com o Direito Material, ou em outras palavras, uma nítida adequação com a lei ordinária.
Passo a examinar, agora, as últimas normas insertasnesta Circular que cuida dosAspectos Específicos do Seguro de Responsabilidade Civil previstos no Capítulo III, artigos 10º a 25, arrematando com as Disposições Finais da Circular Susep nº 637, de 27/07/2021.
Este Capítulo cuida dos Seguros de RC D&O; do Seguro de Responsabilidade Civil Geral RC Geral e do Seguro de Responsabilidade Civil à Base de Reclamações.
O primeiro deles, o RC D&O trata de estabelecer a figura do segurado que são as pessoas físicas que contratam ou em benefício das quais uma pessoa jurídica contrata o seguro as quais durante o período de vigência do seguro, ou do período de retroatividade nela em suas subsidiárias ou em suas coligadas ocupem passem a ocupar ou tenham ocupado. Art. 10, inciso I, Sic.
Acredito que os termos empregados neste inciso legal poderiam ter tido uma redação bem mais burilada, data vênia.
Pois bem. As letras “a” e “b” tratam dos cargos de Diretor, Administrador, Conselheiro, ou qualquer outro cargo executivo para os quais tenham sido eleitas e/nomeadas por órgãos competentes, ou no cargo de gestão no exercício de sua função.
O inciso II repete, novamente, a situação dos segurados quer como pessoas físicas ou jurídicas que passam à condição de segurados pelo fato de terem sido contratadas por extensão de cobertura. Não teria sido mais adequado e, consequentemente, mais técnico a disposição em tela em único inciso legal?
O inciso III e IV, do artigo acima mencionado, diz respeito, respectivamente, às empresas subsidiárias ou coligadas.
Assim, no artigo 11 dessa circular se discorre sobre o interesse do segurado em ser responsabilizado por danos causados a terceiros em virtude de atos ilícitos culposos em que é obrigado a indenizá-los por decisão judicial ou proveniente de juízo arbitral, ou até decorrente de acordo com os prejudicados mediante a anuência da sociedade seguradora.
Aliás, o artigo desta Circular guarda bastante sintonia com o disposto nas Disposições Gerais do Seguro prevista no artigo 771 do Código Civil e muito bem lançadas na Obra O Contrato de Seguro de acordo com o Novo Código Civil, aonde está dito:
“Mantendo coerência com a definição do contrato de seguro (Art. 757), a norma cuida da perda do direito a indenização e não da perda da garantia. Com a realização do risco (sinistro) o segurado passa a ter direito à indenização”. (Ernesto Tzirulnik; Flávio de Queiroz B. Cavalcanti e Ayrton Pimentel, 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais, 2003, página 86).
Também registrei, logo no início, nos meus comentários a este artigo, verbis:
“ Verifica-se que o art. 771 do Código Civil exige que o segurado dê ciência do sinistro ao seu segurador, não exigindo que essa comunicação seja necessariamente efetivada por escrito. É claro, que para fugir da penalidade que lhe é imposta pela lei material, vale dizer, perda do direito à indenização o segurado deverá munir-se de algum elemento que comprove a sua comunicação do sinistro ao seu segurador, até mesmo para alforriar-se do lapso prescricional. (Voltaire Marensi. O Contrato de Seguro à Luz do Novo Código Civil, 3ª edição. Thomson/Iob, 2005, página 36/37).
Nos §§ 1º e 2º do artigo 11 da Circular se fala do limite da garantia e de que as sociedades seguradoras não poderão atuar concomitantemente como tomador e segurador, que garanta seus próprios executivos e de suas subsidiárias ou das empresas coligadas.
O artigo 12 dispõe sobre o fato de exclusões previstas em lei e seu respectivo parágrafo único, enfatiza a responsabilidade civil diante de atos culposos praticados por pessoas jurídicas ou físicas que tenham exercido cargos administrativos ou de gestão.
O artigo 13 relaciona algumas outras hipóteses de coberturas, tais como de pessoas físicas ou jurídicas que tenham exercido funções ou de gestão no tomador, em suas subsidiárias ou coligadas; as que tenham assessorado os segurados; as que realizam adiantamento de valores, ou assumam o compromisso de indenizar pessoas que exerçam funções executivas ou cargos de administração; o tomador garantindo a sociedade por atos ilícitos culposos praticados pelo segurado, assim como os familiares ou as pessoas relacionadas legalmente com os segurados, tais como herdeiros, representantes legais, espólio do segurado, cônjuges ou companheiros.
No Seguro de Responsabilidade Civil Geral (RC Geral) diz o enunciado do artigo 14 que se constitui um ramo específico que cobre riscos de responsabilização civil por danos causados a terceiros, abrangendo como segurados as pessoas jurídicas, as físicas e outros tipos de sociedade em comum.
O artigo 15 repete o que está transcrito no artigo 11 que trata do primeiro seguro de responsabilidade civil contemplado na circular em comento.
Em sequência a norma prevista no artigo 16 dispõe sobre osSeguros de Responsabilidade Civil à base de reclamações destinados àqueles sujeitos a risco de latência prolongada ou a sinistros com manifestação tardia.
Os de números 17 e 18, respectivamente, tratam do período de vigência e das condições contratuais nas quais o terceiro deve apresentar sua reclamação durante o período de vigência da apólice ou do prazo adicional, além do fato de que as reclamações estejam sempreimbricadas a danos ou fatos geradores ocorridos durante a vigência da apólice, ou durante o período de retroatividade.
O artigo 19 dá um elastério bem mais acentuado se referindo que nas condições contratuais deverá ser concedida uma cláusula adicional, com hipótese de não renovação do seguro; de transferência à outra sociedade seguradora; de sua transformação ao final da vigência e no caso de sua extinção.
Nos §§ 1º e 2º deste artigo se cuida de prazo adicional, notadamente em seus incisos I a VI, com casuísmos exacerbados o que, a meu sentir, não é bom quando se trata também de mais uma regulamentação legal.
O seguro de responsabilidade civil, diz o artigo 20, deve conter cláusula de transformação prevendo prêmio adicional, data limite e informação para o segurado exercer o direito de transformação com novo prêmio e endosso ao contrato de seguro em vigor.
Para não cansar em demasia nossos estimados leitores e caras leitoras, os artigos 21 a 25 cuidam de detalhes que a Circular prescindia constar em relação aos seguros à base de reclamações. Repito à exaustão: são casuísmos que não precisavam conter em seu corpo normativo.
Nas Disposições Finais está assinalado que os planos de responsabilidade civil deverão ser adaptados à presente norma em até cento e oitenta dias após sua entrada em vigor que ocorrerá no dia 1º de setembro de 2021.
É isto que ocorre quando não temos uma lei ordinária – Código Civil –, em que deveria ser sido, a meu sentir, data vênia, bem mais detalhado em relação a um seguro de extremada importância como é o Seguro deResponsabilidade Civil. Só o atual e isolado artigo 786 daquele diploma legal deixa muito a desejar, principalmente quando não se tem uma matéria deste jaez formatada em uma legislação securitária mais moderna e, sobretudo, mais escorreita frente a um princípio basilar que é o da hierarquia das leis.
É o que penso, salvante melhor ótica ao que exponho nestes meus ligeiros comentários sobre a vertente Circular.
Porto Alegre, 7 de agosto de 2021.
Voltaire Marensi - Advogado e Professor
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