Artigos
Da Execução Invertida – ADPF 219 e uma análise sob o aspecto da legislação federal
Társis Nametala Sarlo Jorge
Doutor em Direito
Procurador Federal da AGU
Membro do IAB
Colaborador do IBDFAM
Professor, Escritor, Articulista.
Introdução
Em momento recente, mais precisamente em 20 de maio do corrente ano de 2021 – o Supremo Tribunal Federal, julgando improcedente a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 219 de relatoria do Min. Marco Aurélio, proferiu decisão no sentido de que a chamada execução invertida está de acordo com os princípios que regem os juizados especiais no que concerne a participação da Fazenda Pública, com referência às Leis 10.259/01 (que trata dos juizados especiais federais) e 12.153/09 (que cuida dos Juizados especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios).
O punctum dolens da questão foram as mais de 8.000 (oito mil) intimações da União Federal para apresentação de cálculos em execuções nos Juizados Especiais Federais no Rio de Janeiro. Aliás, é interessante se observar que as Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Rio de Janeiro editara inclusive um Enunciado a respeito do tema, o de n. 52, com a seguinte redação:
Nas ações que tenham por objeto prestações de trato sucessivo, a sentença ou acórdão que julgar procedente o pedido determinará a implantação administrativa da prestação, podendo o juiz ordenar que a parte ré forneça os elementos de cálculo ou indique o valor dos atrasados, para o fim de pagamento na forma do art. 17 da Lei 10.259/01. ”5 (Aprovado na Sessão Conjunta realizada em 26/05/2006, e publicado no DOERJ de 01/06/2006, p. 5, Parte III).
Antes de passarmos à análise do mérito, é preciso fazer uma observação. O termo execução invertida é bastante atécnico, cisto que não há inversão de posições na execução. O exequente continua sendo exequente, assim como o executado. O que se inverte é o ônus de apresentação das contas acerca da quantia pretendidamente devida.
Histórico da Questão
Em termos simples, a execução invertida é aquela na qual o ônus de apresentação das contas (ou seja, do quantum debeatur) é imposto à parte executada, ao invés da parte exequente, que é a regra geral no atual Código de Processo Civil.
Por exemplo, pode-se verificar no art. 523 do Código Processual que o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente. E que, de acordo com o art. 524, o requerimento (...) será instruído com demonstrativo discriminado e atualizado do crédito, devendo a petição conter:
(...)
II - o índice de correção monetária adotado;
III - os juros aplicados e as respectivas taxas;
IV - o termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados;
V - a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso;
VI - especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados;
As regras acima são as gerais, em face de qualquer devedor, dentro da sistemática do CPC. No que tange à Fazenda Pública enquanto executada, a normatividade, ainda que assentada em outros dispositivos legais, não é outra.
Com efeito, o art. 534 do CPC determina que no cumprimento de sentença que impuser à Fazenda Pública o dever de pagar quantia certa, o exequente apresentará demonstrativo discriminado e atualizado do crédito contendo (...). E os incisos subsequentes repetem literalmente a redação dos incisos do art. 524.
Assim é que, no âmbito do Código de Processo Civil, o legislador optou pelo ônus do exequente na apresentação de conta, seja o devedor um particular, seja a Fazenda Pública.
No entanto, na seara dos juizados especiais, já não é de agora que se observa o comportamento de alguns juizados no sentido de inverter tal ônus (daí a expressão execução invertida) impondo o ônus de feitura dos cálculos à Fazenda Pública, em favor do exequente.
Também é importante registrar que não é esta a primeira vez que a questão vai dar com os costados no âmbito do STF. Há algo em torno de 05 anos, ao julgar o Tema de Repercussão Geral n. 597, o mesmo Excelso Pretório entendeu que esta mesma questão era de índole infraconstitucional.
A referida decisão assim se figurou:
Tema de Repercussão Geral nº 597: "imposição ao INSS, nos processos em que figure como parte ré, do ônus de apresentar cálculos de liquidação do seu próprio débito". Resultado do julgamento: "não há repercussão geral (questão infraconstitucional)" — Supremo Tribunal Federal, Pleno, Recurso Extraordinário nº 729.884/DF, Rel. Minº Dias Toffoli. Data de julgamento: 23/6/2016. Data de publicação: 1/2/2017.
Como se vê, agora, o figurino é outro. O Supremo não somente entendeu tratar-se de questão de altitude constitucional como também entendeu que é compatível com o procedimento especial dos Juizados Especiais de Fazenda Pública a aplicação do “instituto” da execução invertida.
Na ADPF ora discutida, a União Federal arguiu a violação aos preceitos insculpidos nos arts. 2º; 5º, caput e incisos II, LIV e LV. 22, inciso I; e 37, caput, todos da Carta de 1988.
A questão nos Juizados de Fazenda Pública e na interpretação sistemática da tríade legal dos juizados
A Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/01) é bastante lacônica em muitos pontos, inclusive na questão de tais ônus no momento da execução. A Lei dos Juizados Especiais da Fazenda no nível estadual também não ajuda a elucidar a questão (Lei 13.105/09).
Sabe-se que ambos os diplomas supra aludidos compõem um todo sistemático com a Lei 9099 de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), que é mais completa em vários aspectos.
Com efeito, ela possui uma seção inteira (Seção XV) acerca da execução. Seu art. 52 determina que a execução da sentença processar-se-á no próprio Juizado, aplicando-se, no que couber, o disposto no Código de Processo Civil, com as seguintes alterações (...).
Dentre as alterações, observa-se o inciso II deste mesmo art. 15 que reza:
II – os cálculos de conversão de índices, de honorários, de juros e outras parcelas serão efetuados por servidor judicial.
Deve-se observar atentamente o inciso II acima: ele impõe não às partes, mas ao Judiciário o ônus de liquidação da conta. Aliás, foi exatamente neste sentido a arguição da União Federal na ADPF citada, ao afirma, em sua exordial:
Desse modo, constata-se, de plano, a existência de violação aos princípios do devido processo legal e da isonomia, bem como aos preceitos da legalidade e, consequentemente, da separação dos Poderes, uma vez que os atos hostilizados estabelecem obrigação que somente poderia ser criada mediante lei, emanada, portanto, do Poder Legislativo. (Grifos nossos).
Mais adiante, na mesma exordial:
De fato, a imposição ao ente central do dever processual de apresentar planilha de cálculos nos processos em que figure como réu, por não possuir previsão legal (...).
Mas não só. Há várias e várias decisões no sentido ora defendido:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR MILITAR. REAJUSTE NO PERCENTUAL DE 28,86%. LEIS N° 8.622/93 E 8.627/93. PRESCRIÇÃO PARCIAL. EXTENSÃO AOS MILITARES DE ESCALÕES INFERIORES. SÚMULA N° 13 DA TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS. PROCEDIMENTO DOS CÁLCULOS PELA UNIÃO. DESCABIMENTO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...) Não é dever legal da ré proceder aos cálculos dos valores devidos na condenação, o que será feito em etapa executória da decisão, nos termos do artigo 604, do código de Processo Civil. Recurso parcialmente provido.
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR MILITAR. PRESCRIÇÃO QÜINQÜENAL. O REAJUSTE NO PERCENTUAL DE 28,86%, CONCEDIDO PELAS LEIS N° 8.622/93 E 8.627/93, CONSTITUIU REVISÃO GERAL DOS VENCIMENTOS, SENDO DEVIDO AOS MILITARES QUE NÃO O RECEBERAM EM SUA INTEGRALIDADE. JURISPRUDÊNCIA JÁ PACIFICADA EM TORNO DA MATÉRIA. SÚMULA N° 13 DA TURMA NACIONAL DE UNIFORMIZAÇÃO. PROCEDIMENTO DOS CÁLCULOS PELA UNIÃO. DESCABIMENTO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...)
Não constitui obrigação legal do devedor proceder aos cálculos dos valores determinados na sentença, o que deverá ser feito em etapa executória da decisão, cabendo à União, entretanto, o ônus de apresentar os dados imprescindíveis à confecção dos cálculos, sob pena de reputarem-se corretos os oferecidos pelo credor, consoante previsão contida no art. 604, §1 °, do CPC, que pode ser, analogicamente, aplicado à espécie. Recurso parcialmente provido. Sem condenação em honorários, por estar o recorrido desacompanhado de advogado.
Inclusive, a Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Bahia editou Súmula neste sentido:
Súmula n° 6 - Não se impõe ao réu a obrigação de realizar cálculos para apuração do valor da condenação, cabendo a tarefa ao autor (ou ao contador judicial, a mando do juiz), exigindo-se daquele, apenas, que disponibilize os elementos materiais mantidos em seu poder que sejam necessários à confecção da conta
Também é verdade que o inciso III prevê a possibilidade cumprimento voluntário pelo executado:
III - a intimação da sentença será feita, sempre que possível, na própria audiência em que for proferida. Nessa intimação, o vencido será instado a cumprir a sentença tão logo ocorra seu trânsito em julgado, e advertido dos efeitos do seu descumprimento (inciso V);
Pois bem, o dispositivo deixa muito clara uma situação: uma coisa é a confecção dos cálculos. Outra, o pagamento espontâneo. Ou seja, não importa por quem são feitos os cálculos. O pagamento espontâneo do devedor caracteriza-se pelo cumprimento voluntário do título executivo já liquidado.
E, como sabido, antes de se reportar ao Código de Processo Civil, o intérprete tanto da Lei dos Juizados Especiais Federais, quanto da Lei dos Juizados Estaduais da Fazenda Pública, tem que trilhar a Lei 9099/95, pois as três compõem um microssistema o qual somente se vale do Código de Processo Civil na ausência de disposição.
Uma revisão crítica da questão
Portanto, se as três leis dos juizados formam um único sistema que somente se abebera no CPC em caso de lacuna sistemática interna para o caso de execução em face da Fazenda, seja no âmbito federal quanto no estadual, não poderia ser outra a assertiva correta que não a de que o ônus de realizar a conta é do Poder Judiciário, e não do exequente ou do executado. A disposição do art. 15 inciso II da Lei 9099/95 é expressa em tal sentido.
Ora, assim, ao menos quando se tratar de questão afeta à competência dos juizados não é possível impingir o ônus de apresentação da conta nem ao exequente nem ao executado. Neste caso há violação de legislação federal de forma explícita, rendendo ensejo aos recursos cabíveis.
Isto porque o legislador fez uma escolha. Em se tratando de parte hipossuficiente (como é a regra nos juizados), o legislador impôs ao Poder Judiciário o ônus da conta, e não às partes quaisquer que sejam elas.
É equivocada tal imposição tanto à Fazenda quanto ao particular que com ela litiga pelo caminho dos juizados fazendários.
A questão dentro do CPC
Retomando o CPC, reconhece-se que há disposição expressa no art. 523 abre a possibilidade de intimação do executado para pagamento voluntário em 15 dias. E, se o fizer, por uma interpretação a contrario sensu do parágrafo 1º do art. 523, não será onerado com honorários da execução nem com a multa de 10%, o que só ocorrerá, de forma proporcional, se o pagamento for parcial (parágrafo 2º do art. 523).
Ocorre, entretanto, que no sistema de execução contra a Fazenda Pública (arts. 534 e seguintes do CPC, como já aludido), não existe tal previsão.
É verdade, outrossim, que os primeiros artigos do estatuto processual, que preveem as chamadas normas fundamentais do processo civil alguns dispositivos que poderiam abrir ensanchas à aplicação desta sistemática aos processos que correm no rito do CPC.
Ad exemplum, temos o art. 6º:
Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
Não seria estapafúrdio entender que a Fazenda Pública, dotada de maior instrumental, pudesse realizar desde logo os cálculos, em favor de particulares que, muita vez, não tem condições materiais para tanto. Ocorre que como sujeitos do processo o CPC inclui o Estado Juiz. Portanto, de tal dispositivo não se pode extrair uma interpretação segundo a qual seria correto impor o ônus liquidatório à Fazenda Pública.
Outro dispositivo que chama atenção é o art. 7º:
Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
Cuida ele da chamada paridade de armas. E dispõe explicitamente acerca da distribuição equitativa de ônus processuais. Há uma diferença sutil entre o art. 6º e o 8º que não pode ser omitida. O art. 6º menciona os sujeitos do processo, dentre os quais, como já dito, se inclui o Estado Juiz. De outro lado, o art. 7º fala em partes, o que, evidentemente, exclui o Estado Juiz. Ou seja, o Estado julgador é sujeito do processo, mas não é parte.
Assim sendo, em se tratado de exequente hipossuficiente, este dispositivo poderia ser utilizado para justificar a apresentação dos cálculos pela Fazenda Pública. No entanto, a paridade de armas não significa apenas impor este ou aquele ônus a uma das partes peticionantes. Considerando-se, como se considera, o Estado juiz como sujeito do processo (mas não parte) pode muito bem assumir o ônus da apresentação das contas (como ocorre, conforme já demonstrado, no âmbito da sistemática dos juizados de fazenda).
Veja-se ainda o art. 8º :
Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Ao invocar a dignidade da pessoa humana bem como a proporcionalidade e a razoabilidade o CPC poderia estatuir fundamentos outros para a inversão do ônus de apresentação das contas ora analisado. Mas o problema que se apresenta é o mesmo. A razoabilidade, a dignidade da pessoa humana podem ser atendidas por medidas tomadas pelo próprio Poder Judiciário que, de acordo com o art. 2º do CPC, apesar de começar pela iniciativa das partes, se desenvolve por impulso oficial (salvo exceções previstas em lei).
Não seria contrariar tal principiologia se interpretar que o em se tratando de parte hipossuficiente, ainda que fora do âmbito dos juizados especiais fazendários, o ônus fosse do Poder Judiciário.
O comportamento da Fazenda Pública
O que pretende, portanto se demonstrar é que é absolutamente contrário à sistemática ora vigente entender que a Fazenda Pública tem o ônus de apresentar a liquidação dos valores.
Demais disto, já foi demonstrado nestas linhas que cumprimento espontâneo da execução não decorre necessariamente da apresentação de contas pelo executado.
O cumprimento espontâneo cuida do pagamento do débito/crédito apresentado nos autos, por quem quer que seja, isto é, pelo exequente, pelo Juízo ou pelo próprio executado.
É equivocado, repise-se, o entendimento segundo o qual o estabelecimento da paridade de armas se dá apenas pela redistribuição de ônus e funções entre as partes. Na verdade, o Juízo, enquanto órgão do Estado não só pode como deve assumir alguns ônus que não devem ser impostos à parte.
Isto dito, cabem algumas palavras acerca do comportamento da Fazenda Pública.
É evidente que o que aqui se defende não exclui em toda e qualquer hipótese a apresentação de cálculos pela Fazenda Pública. Não é disso que ora se trata. Do que aqui se trata, isto sim, é que é ilegal a imposição de tal ônus à Fazenda.
Entretanto, pode a Fazenda, quando entender conveniente apresentar os cálculos, inclusive como medida de estratégia processual, visto que isto torna o procedimento mais célere e menos custos de muitas formas: menos horas trabalhadas por seus Procuradores; menos tempo contado do início da execução e o pagamento, com economia em termos de juros e correção (basicamente a SELIC) e melhor aproveitamento da qualificada mão de obra das Procuradorias em questões de maior importância.
Por isto, a Fazenda pode – a depender de um juízo de conveniência, inclusive levando em conta a disponibilidade ou não de servidores em setor contábil (que muitas vezes rareiam) – apresentar as contas de execução, as quais, se não impugnadas pelos autores, são remetidas por RPV de forma mais célere.
O mesmo se diga no âmbito dos processos guiados pelo caminho do Código de Processo Civil.
O que não é lícito é que tal faculdade seja transformada em um ônus a todo e qualquer custo.
A decisão do STF
Embora quando da escrita destas páginas ainda não estivesse disponível o inteiro teor do acórdão do STF, pode-se observar que o pedido na ADPF foi de se reconhecer a inconstitucionalidade da interpretação que atribui à parte ré/executada o dever de apresentar os cálculos necessários à execução de decisões judiciais.
No extrato de ata consta que foi julgado improcedente tal pretensão.
Portanto, o que se pode dessumir é que a questão restou decidida (embora ainda se tenha que avaliar eventuais embargos declaratórios pela União, se ela vier a fazer uso dos mesmos) no âmbito constitucional.
Conclusões
Tendo sido exarado entendimento do excelso sodalício nas questões apresentadas na ADPF 219, resta claro que em termos constitucionais, com as ressalvas já feitas, o tema não poderia mais ser questionado.
No entanto, há uma série de questões de direito federal que foram, inclusive, objeto de análise na presente. Portanto, é possível ainda que a questão venha a ser objeto de análise em instâncias infraconstitucionais operando-se o cotejo da legislação federal já mencionada e concluindo-se, como aqui se conclui, que não há base legislativa infraconstitucional para impingir-se tal ônus à Fazenda Pública.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM