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O direito à sucessão dos filhos concebidos “post mortem” no campo da reprodução artificial
Emannueli Felix Bueno
Pesquisadora em Criminologia e Execução Penal; Pós Graduanda em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC); Bacharela em Direito.
Resumo: O presente trabalho visa discutir o direito sucessório no âmbito da reprodução artificial, uma vez que, tendo em vista sua lacuna legislativa, impede o aperfeiçoamento do Direito ao versar sobre conteúdo grandemente oportuno às famílias brasileiras. Destarte, seria possível, portanto, posicionar filhos concebidos após a morte do de cujus na linha de sucessão hereditária, concorrendo com outros filhos anteriores à morte? Importa considerar, inclusive, se a legislação está se adaptando a essas novas demandas, mesmo quando em fertilização no post mortem propriamente dito. No âmbito da inovação, razoar sobre novas inconformidades que constantemente acompanham a evolução do direito e da tecnologia e estabelecer regulamentações a estas novas realidades é, de fato, elementar.
Palavras-chave: Sucessões, civil, fertilização in vitro, sucessão hereditária.
Abstract: This work aims to discuss the succession law in the scope of artificial reproduction, since, in view of its legislative gap, it prevents the improvement of the Law by dealing with content that is highly opportune to Brazilian families. Thus, would it be possible, therefore, to place children conceived after the death of the deceased in the line of hereditary succession, competing with other children before death? It is also important to consider whether the legislation is adapting to these new demands, even when fertilized in the post mortem itself. In the field of innovation, reasoning about new non-conformities that constantly accompany the evolution of law and technology and establishing regulations for these new realities is, in fact, elementar.
Keywords: Succession, civil, in vitro fertilization, hereditary succession.
- INTRODUC?A?O
A gestação é um sonho para grande parte das famílias, porém, não são todos os casais que conseguem realizá-lo naturalmente, principalmente devido a infertilidade. Portanto, houve a necessidade de que surgissem métodos alternativos que garantissem a eficácia do processo, mesmo que induzido. Nestes termos, com o constante aperfeiçoamento das técnicas médicas, de pesquisa, e também a incessante evolução da sociedade, novas formas de auxílio aos seres vivos foram dispostas no mercado, conseguindo alcançar objetivos por vezes espontaneamente impossíveis.
Devido ao tangível evento, muitos casais avançaram em busca das técnicas para garantir a gestação e concepção de filhos que tem, como primeiro passo, a coleta de materiais genéticos e seu congelamento até que o corpo esteja preparado. Fato é que, mesmo crentes que o procedimento se dará por completo, não há como descartar possíveis infortúnios. O tema a ser aqui debatido revela justamente a ocorrência de determinada fatalidade crucial ao processo: a morte do companheiro antes da fertilização.
O direito das sucessões garante o processo de encaminhamento dos bens do de cujus aos seus herdeiros, automaticamente por meio da sucessão hereditária, ou de acordo com o querer do mesmo, mediante testamento. O questionamento que exsurge neste contexto é o seguinte: estariam os filhos concebidos após a morte do de cujus, contemplados pela sua sucessão hereditária, concorrendo com outros entes?
É de suma importância o estudo de casos que acompanham a evolução da sociedade, de suas tecnologias, e do direito, haja vista o espírito de inovação que o judiciário deve ter em mente, além da sua contínua mudança. Com o conhecimento humano cada vez mais desenvolvido, questões antes não debatidas vêm à tona e precisam ser regulamentadas para uma justa convivência entre os seres.
- MATERIAL E ME?TODOS
Neste trabalho serão utilizados autores do Direito Civil que discutem o tema (doutrina), artigos científicos, casos práticos e resoluções, traçando-se uma linha histórica e monográfica. A pesquisa será exploratória e descritiva, por meio de revisão bibliográfica.
- RESULTADOS E DISCUSSA?O
Para esmiuçar temas sobre o direito sucessório, há que entender, de início, todas as questões que o envolve, sendo necessário traçar a linha sucessória a quem deve receber os bens do de cujus, abordar de que forma poderão ser transferidos estes bens e analisar como será dada a concorrência de recebimento. Para tanto, primeiro vamos ao seu conceito.
A título de introdução histórica, interessa representar a situação arcaica do direito das sucessões no tempo. Magalhães (2001) relembra períodos onde as sucessões só se davam aos filhos homens, e a isso não diziam somente aos bens, mas também a considerada “história da família” a qual não poderia ser contada às suas mulheres, pois as mesmas, ao se casarem, deixariam suas famílias sanguíneas para pertencerem à de seus maridos, não podendo reproduzir os segredos de sua “família anterior”.
Segundo o mesmo autor, esta perspectiva só começou a tomar novos rumos a partir de uma lei mosaica, na qual baseava-se na perspectiva de que, quando o falecido não tivesse filhos homens, deixaria seus bens para sua filha, no caso de não haver filha, deixaria para seus irmãos, e assim sucessivamente.
Em suma, Gonçalves (2016) detalha em sua obra que o início de uma eficaz reforma contra os princípios patriarcais se deu na revolução francesa, momento crucial para a queda dos privilégios machistas na história, pelo menos com relação às sucessões hereditárias. Foram também os franceses que começaram uma influência enorme em novas legislações, como, inclusive, a brasileira.
A sucessão, propriamente dita e devidamente regulamentada, trata especialmente sobre a sucessão causa mortis, haja vista se tratar de sucessões do patrimônio de um de cujus. Neste caso, abre-se a oportunidade dada por lei para o recebimento deste patrimônio por seus herdeiros legítimos, ou, quando feito, por testamento. Porém, pode ocorrer a sucessão ainda em vida, como nos casos de pessoas ausentes, ou seja, aqueles que saem de seus domicílios sem deixar notícias ou quando em desastres ambientais as buscas não prosperam. Nestes, ocorre sucessão provisória de seus herdeiros por 10 anos, e, em seguida, a sucessão definitiva.
Após a conceituação aqui delineada, importa questionar a ordem de sucessão. Dispõe o Art. 1784 do código civil que, “aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Esta transmissão é feita automaticamente, após o falecimento. Porém, quem são os herdeiros?
Segundo o Art. 1786 do Código civil, “a sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade”. Por lei quando favorece sua sucessão hereditária, por última vontade quando é deixado um testamento elencando seus sucessores (de qualquer forma, 50% dos bens do testador deverão ser destinados a seus herdeiros necessários). Porém, também haverá a sucessão legítima quando houver nulidade no testamento ou quando o mesmo caducar.
O tema neste artigo exposto, quanto à sucessão de filhos concebidos post mortem, confere à adequação do conceito sobre a vocação hereditária, ou seja, sobre a primeira classe que é chamada na ordem de sucessão legítima: os descendentes.
Resta mencionar os Arts. 1799 e 1800 do Código civil, que versam sobre a sucessão testamentária. O inciso I do Art. 1799, comenta que podem ser chamados para sucessão os filhos que ainda não concebidos, mas vivos no momento da abertura da sucessão. Logo, o Art. 1800 do Código Civil estipula um prazo de dois anos para que seja concebido o herdeiro esperado, caso não ocorra, a sucessão será feita aos herdeiros legítimos, automaticamente.
O princípio da igualdade entre os estados de filiação está presente de forma exacerbante a partir da Constituição Federal de 1988, que evita qualquer distinção entre filhos naturais e adotivos, por exemplo. Portanto, a concorrência destes filhos no processo sucessório seria, em todas as formas, igualitária, segundo o Art. 1596 do Código civil. Contudo, ainda não resta demonstrado a possibilidade de filhos concebidos literalmente após a morte do de cujus. Observa-se, inclusive, que o Art. 1798 do Código Civil autoriza apenas a suceder “as pessoas já nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”
Para tanto, a análise do Art. 1597 faz-se necessária. Este dispositivo de lei adota a presunção de filhos concebidos na constância do casamento, aqueles havidos por fecundação artificial homóloga e heteróloga (desde que nessa, haja autorização prévia do marido, por se tratar de material de terceiro).
Ao se falar em reprodução homóloga, utiliza-se apenas os materiais genéticos do casal, sem intervenção de material de terceiro (COUTO, 2019)[1]. O código civil presume paternidade, mas, para tanto, são necessários documentos que comprovem o consentimento e autorização, podendo, quando não feitos, retirar a presunção e dispor apenas da possibilidade de investigação de paternidade. A fecundação post mortem é autorizada neste caso, segundo o Art. 1597, em seu inciso III. Para o efetivo uso de material genético após a morte do parceiro, também são necessários documentos que comprovem a autorização e o pleno consentimento.
Ao se tratar de reprodução artificial heteróloga, ou melhor, fertilização in vitro, usa-se o material genético de terceiro, não mais somente do casal (RICARDO, 2019)[2]. Para isso, também se exige a prévia autorização do companheiro, segundo o inciso V do Art. 1597, do Código Civil, para que a sua paternidade seja presumida. Porém, neste caso, o Código não especificou se a atividade é válida também para o período post mortem.
A partir desta resolução, um caso ocorrido no Brasil, em Curitiba, chama a atenção. (LEITÓLES; GERÓN, 2019)[3] Uma professora descobre um câncer em seu marido e, por recomendação médica, antes de começarem os tratamentos, ambos resolveram se submeter aos procedimentos de uma clínica de reprodução assistida, dispondo de material genético para congelamento e aguardo ao fim do tratamento de câncer.
Infelizmente o marido não resistiu ao câncer e morreu antes de iniciar o tratamento de fertilização. A mulher então foi até a clínica para realizar a fertilização e a possibilidade a foi negada por falta de documentação que autorizasse seu uso assinada pelo de cujus. Esta acionou a justiça que reconheceu a vontade do morto, ainda que, para tanto, não houvesse documentação expressa.
Caso parecido, porém, desta vez, ocorrido na França, foi o que deu o pontapé inicial neste tema, abrindo o questionamento para as legislações de muitos países. Foi o chamado “Affair Parpalaix”. Ocorreu que o marido, apaixonado e ainda sem filhos, se viu diante de um grave câncer nos testículos que o deixaria, após os tratamentos, possivelmente infértil. A atitude do homem baseou-se em guardar seu esperma em um banco de sêmen, haja vista seu imenso interesse em deixar herdeiros para o suceder.
Após o casamento dos dois, o homem veio a falecer. Com isso a viúva foi até o banco de sêmen para realizar o procedimento e a ela o foi negado por não haver respaldo algum na legislação. Disseram, inclusive, que não havia como comercializar “material de pessoa morta”. A partir deste, iniciou-se uma enorme batalha judicial que acabou decidindo pela procedência do procedimento. Porém, como a sentença demorou muito para sair, a fertilização restou infrutífera.
No Brasil, o assunto continua repleto de lacunas. A doutrina, por sua vez, apresenta duas correntes. A primeira considera inadmissível a sucessão do concebido post mortem por trazer o Art. 1798, à tona e com bastante literalidade, considerando que o nascimento de descendente post mortem poderia trazer insegurança jurídica aos outros possíveis filhos. Ao tema, OLIVEIRA e AMORIM (2016) seguem o raciocínio comentado, não considerando como nascituros os obtidos em concepção externa, ora por não estarem no ventre materno no momento da abertura da sucessão.
A segunda corrente segue com argumentos favoráveis. HIRONAKA (2007), por exemplo, em seu estudo, dimensiona que a pergunta correta a se fazer seria: haverá problemas ético-jurídicos com estes feitos? Na opinião da mesma, de maneira alguma. Portanto, qual seria o motivo da proibição?
- CONCLUSA?O
É possível estabelecer que a inseminação artificial post mortem é reconhecida através do Art. 1597 do Código civil, porém, a consideração da entrada ao direito de sucessão destes “filhos concebidos na constância do casamento”, ainda não. Uma via é pensar que, se são reconhecidos, se há presunção de concebidos no andar do casamento, consideram-se preenchidos os requisitos do Art. 1798 do Código civil, e pode ser dada a vocação hereditária, com a consequente concorrência com outros filhos e com cônjuge, absolutamente de acordo com o princípio da igualdade, amparado pelo Art. 227, §6° da Constituição federal.
Quanto à segunda via, remete-se a quem admite apenas a literalidade do princípio de saisine, considerando dispostos a ordem de vocação hereditária apenas aqueles concebidos até o momento da abertura da sucessão. A estes a preocupação principal é o fator da insegurança jurídica trazida aos possíveis outros filhos, que, se deparados com um novo herdeiro, terão que dispor de suas partes para dividi-las novamente ou, aguardar que este seja concebido para que então o processo de sucessão se inicie.
É inegável que, em algum momento, o legislador tenha que reconhecer algum plano jurídico para esta questão, haja vista se tratar da realidade posta, cada vez mais inerente à sociedade. Uma possível saída para tanto é a estipulação de prazo para que esta fertilização seja feita, e esta possibilidade já fora discutida pelo STF, em uma ação direta de inconstitucionalidade, a ADI 3510/DF, que versava sobre o uso deste material genético dentro da lei de biossegurança, estipulando prazo de 3 (três) anos para seu uso que, se não o feito, deveria ser descartado. Implantado no útero e tendo vingado, o mesmo terá o prazo prescricional de 10 anos para petição ao direito de herança. Esta alternativa pode estabelecer, enfim, a segurança jurídica.
De qualquer forma, mostra-se inegável a necessidade de sua normatização, entendendo que a dignidade da pessoa humana, a proteção da família e a isonomia entre os filhos são princípios fundamentais explícitos na Constituição Federal. Desta forma, cegar-se diante de omissão copiosamente nefasta, tende a fomentar centenas de desavenças e padecimentos familiares.
REFERE?NCIAS
BRASIL. Código civil. 22. ED. São Paulo: Saraiva, 2016
BRASIL. Constituição (1998). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
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FARIA, M. R. C. d. Direito das sucessões: teoria e prática. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019
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HIRONAKA, G. M. F. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. IBDFAM 24/04/07 Palestra proferida no I Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro "Interpretação do Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional", sob a coordenação científica do Professor Gustavo Tepedino (UERJ), em 23 de setembro de 2006. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=290. Acesso em: 17 de setembro de 2019.
MAGALHÃES, R. R. d. Instituições de direito das sucessões. Editora de direito, 2001.
OLIVEIRA, E. d., AMORIM, S. Inventário e partilha: teoria e prática. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2016
PINTO, C. A. F. Reprodução assistida: Inseminação artificial homóloga post mortem e o direito sucessório. Recanto das letras: São Paulo, 2008. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/879805>. Acesso em: 16 de setembro de 2019.
[1]COUTO, C. Reprodução humana assistida homóloga e heteróloga monoparentalidade, e coparentalidade: a ciência como instrumento de felicidade da família, 2015. Disponível em: <https://professorclebercouto.jusbrasil.com.br/artigos/211560163/reproducao-humana-assistida-homologa-e-heterologa-monoparentalidade-programada-e-coparentalidade> Acesso em: 18 de setembro de 2019
[2] RICARDO, A. L. Direito sucessório do filho concebido “post mortem”, 2018. Diponível em: <https://analeticiadireito.jusbrasil.com.br/artigos/627991320/direito-sucessorio-do-filho-concebido-post-mortem> Acesso em: 18 de setembro de 2019.
[3] LEITÓLES, F., GERÓN, V. Curitiba: nasce um bebê concebido em inseminação feita após a marte do pai, 2011. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/curitiba-nasce-bebe-concebido-em-inseminacao-feita-apos-a-morte-do-pai-5el3w0l9hm1q6eel0eke8jy32/>. Acesso em: 16 de setembro de 2019.
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