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As formações conceituais dos institutos de Direito de Família
Jones Figueirêdo Alves
1. Praeludium.
As histórias dos conceitos, em suas formulações, não se materializam por seus verbetes. Antes, as versões precedentes contam-se nas próprias formações conceituais em suas origens, quando novos institutos despontam por posturas doutrinárias avançadas que, em boa síntese, dinamizam o direito por novas concepções teóricas e metodológicas, refletidas diante de suas práticas experenciadas. Precedendo conceitos e verbetes, recolhemos os ensaios e a própria história das ideias.
No direito de família, doutrinadores eméritos colocam a seu serviço, espaços reflexivos de densidade que formulam novos institutos com a juridicidade dos fatos da vida. Afinal, nas ideias que dimensionam a formação dos conceitos, estão os significados de sua natureza peculiar, identitária e interpessoal.
Assim é que, em uma breve conferência singular, notável e única, obteve-se o conceito da “desbiologização da paternidade” (1979). O direito de família avançou qualitativamente e nunca mais foi o mesmo; emancipou-se de uma visão clássica e ortodoxa. O conceito foi empregado pela primeira vez, durante célebre conferência ministrada por João Batista Villela, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (01).
Mais adiante, surge o conceito da “socioafetividade” (1992), ditado pelo jurista Luiz Edson Fachin, em sua obra “Estabelecimento da Filiação e Paternidade Presumida”, que contribui e ampla os conceitos de família em sua pós-modernidade.
Consolida-se o princípio da afetividade que “especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família”. (Paulo Lobo, 2012)
Nessa consequência, a “multiparentalidade” vem ter sua conceituação como princípio edificante de novas famílias, construindo um novo estado de filiação, conjunto ao anterior, onde paternidade ou maternidade dúplices ensejam melhor explicá-las em suas constituições afetivas.
Em tal desiderato, o STF, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 898060, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux, em Repercussão Geral, estabeleceu o princípio da afetividade nas relações familiares, “consolidando o vínculo socioafetivo como suficiente vínculo parental”, aprovando a seguinte tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
Também merece realce as “famílias recompostas” ou “famílias pluriparentais”, surgidas com maior frequência, após a introdução do divórcio pela Lei n. 6.515/77. São as chamadas “famílias mosaico”, formadas por outros vínculos e reconstruídas, como distinta unidade familiar, pelos novos pares reunidos, que somam os filhos de suas uniões anteriores à essa nova família. Tais famílias reconstituídas implicam singulares estruturas de convívio, muitas vezes envolvendo convivência continuada com os antigos parceiros, em decorrência das filiações anteriores, e suscitam novas definições. São as famílias patchwork (direito alemão) ou as famílias recomposées (direito francês).
Importa considerar repercussões subjacentes ao desempenho das conceituações, designadamente quando se cuida da relação entre os filhos dos novos casais, que não guardam consanguinidade comum e que, em princípio, cogita-se como irmãos socioafetivos (não unilaterais ou bilaterais entre eles). Exige, como admite Rodrigo da Cunha Pereira, conceituação própria, a saber da incidência ou não do inciso IV do art. 1.521 do Código Civil.
2. Conceituações recentes. Vejamos, à guisa de repertório, as conceituações mais recentes de institutos de família:
(i) A expressão família ética foi construída (2018) pelo britânico Paul Collier, da Universidade de Oxford, segundo a fórmula de um vínculo, não apenas afetivo, mas de obrigações mútuas, com potenciais de reciprocidade e de pertencimento, um sistema de crenças e de responsabilidades. Nela, integram-se deveres e obrigações da comunidade familiar moderna. (02)
(ii) Dentro dessa moldura de família ética, visualizamos o “casal parental”, atribuindo-se essa qualidade jurídica aos pais comuns dos mesmos filhos, quando finda a união afeto-convivencial entre eles. Permanecem unidos pelo liame parental que os mantém com os filhos existentes, constituindo uma nova família jurídica, cuja regulação se extrai do poder familiar de ambos e que padece de um melhor tratamento legal. Rodrigo Cunha prefere denominá-la “família bi-nuclear”.
(iii) Com o PL nº 105/2020, ora em tramitação, introduzindo no Estatuto do Idoso, um novo instituto jurídico, surge o conceito da senexão. O sentido finalístico da expressão é o de medida protetiva a colocar o idoso em família substituta. Diversamente da “adoção de idosos”, Patrícia Novais Calmon o indica como instrumento de “inclusão do idoso em um núcleo familiar que lhe confira dignidade e pertencimento”, onde, afinal, amplia-se “o espectro conceitual da socioafetividade, viabilizando a formação de laços familiares atípicos/inominados e não filiais”.
(iv) Segue-se a conceituação do etarismo, como uma das formas menos visiveis de intolerância, pelo comportamento discriminatório que impõe exclusões etárias nos relacionamentos, afetando, sensivelmente, as pessoas idosas. Tem-se o seu equivalente ao termo inglês ageism, cunhado e desenvolvido nos estudos do psiquiatra e gerontologista Robert Neil Butler (1969) a significar, antes de mais, um conflito geracional ditado pelo preconceito.
(v) Território fértil situa-se na “Alienação Parental”, disciplinada pela Lei nº 12.318/2010, de 26 de agosto. Dentre muitos dos conceitos, a partir do próprio instituto, podemos referir ao da “purga emocional”, quando o(a) genitor(a) procura destruir lembranças que possam evidenciar presente a imagem paterna ou materna, provocando uma ruptura emocional com o passado, tratados pela psicanalista e jurista Giselle Groeninga.
Aliás, no seu estudo “Alienação Familiar Induzida” (Lumen Juris, 2015), Bruna Barbieri Waquim, introduz esse novo termo e a sua conceituação legal. Ela exemplifica melhor com a hipótese da alienação induzida contra genitores idosos que “manipulados por um dos parentes afastam-se dos demais familiares, em virtude de interesses financeiros do alienador”.
(vi) Topografia jurídica com destacado repertório conceitual, sumamente importante, é oferecida pelo instituto da união estável, a partir do pressuposto de estabilidade, contido nas expressões “contínua” e “duradoura”, referidas pelo artigo 1.723 do Código Civil para a sua configuração. De notar, então, que mesmo não se exigindo prazo mínimo algum (elemento tempo) ou outros elementos acidentais (prole e coabitação), caso é o de se observar o “start” (encetamento, começo) para os fins do reclamo de uma verdadeira “cláusula geral de constituição” da união estável, como denomina Flávio Tartuce (03) Tudo a empreender jornada de obtenção aos aludidos elementos (continuidade e duração), além do “animus familiae”, outro elemento decisivo e caracterizador, somado ao da “publicidade” da união existente.
A propósito, cumpre lembrar como obra referencial acerca dos conceitos clássicos, o “Breviário de Direito Privado Romano” (Coimbra, 2010) do romanista Antônio Santos Justo, onde se dedica, com maestria, a definir direitos e origens dos institutos.
(vii) Bem é certo considerar, então, que o elemento objetivo diferenciador entre os institutos do “namoro qualificado” - a permitir, inclusive, relações mais intimas e coabitação – e o da união estável situa-se, exatamente, no ânimo ou de constituir família, onde nesse último a vida a dois exige tomada de decisões mútuas.
A tanto, o inesquecível jurista Zeno Veloso designou o instituto como “namoro qualificado”, sobre ele tratando em notável palestra na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, durante o VI Congresso Luso-Brasieiro de Direito do Instituto Silvio Meira (10-11/05; 2017) (4).
Anote-se que julgado do Superior Tribunal de Justiça, envolveu profunda análise da figura jurídica do “namoro qualificado”, no efeito de sua necessária distinção em face da união estável. (STJ – 3ª Turma, REsp. nº 1.454.643-RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, DJe. 10.03.2015).
(viii) Outro instituto jurídico a exigir amplas conceituações advém do termo “poder familiar”. Por sinal, a significação do “poder familiar”, que nosso Código Civil adotou em 2002, substitutiva do “pátrio poder” do Código Civil de 1916, vem sendo, modernamente, substituída pela expressão “autoridade parental”, ou mais precisamente, pelo instituto jurídico das “Responsabilidades Parentais”. Em Portugal, a Lei nº 61/2008, alterando o Código Civil de 1966 quanto ao regime jurídico do divórcio, instituiu um sistema de responsabilidades parentais. Em França, com as alterações da Lei de 0.03.2002, reformando o Direito de Família, também foi feita a opção pelo instituto da autoridade parental, como referência ao melhor funcionamento jurídico dos deveres paternos.
Com exatidão, diz-nos Paulo Lobo que “o conceito de autoridade, nas relações privadas, traduz melhor o exercício de função ou de múnus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade e no interesse do outro”.
3. Novas conceituações. Impende atenção acerca das novas conceituações formuladas pela doutrina familista. De imediato:
(i) Vem à colação, antes de mais, a coparentalidade (“coparentig”), destinada a conceituar uma nova realidade familiar, segundo a qual cuida-se precisamente de um projeto parental, sem a necessidade de formação de um relacionamento íntimo ou afetivo dos parceiros envolvidos (05).
Essa parceria de paternidade/maternidade, segundo Débora Spagnol, como fenômeno de “família líquida” decorrente da interação com redes sociais e na internet, é a busca de um parceiro ideal para gerar uma criança para ambos, sem que não necessitem de vínculos sexual ou afetivo. Esses arranjos familiares têm origem nos Estados Unidos, em sites como “MyAlternativeFamily”, “Coparents” e “Co-ParentMatch”, dentre outros.
(ii) No tocante às famílias monoparentais (art. 226, § 4º, CF), uma nova conceituação é, recentemente, formulada por Fabíola Albuquerque Lobo. Ela refere às famílias de monoparentalidade derivada, formada por mães provedoras que cuidam da família, após ruptura de união com o antigo companheiro. Acrescentaria: também à luz do art. 1.638 do Código Civil, quando da perda do poder familiar. Tema a exigir, de fato, novas incursões da doutrina da festejada jurista
4. Reflexões finais. Diante da formação conceitual dos institutos de família, impõe-se refletir a conveniência de sua aplicação no contexto das configurações de origem. Há quem defenda um retorno à “determinabilidade das palavras”, ao entendimento de “a linguagem é a melhor forma de construir e manter comunicação entre os cidadãos. E, também, entre esses e o Estado”.
Vinicius Cunha sustenta que “ao utilizar determinada palavra na lei, o legislador automaticamente está incorporando o significado adotado no momento anterior da edição da referida lei. O legislador não cria palavras, tampouco constrói significados a seu bel-prazer. E o papel dos juristas é justamente respeitar a utilização dessas palavras, nem mais, nem menos”. (06).
Lado outro, é axiomático o que pondera o historiador alemão Reinhart Koselleck, em sua obra “História de Conceitos” (Contraponto, 2020), ao expressar:
“A história dos conceitos não é ´materialista´ nem ídealista´: investiga tanto as experiencias e estado de coisas que são capturados conceitualmente, quanto o modo como essas experiências e esses estados de coisas são conceitualizados”. Nesse sentido, é dizer, com precisão, que “a história dos conceitos serve como mediadora entre as histórias da linguagem e as histórias extraconceituais”.
Pois bem. Cumpre lembrar, na cadeia histórica de tempos do direito de família, o exemplo destacado no voto, vencido e pioneiro, do desembargador Athos Gusmão Carneiro (TJRS) e depois Ministro do Superior Tribunal de Justiça, ao admitir, pela vez primeira (1982), possível a indenização (art. 159, Código Civil de 1916) por sevícias e injúrias cometidas por ex-marido, já reconhecidas em sentença de desquite litigioso. Esse voto-paradigma constitui sede pioneira da conceituação em torno da reparação civil nas relações conjugais ou convivenciais. (07)
Do mesmo modo que a autonomia da vontade teve seu conceito pioneiro em Immanuel Kant, que a aborda e define na obra “Fundamentação à metafísica dos costumes”, as famílias se reinventam, no curso dos seus tempos históricos, pela determinação una de vontades na formação dos seus conceitos.
Quando Adam Fergunson, em seu “Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil” (tratado moral que aborda sobre as virtudes do homem em sociedade), buscou referir a expressão “sociedade civil” como oposto do “individuo isoladamente considerado”, retenha-se que “sociedade civil” e “família” integram-se, em seus fins conceituais, como continente e conteúdo.
Em ser assim, com novas e determinantes formações conceituais, seguramente as famílias se encontrarão melhor no moderno direito de família para aperfeiçoarem os seus direitos. História e família caminham juntas em suas formulações.
Referências:
(01) O texto da conferência é o conteúdo do artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte (MG), n. 21, Ano XXVII, maio/1979; pp. 400/418.
(02) “The Future of Capitalism: Facing the New Anxieties”, London, UK: Allen Lane, 2018, 256 p;
(03) Manual de Direito de Família, 2013, 3ª ed., GEN/Método, p. 1.166
(04) VELOSO, Zeno. “União Estável e o chamado “namoro qualificado” no Brasil. Equiparação entre cônjuges e Companheiros. Capítulo 6 de sua obra “Direito Civil. Temas (Jus Podivm, 2019, 2ª ed., pp. 295-324);
(05) SPAGNOL, Débora. Do “Pater Famílias” à Copareentalidade: Breve análise da evolução familiar. In: CORDEIRO, Carlos José. GOMES, Josiane Araújo (Org.) Temas Contemporâneos de Direito das Famílias, vol. 3. São Paulo: Ed. Pilllares, 2018, 538 p., pp. 87-101
(06) CUNHA, Vinicius. A segurança jurídica e sua natureza de sobreprincípio. In: Web: https://www.aurum.com.br/blog/seguranca-juridica/
(07) Acórdão: Revista dos Tribunais n. 560, 6/1982, pp. 178-186. No julgado, teve-se por improcedente o pedido da ação indenizatória, ao fundamento de que a postulante não fizera prova dos danos que alegara. Ou seja, de um efetivo prejuízo patrimonial que teria resultado das sevícias e injúrias; não se admitindo, em rigor, o dano exclusivamente moral.
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Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico, 27.06.2021
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