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Guarda e desenvolvimento humano segundo a teoria bioecológica de Urie Bronfenbrenner
Sirlei Martins da Costa
Juíza titular da 1ª Vara de Família de Goiânia. Mestranda em Cultura Jurídica pela Universidade de Girona, Espanha. Presidente da Comissão dos Magistrados de Família do IBDFAM/GO.
Vannúzia Leal Andrade Peres
Doutorado em Psicologia (UnB-2001). Estágio Pós-Doutoral em Educação (UnB-2012).
Professora titular da PUCGO.
Resumo: Este estudo tem a finalidade de propor que profissionais com atuação nas disputas pela guarda de crianças e adolescentes busquem a superação de um paradigma simplificador na análise do processo judicial, quase sempre restrito a escolha do modelo de guarda: unilateral ou compartilhado, e apresenta a teoria bioecológica do desenvolvimento humano – proposta por Urie Bronfenbrenner – para análise dos processos desta natureza. Segundo a teoria, nós, seres humanos, estamos nos desenvolvendo contextualmente no modelo denominado pelo autor como PPCT – Processo, Pessoa, Contexto e Tempo, de forma dinâmica e inter-relacionada. Argumenta-se sobre a necessidade de uma abordagem acerca do desenvolvimento de todas as pessoas imbricadas no processo litigioso, assim como a premência de consideração dos diversos fatores elencados na teoria bioecológica do desenvolvimento humano, que interagem de forma bidirecional ao longo da vida. Entende-se que esta abordagem é capaz de propiciar uma compreensão contextualizada e individualizada de cada integrante da família.
Palavras-chave: Guarda. Conflito familiar. Teoria bioecológica do desenvolvimento humano.
Resumen: Este estudio tiene por finalidad proponer que profesionales que actúan en conflictos por la custódia de niños y adolescentes consigan superar el paradigma simplificador dentro del análisis del proceso judicial, restringido casi siempre a escoger el modelo de guarda: exclusiva o compartida. Además, presenta la teoria bioecológica del desarrollo humano – propuesta por Urie Bronfenbrenner – para análisis de los procesos de esta naturaleza. Según la teoría, nosotros, seres humanos, estamos desarrollándonos, contextualmente, en el modelo denominado por el autor como PPCT – Proceso, Persona, Contexto y Tiempo, de forma dinámica e interrelacionada. Se argumenta sobre la necesidade de un enfoque acerca del desarrollo de todas las personas involucradas en el proceso litigioso, así como la premencia de consideración de los diversos factores citados en la teoría bioecológica del desarrollo humano, que interactúan de forma bidireccional a lo largo de la vida. Se entiende que este enfoque es capaz de propiciar una comprensión contextualizada e individualizada de cada integrante de la familia.
Palabras-clave: Guarda. Conflicto familiar. Teoría bioecológica del desarrollo humano.
Sumário: 1. Introdução. 2. Temática que permeia a disputa pela guarda. 3. Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. 4. Interação entre o Direito de Família e a Teria Bioecológica do Desenvolvimento Humano. 5. Conclusões. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
À ciência do Direito, mais especificamente ao ramo do Direito de Família, cabe disciplinar a responsabilidade parental e ela o faz buscando preservar e promover o desenvolvimento dos filhos, mormente durante o período em que são considerados incapazes e geridos pelos seus responsáveis.
O princípio do melhor interesse da criança e adolescente é norteador da tomada de decisões. Mas quais são os critérios buscados ou estabelecidos pelo Direito para determinar o que realmente impacta no desenvolvimento humano dos filhos submetidos a disputa pela guarda?
As normas são elaboradas e aplicadas de maneira verdadeiramente eficiente para garantir boas condições de desenvolvimento humano para os filhos, cuja guarda é disputada? Ao pretender garantir adequadas condições para o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, qual o conceito de desenvolvimento humano vem sendo adotado pelo Direito? Qual o referencial teórico científico utilizado?
Este estudo busca analisar questões relacionadas a fatores culturais, econômicos e políticos que fundamentalmente têm sido utilizados, ao longo do tempo, para justificar a criação, alteração e aplicação de normas disciplinadoras do Direito de Família no que concerne ao regramento do exercício da responsabilidade parental, principalmente quanto ao modelo de guarda a ser exercido em casos de separação dos genitores.
2 TEMÁTICA QUE PERMEIA A DISPUTA PELA GUARDA
Certamente o tema referente ao cuidado com os filhos não escapa ao universo simbólico e se apresenta como mais uma representação social.[1]A história do Direito de Família demonstra isso claramente. Primeiro, a norma tinha como finalidade reafirmar o papel do homem/pai como o chefe de família que tudo decidia.
Mais recentemente, com a promulgação das Leis n. 11.698/2008 e n. 13.058/2014, veio a tentativa de o legislador impor normas rígidas com a finalidade de buscar um maior equilíbrio na distribuição de responsabilidades entre pais e mães, na tentativa de ultrapassar o paradigma do pai provedor e da mãe cuidadora.
Da mesma forma, vem-se buscando ampliar a temática da guarda por meio da superação do ponto central que prevaleceu, por muitos anos, na análise deste tipo de processos e que se limitava à busca pelo genitor com “melhores condições” para criar os filhos.
Contudo, como já sabemos, uma sociedade não caminha sempre numa única direção e a trajetória acerca dos temas que tem como pano de fundo as questões humanas e familiares não é marcada por uma sequência de avanços.
Se houve ganhos por um lado, por outro, a verdade é que os processos judiciais que cuidam da disputa pela guarda passaram a sofrer outro tipo de restrição discursiva.
Atualmente, raros são os processos referentes ao litígio pela guarda que não se limitam à discussão binária: guarda compartilhada versus guarda unilateral. No emprego das armas usadas para defesas de suas teses, as partes passaram a apresentar, frequentemente, a alegação de alienação parental. Quanto mais acirrada a disputa, mais graves as alegações de condutas alienatórias do sujeito.
O julgador passa a ser direcionado no sentido de apresentar as seguintes soluções processuais com a promulgação da sentença: aplica-se a guarda unilateral ou compartilhada. Há ou não alienação parental.
Avançamos em uma direção, mas estagnamos em outra.
Ao tratar acerca de como o discurso sobre a alienação parental (AP) se adequou tão bem no Brasil, Mendes assim expôs:
A defesa da AP, como argumento jurídico para tomada de decisão em relação à guarda, remete ao paradigma tradicional do Direito que é cartesiano, linear e simplificador das relações interpessoais, bem como do contexto sócio-histórico no qual elas estão inseridas. A própria teorização sobre a AP é cartesiana, linear e simplificadora e, por esse motivo, encontra ressonância nos pressupostos do Direito e parte dos seus atores.[2]
Não pretendemos argumentar acerca da inexistência de condutas que visam afastar o filho de um genitor, ou de outra pessoa da família; tampouco desconsideramos a importância da norma que tratou do compartilhamento da guarda, mas o enfrentamento dos litígios desta natureza não deveria se limitar às fórmulas simplificadoras que, em regra, são adotadas.
É necessário compreensão mais aprofundada do litígio e isso implica a análise de todos os envolvidos e não apenas dos filhos “disputados”. Também se faz necessária alguma compreensão acerca do modelo de arranjo que preexistia ao fim da família nuclear.
A abordagem ora apresentada não tem como finalidade propor a solução definitiva para as questões controvertidas apresentadas no processo judicial. O que se busca é que o processo seja conduzido de modo a fazer com que os envolvidos se sintam mais preparados para permitir que as dificuldades que forem surgindo se dissolvam, dando lugar a outros pontos que, certamente, revelar-se-ão no curso do tempo.
O casal apresenta a demanda pela guarda em juízo como se o julgamento da disputa fosse representar a pá de cal na relação conjugal. Contudo, a separação é um acontecimento na vida dos envolvidos, tal qual foi o casamento. Os acontecimentos são seguidos por outros que se interpõem durante e após o processo. Os profissionais envolvidos devem ter a clareza disso para que assim possam atuar positivamente a partir de seus lugares de ação.
A condução do litígio precisa estar respaldada numa teoria que considere as dificuldades de todos os envolvidos e interprete a disputa em sua complexidade, a fim de que o processo judicial não represente um instrumento simplificador e limitador das relações humanas.
Visando ultrapassar este paradigma, este estudo apresenta uma proposta interdisciplinar, que pretende empregar a teoria bioecológica do desenvolvimento humano, elaborada por Urie Bronfenbrenner,[3] como uma inspiração para os operadores do Direito, da Psicologia e do Serviço Social quando atuam em matéria que trata da responsabilidade parental, pois tal teoria apresenta o conceito de desenvolvimento humano que leva em consideração um conjunto de fatores que impactam no percurso humano. Algumas conclusões apresentadas pelo Direito se mostram bastante ineficientes e, até mesmo, incoerentes por reduzirem a complexidade do que é desenvolvimento humano.
A teoria bioecológica do desenvolvimento humano, de Urie Bronfenbrenner,[4] visa demonstrar a importância de se elaborar, e depois se interpretar – com base em estudos e pesquisas científicas – normas que visem atuar no desenvolvimento do indivíduo, pois a crença em premissas falsas e a imposição de regras incompatíveis com as condições ambientais dos indivíduos muitas vezes geram mais frustrações do que benefícios aos envolvidos, tantos genitores quanto filhos. A teoria propõe uma compreensão mais ampla e consistente acerca da importância da dinâmica e da multiplicidade ecológica do desenvolvimento humano,[5] a fim de demonstrar que durante todo o ciclo de vida o ser humano deve ser entendido como ser em desenvolvimento, ou seja, não apenas durante a infância e adolescência, e que todos os integrantes de uma família estão implicados no processo de influenciarem e serem influenciados uns pelos outros numa constante interação com o ambiente em que estão inseridos. Portanto, para que se atinja o objetivo que consiste em aplicar a norma de maneira a produzir decisões capazes de colaborarem para promoverem o melhor ambiente para o desenvolvimento dos indivíduos imbricados nos processos litigiosos, necessária se faz uma compreensão mais aprofundada do exercício do cuidado durante a relação conjugal para, a partir de então, buscarmos uma melhor compreensão do conflito.
A teoria proposta por Bronfenbrenner[6] considera o desenvolvimento pendente de quatro dimensões que interagem continuamente, denominado de “Modelo PPCT” – Processo, Pessoa, Contexto e Tempo, que será a seguir apresentado.
3 TEORIA BIOECOLÓGICA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Na obra intitulada Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados, Urie Bronfenbrenner[7] apresentou suas inquietações quanto aos modelos de pesquisa empregados no estudo do desenvolvimento humano, sempre fragmentados, cada um direcionado para seu objeto de estudo: ora a criança, ora a mãe e o filho, ora a família, mas sempre num único contexto, sem interação. Os experimentos se davam num ambiente artificial, sem possibilidade de retratar a amplitude das influências vivenciadas num ambiente natural: “grande parte da Psicologia desenvolvimental é a ciência do comportamento desconhecido da criança em situações desconhecidas com adultos desconhecidos por períodos de tempo mais breves possíveis”.[8]O estudo desenvolvido por Bronfenbrenner foi publicado no final dos anos 1970, intitulado inicialmente Teoria Ecológica. O trabalho estava sustentado na compreensão de desenvolvimento humano de maneira contextualizada e em ambientes naturais.
Buscou o autor, na teoria apresentada, interpretar a realidade numa configuração mais abrangente, tal qual é vivida e percebida pela pessoa no contexto em que está inserida.[9]A própria trajetória de vida do autor apresenta um cenário cultural muito diversificado. Nascido em 1917, na antiga União Soviética, mudou-se para os Estados Unidos em 1923, em razão do complicado momento político vivenciado por seu país natal. Na escola americana, Bronfenbrenner teve oportunidade de conviver com crianças de diferentes etnias, e de culturas outras. Contudo, suas experiências foram especialmente ricas porque seu pai, médico, trabalhava em uma instituição para pessoas com problemas psíquicos. Tratava-se de uma área rural, onde os funcionários moravam em residências próximas à instituição na qual os internos trabalhavam em oficina, cultivo de terras e outras atividades locais, além de frequentarem aulas. O pai relatava para Bronfenbrenner sobre suas angústias ao observar que os coeficientes intelectuais dos pacientes internados diminuíam após algumas semanas na instituição, já que eram avaliados na chegada e em momentos posteriores. Quando apresentavam escores baixos ao longo da estada na instituição, não recebiam alta e muitas vezes permaneciam institucionalizados.
Por outro lado, os pacientes que chegavam em melhores condições e, por isso, podiam trabalhar e frequentar áreas externas da instituição, apresentavam aumento de seus coeficientes intelectuais. Seria sua primeira observação acerca das influências sobre o desenvolvimento humano, que mais tarde representou toda uma vida profissional dedicada ao estudo do tema que influenciou e ainda influencia profundamente a Psicologia e outras áreas do conhecimento acerca da compreensão do desenvolvimento humano. Certamente sua experiência de vida foi muito profícua para a publicação da obra Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados, em 1979, e influenciou sobretudo sua análise sobre os aspectos biológicos e sociais.
Na referida obra, o autor apresenta meio ambiente como sendo “concebido topologicamente como uma organização de encaixe de estruturas concêntricas, cada uma contida na seguinte. Essas estruturas são chamadas de ‘micro-, meso-, exo- e macrossistema: [...]’.[10] Eis a apresentação de cada uma dessas estruturas:
a) Microssistema – Refere-se ao grupo que está mais próximo da pessoa. Existem algumas possibilidades de interação imediata, mas as mais frequentes e influentes, em regra, são a família e a escola (em relação à criança). A crença e os comportamentos dos pais influenciarão os filhos, mas estes também impactarão no desenvolvimento dos pais. Bronfenbrenner ampliou o conceito de microssistema para “incluir aspectos sociais, físicos e simbólicos do contexto imediato que convida, permite ou inibe o engajamento sustentado na interação progressivamente mais complexa com o ambiente imediato”.[11] Segundo o autor, há quatro tipos de interações entre os microssistemas: 1) Participação em múltiplos sistemas, que ocorre quando a pessoa atua ativamente em mais de um ambiente. É o caso da criança que cria uma rede de relações direta ou de primeira ordem ao atuar na escola e na família. Dá-se nesta situação o vínculo primário, que ocorre na díade, a qual constitui a unidade mínima de interação interpessoal. As pesquisas feitas antes dos estudos de Bronfenbrenner,[12] e até mesmo na atualidade, costumavam levar em consideração apenas as relações desenvolvidas nas díades, como é o caso do filho com a mãe, sem se preocupar com as outras relações estabelecidas entre as crianças; 2) Ligação indireta. É o que se passa quando a pessoa não atua direta e ativamente em mais de um ambiente, mas a inter-relação entre os diferentes ambientes se dá pelo engajamento de uma terceira pessoa, que serve como vínculo de intermediação entre os participantes nos dois cenários. A rede indireta é denominada rede de segunda ordem. É o caso da avó que se muda para outra cidade, mas continua acompanhando o neto por meio dos pais deste; 3) Comunicação entre ambientes. Isso ocorre quando as mensagens são passadas de um ambiente para outro com o fim de trocar informações entre as redes dos dois ambientes. É o caso dos registros nas agendas escolares, com a finalidade de manter os pais informados sobre a rotina dos filhos; 4) Conhecimento interambiente. Representam as expectativas que existem em um ambiente em relação a outro. É o caso da mãe que espera determinadas ações ou comportamento que deveriam acontecer na casa paterna quando a criança está naquele ambiente. As expectativas geradas no microssistema são um aspecto relevante do desenvolvimento humano. Entender estas implicações e necessário quando se pretende estudar e melhor compreender o desenvolvimento humano.
No que tange aos efeitos de segunda ordem, por exemplo, pesquisas revelam que as relações entre o casal impactam significativamente nas relações entre os pais e seus filhos. Maria Auxiliadora Dessen e Áderson Luiz Costa Jr.,[13] citando Bigras e Paquette (2000), Brody et al. (1986), Das Eiden et al. (1995) e Erel e Burman (1995), afirmam que, de acordo com referidos autores, relações conjugais mais conflituosas estão associadas “a um nível mais alto de estresse nas relações parentais e a uma menor capacidade de resolver os problemas na busca de caminhos mais saudáveis”.
b) Mesossistema – Diz respeito às relações existentes dentro do microssistema. É o caso por exemplo das relações estabelecidas entre os pais e os professores da escola frequentada pela criança. Desde a mais tenra idade, as experiências das crianças fora do ambiente familiar também estão presentes no desenvolvimento dos demais membros da família.
c) Exossistema – Trata-se do ambiente no qual a pessoa não está inserida, mas são influenciadores do desenvolvimento de outras pessoas. É exemplo deste sistema o local de trabalho dos pais, ainda que não frequentado pelos filhos, indiretamente, ele impacta no desenvolvimento deles.
d) Macrossistema – O autor afirma que o conceito foi pavimentado na teoria da evolução “sócio-histórica da mente” de Vygotsky, “que estabelece a tese de que o potencial para o desenvolvimento individual é definido e delimitado pelas possibilidades de uma determinada cultura em um certo momento histórico”.[14] O Macrossistema engloba as características dos demais sistemas, na medida que representa os elementos da cultura de um povo, a forma de governo (democrática ou ditatorial), a religião oficial ou predominante no local. Neste aspecto, as normas vigentes numa determinada época disciplinando o arranjo familiar a ser constituído após a separação, bem como as políticas públicas adotadas para amparar famílias com menos recursos terão importância no desenvolvimento dos membros da família.
É conveniente mencionar o impacto da globalização e da internet e, mais recentemente, das redes sociais. A influência neste caso, outrossim, é indireta, mas os seus elementos ditam padrões que são seguidos pelos indivíduos e tudo isso interferirá no desenvolvimento humano de todos os integrantes do grupo. O desenvolvimento humano diante dos impactos culturais, sobretudo no que tange à moral, religião, questões de gênero e construção da identidade, não devem ser ignorados, pois mesmo numa mesma época e cultura é possível que subculturas, como a de uma religião mais conservadora, seja fator determinante para adoção de uma postura rígida ou inflexível no contexto de divórcio ou disputa pela guarda.
e) Cronossistema – Embora este não tenha constado da obra Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados, vamos apresentá-lo aqui por uma questão didática. Este quinto elemento somente foi acrescido na revisão dos trabalhos de pesquisa do autor na década de 1990, mais precisamente no período entre 1994 a 1999, quando a noção de cronossistema ganha destaque como mais um nível do contexto de desenvolvimento humano. Ele se refere ao momento em que os eventos ocorrem ao longo da vida da pessoa, mas, sobretudo, engloba as modificações e enfatiza a sua consciência ao longo do tempo, não apenas quanto ao indivíduo, mas também quanto ao decurso no ambiente e na sociedade. O decurso do tempo abarca as mudanças na estrutura da família, na condição socioeconômica individual e no País ou região, o que inclui serviços sociais, moradia, disponibilidade de emprego, etc.
O tempo abarca dois sentidos. Um primeiro que se refere ao processo micro de interação que se dá entre o ser em desenvolvimento e os que interagem com ele no cotidiano. O segundo sentido diz respeito à passagem do tempo histórico que dimensiona e determina os sistemas culturais em razão dos hábitos, costumes e do impacto da tecnologia. Neste ponto, importante destacar que os avanços tecnológicos interferem de maneira determinante no desenvolvimento humano, seja na forma do cultivo de alimentos, no tratamento de doenças, nos meios de transporte ou de comunicação e convivência, como é o caso das recentes redes sociais.
Importante destacar os impactos mencionados, contudo, não se pode dimensionar o quão são positivos ou negativos. As produções temporais não podem ser entendidas como lineares ou decorrentes de uma ordem cronológica ou mesmo evolutiva. O que se evidencia é a interdependência das produções temporais na vida de cada membro da família. Cada integrante do grupo familiar, a partir dos limites e oportunidades proporcionadas pelas condições históricas, culturais e socioeconômicas em que estão inseridos influenciam os demais integrantes por meio de suas escolhas.
Os níveis de atuação do fator tempo no desenvolvimento humano são três: micro, meso e macro. O primeiro, microtempo, dá-se diante dos processos proximais. O impacto dos processos proximais está intimamente relacionado aos padrões e frequência das interações ao longo do tempo.
No mesotempo, a periodicidade dos eventos entre grandes intervalos de tempo, os quais podem ocorrer com intervalos maiores ou menores, como semanas, meses ou anos. É o caso do divórcio, recasamento ou outro divórcio.
O macrotempo diz respeito à ocorrência com impacto na sociedade, como é o caso por exemplo, do surgimento das redes sociais.
O tempo, como integrante dos componentes do modelo bioecológico do desenvolvimento humano, assim como os outros elementos (processo, pessoa, contexto) é propulsor de transformações no indivíduo e no ambiente, que, por sua vez, promoverá desenvolvimento também em outros indivíduos. Os eventos inerentes ao tempo são tratados sob a perspectiva não somente do curso da vida do sujeito, mas também do curso da história da sociedade. Os vários efeitos produzidos por cada elemento se dão de forma independente e também combinados, de maneira aditiva, o que dá à abordagem uma perspectiva da análise do fenômeno denominado desenvolvimento humano.
O ambiente é compreendido na obra do autor como um conjunto de estruturas concêntricas, no qual cada sistema abarca o outro progressivamente, formando um arranjo indissociável em que predomina a inter-relação e a influência bidirecional entre e intra-ambientes. Assim, o autor usava como exemplo didático as bonecas russas, que são encaixadas umas dentro das outras. Ambiente e processo são entendidos com uma relação funcional que engloba características da pessoa e do próprio ambiente.
A teoria apresentada por Bonfenbrenner[15] passou por reformulações ao longo de sua trajetória de estudos e pesquisas, de maneira que o modelo denominado “ecológico” na publicação de 1979 e que tinha o ambiente como destaque no desenvolvimento do indivíduo, evoluiu e tornou-se mais detalhado para contemplar os aspectos do desenvolvimento vinculados à pessoa, tendo ganhado, em 1992, a denominação de “teoria dos sistemas ecológicos”.
Posteriormente, a teoria foi completada com um esquema mais abrangente, que apresenta quatro aspectos inter-relacionados: O processo, a pessoa, o contexto e o tempo (modelo PPCT). Nessa etapa de suas pesquisas, Bronfenbrenner,[16] passa a focar mais no indivíduo e suas disposições, levando em conta a dimensão do tempo e a interação entre a pessoa e o contexto, direcionando a outra denominação para a teoria que passa a ser “Modelo Bioecológico de Desenvolvimento Humano”, conhecida na atualidade mundialmente como “Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano”.
O acréscimo da importância do simbólico e da dimensão tempo foram decisivos para a complementação da teoria, de maneira que, ao final, o autor afirma que a ciência define desenvolvimento como “o conjunto de processos pelos quais as propriedades da pessoa e do ambiente interagem para produzir a constância e a mudança das características biopsicológicas da pessoa ao longo do seu ciclo vital”.[17]
O modelo processo-pessoa-contexto-tempo revela uma interação de fatores determinantes no desenvolvimento humano. Pesquisas científicas feitas na década de 1960 com crianças nascidas abaixo do peso e a relação entre tal fato biológico e o fato social (condição econômica da mãe e disposição para a dedicação aos cuidados parentais) mostraram diferentes resultados no desenvolvimento das crianças, no que tange ao aspecto intelectual e incidência de doenças. Os modelos processo-pessoa ou processo-contexto não eram capazes de mostrar as diversas possibilidades de resultado no desenvolvimento humano.
O autor defendeu que o modelo em questão tem como mérito nem tanto apresentar respostas definitivas, mas principalmente gerar “novas questões, revelando as insuficiências das formulações existentes nas explicações de complexos fenômenos observados”.[18] Ainda seguindo seu estilo crítico, inclusive consigo próprio, o autor apresenta uma falha na formação do modelo processo-pessoa-contexto, que seria a falta do elemento tempo. É que o ambiente era até então considerado um elemento fixo no tempo e no espaço. Para exemplificar, o contexto social e desenho familiar eram considerados estruturas fixas no tempo. Necessário se considerar a constância e a mudança não somente em relação à pessoa, mas também ao contexto em que ela está inserida. O autor passa a dar especial destaque à experiência e aos eventos havidos no ambiente externo ou no próprio organismo.
Independentemente da origem, os eventos alteram a relação entre a pessoa e o ambiente e essa dinâmica pode desencadear algo impactante no desenvolvimento humano do indivíduo. Nessa fase dos seus estudos, o autor ampliou a noção de pessoa que passou a “retratar não somente as características idiossincrásicas, mas também como são instigadas pelo desenvolvimento, na expressão de sua subjetividade, levando em consideração as crenças, os valores, o nível de atividade, os traços de personalidade, o temperamento, as metas de vida e as motivações, dentre outras”.[19]
Focando os estudos na área biológica, o autor cuidou de analisar o quanto a genética e o meio ambiente podem contribuir para o desenvolvimento humano. Posteriormente, ele considerou que a pergunta mais importante era “como?” e não “o quanto”. A questão tinha sido apresentada há cerca de 30 anos, na década de 1950, por uma pesquisadora escocesa pouco conhecida, Anne Anastasi. A principal questão apresentada por ela segue sendo objeto de estudo até os dias de hoje: Quais os mecanismos fazem com que os genótipos sejam transformados em fenótipos?[20]Ao reforçar, contudo, que o centro do modelo bioecológico do desenvolvimento humano é o conceito de processo proximal, Bronfenbrenner[21] argumenta que percepção, cognição e motivação são sempre sobre alguma coisa e muito deste conteúdo está no mundo exterior e não no interior do organismo, ou seja, gira em torno de pessoas, objetos e símbolos.
A interação organismo e ambiente é fundamental para o desenvolvimento dos seres humanos e essa interação se dá de forma bidirecional. O interno se torna externo e vice-versa. A transição ecológica, segundo o autor, acontece ante uma modificação na posição do indivíduo no seu ambiente ecológico, em razão da mudança do próprio ambiente, alterações de papéis e de status ou, ainda, em decorrência da combinação destes fatores. A transição ocorre tanto em consequência de mudanças como também é promotora de processos que ocorrem no desenvolvimento.[22]
A validade ecológica refere-se “à extensão em que o meio ambiente experenciado pelos sujeitos numa investigação científica tem as propriedades supostas ou presumidas pelo investigador”.[23]A noção de processos proximais enfatiza a interação entre organismos e ambiente, que opera ao mesmo tempo no microssistema e são mecanismos que produzem o desenvolvimento humano. Processos proximais são essencialmente os tipos de atividades do dia a dia em que a pessoa se envolve. Segundo o autor, a capacidade de tais processos para influenciar o desenvolvimento varia em função das características da pessoa em desenvolvimento, dos contextos imediatos (microssistemas) e remotos (macrossistemas) e de períodos de tempo em que os processos proximais ocorrem.
Bronfenbrenner representou, e ainda representa, uma forte referência teórica para aqueles profissionais que pretendem lidar com o tema do desenvolvimento humano. A teoria por ele desenvolvida apresenta-se como uma possibilidade de norte para os profissionais do Direito e gestores de políticas públicas, uma vez que aos primeiros é dada a missão de apresentar, no âmbito do processo judicial, a solução que garanta às crianças e aos adolescentes a necessária proteção para lhes possibilitar o desenvolvimento humano.
Propomos que desenvolvimento humano seja um tema de interesse de todos que lidam com as questões do conflito familiar e não algo limitado à inspiração da Psicologia. Aliás, o próprio Bronfenbrenner empregava a terminologia ciência do desenvolvimento humano e não psicologia do desenvolvimento humano.
A relação entre o tema e outras áreas do conhecimento, como Medicina, Política, Economia, Direito e Serviço Social se mostra incontestável na atualidade.
4 INTERAÇÃO ENTRE O DIREITO DE FAMÍLIA E A TEORIA BIOECOLÓGICA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Na atual fase do Direito de Família, parte-se do pressuposto de que a criança será altamente influenciada pelos pais, os quais, inclusive, têm capacidade de aliená-la do outro genitor sempre que um deles assim intentar, e que o destino da criança estará traçado a partir da guarda fixada após a separação dos pais. A preocupação em se fixar guarda compartilhada e dividir de forma equânime o tempo que a criança passará com cada genitor, percebemos, passou a ser o principal objetivo a ser alcançado pelos atores do sistema de justiça nas disputas judiciais.
Muito se discute acerca do melhor modelo de guarda e sobre como proteger a criança de possíveis manipulações e alienação parental, mas a maneira como se busca fazer tal proteção sempre leva em conta a criança como sendo um ser totalmente neutro, incapaz de ter um papel influenciador no contexto familiar e mesmo de se posicionar e reagir.
A partir do estudo da teoria do desenvolvimento humano, proposta por Bronfenbrenner,[24] alguns pontos parecem bastante relevantes. O primeiro é que não apenas a criança é influenciada pelos pais, mas estes recebem forte influência dos filhos. O segundo é que a criança não é influenciada apenas por seus pais, mas também pela rede de amigos, escola e sociedade em geral.
No livro Diga-me com quem anda..., a americana Judith Rich Harris cita dezenas de pesquisas realizadas na área da Biologia, Antropologia e Psicologia para contestar postulados há muito tempo consagrados sobre quais os caminhos para o desenvolvimento de uma criança. O objetivo do longo estudo desenvolvido pela autora, como ela mesma afirma, é dar ao leitor “uma visão alternativa de como se forma a personalidade da criança”.[25] De fato, referido trabalho apresenta diversas evidências do quanto as crianças são influenciadas pelos seus pares e que estes são, em certos momentos, mais determinantes no desenvolvimento das crianças do que os próprios pais. Não é difícil perceber a dificuldade de os pais impedirem que filhos tomem o caminho inadequado, já trilhado por outros amigos em bairros dominados por grupos criminosos, ainda que os pais tenham conduta moral rigorosa.
Apesar destas evidências, não é comum a análise no processo judicial da influência dos amigos que o filho terá a partir da convivência com um e com outro genitor. Tampouco se analisa a disposição de um e outro genitor para promover a convivência saudável dos filhos com outras crianças da mesma idade. Às vezes, a mudança de ambiente pode ser determinante para assegurar o melhor ambiente para o desenvolvimento de um adolescente e este fator raramente é considerado.[26]
É a autora que alerta para o fato de que os atributos que compõem uma cultura não são passados de forma automática ou hereditária. A cultura é ensinada e aprendida de geração em geração, mas as culturas podem ser mudadas ou construídas numa só geração. A maneira “adequada” de se educar os filhos, ou o que se espera dos pais em relação dos filhos, é ditado muito mais pelo que se pratica numa determinada geração do que por outros fatores.
Normalmente os pais de uma determinada geração querem criar os filhos de maneira similar ao que é praticado por outros pais da mesma geração, nem tanto de acordo com a maneira pela qual seus pais o fizeram. A autora cita as mais diversas “modas” na criação dos filhos, as quais são adotadas por outros pais.[27]
Notamos que, atualmente, há uma pressão muito grande acerca de como se dá a relação entre pais e filhos. Estamos convencidos da importância da participação dos genitores na rotina dos filhos porque estes precisam receber influência de ambos e que tanto pais, quanto mães, devem ensinar cultura para os filhos, mas em nome deste ideal, não estamos levando em consideração vários outros fatores, também muito relevantes na vida dos filhos, e, no momento do divórcio, muitas vezes tem sido criado um ideal de pais participativos e capazes de cuidarem dos filhos de tal maneira que jamais existiu, sequer durante o tempo que o casal formava uma família nuclear vivendo sob o mesmo teto.
Os hábitos da vida moderna tornaram o tempo das crianças junto com os pais muito pouco interativo em razão do uso de eletrônicos. É muito comum que os membros das famílias estejam juntos no mesmo ambiente, no pouco tempo em que isso é possível, mas cada um exercendo uma atividade que não promove a participação conjunta ou interação de seus membros. Às vezes, cada filho está conectado em um jogo on-line com pessoas de outra parte do planeta e os pais conectados com seus próprios eletrônicos ou mesmo cuidando de seus afazeres.
É comum que durante o casamento um dos genitores ou, às vezes os dois, deleguem para terceiros os cuidados com os filhos, mas notamos que no momento da separação estes mesmos pais exigem no processo judicial a guarda compartilhada, quase que como uma prova de que se trata de um divórcio bem-sucedido, totalmente moderno e civilizado, com um modelo de guarda da última geração, mesmo que para isso se estabeleça um doloroso, caro e conflituoso processo judicial.
Pouco se fala acerca da busca para se determinar as possibilidades de melhor arranjo para o desenvolvimento da criança ou para superação das dificuldades do casal. Há um esforço enorme para a imposição da guarda compartilhada, ainda que na prática nada se compartilhe.
Um aspecto pouco levantado é acerca da participação das avós no desenvolvimento das crianças. Os arranjos familiares são muito diversificados, como mostra a pesquisa denominada “desenhos de famílias”, realizada pela professora Vannúzia Leal, na cidade de Goiânia-GO. O estudo demonstra o quão imbricado é o papel das avós na dinâmica familiar, principalmente nas famílias com menor poder aquisitivo e nas quais a gravidez se dá, muitas vezes, na juventude.[28]
Também é comum a formação de vínculos muito significativos entre filhos de outros relacionamentos dos pais que se encontram no segundo casamento, especialmente quando há idades aproximadas. Contudo, pouco se fala sobre tais influências no desenvolvimento das crianças envolvidas em situação de disputa judicial.
Temos nos preocupado muito em falar sobre as crianças no contexto de litígio, mas não as temos ouvido na mesma intensidade. A questão que deve ser colocada nesta fase das discussões que envolvem disputa pela guarda é: Qual a fundamentação científica para as nossas percepções quanto ao melhor interesse da criança e adolescente no que tange ao seu desenvolvimento?
Ainda estamos focados em questionamentos bem mais superficiais, do tipo “o alto grau de conflito entre os pais é empecilho para a guarda compartilhada?” ou “possuir duas residências será prejudicial para o desenvolvimento da criança?” ou ainda em afirmações feitas por pura dedução, mas sem sustentação científica do tipo “a guarda compartilhada será capaz de evitar que se instale a alienação parental”.
Diante deste contexto atual, tem sido propagado no meio jurídico que pouco importa ao Judiciário a condição emocional dos genitores, que os pais devem encontrar uma maneira de compartilhar a criação dos filhos a todo custo, pois este é seu dever.
Não é nem necessário repetir aqui o consenso no sentido de que, para os filhos, é importante o recebimento dos cuidados de ambos os genitores e que estes devem dedicar o maior tempo e atenção aos filhos, de forma interativa e saudável. Também é certo que se faz necessária a superação do paradigma imposto, no qual a mãe é a única cuidadora do filho. Necessário se buscar maior participação do pai nos cuidados e rotinas dos filhos. Essas premissas são incontestáveis.
Acontece que cada família tem uma constituição própria e única enquanto perdura a conjugalidade e, inevitavelmente, a parentalidade está imbricada neste contexto. A família constituída, independentemente do modelo, está sempre em desenvolvimento e cada uma tem uma dinâmica própria. Os integrantes mudam no curso da existência familiar e assumem posturas diferentes a depender de como se dá o processo de desenvolvimento, especialmente quando levamos em conta um período mais duradouro.
Pensamos que não se pode desconsiderar essa dinâmica e pretender o estabelecimento de um único arranjo familiar pós-separação, focado em divisão equilibrada do tempo. A busca pelo melhor arranjo a ser constituído após a separação passa pela compreensão da dinâmica estabelecida durante a existência da conjugalidade, bem como acerca da função que cada genitor exercia antes da separação. Mais importante que a fixação de novas responsabilidades parentais, é a compreensão dos próprios envolvidos quanto a sua disponibilidade e possibilidade de mobilização para a nova fase de suas vidas.
A teoria bioecológica do desenvolvimento humano, elaborada por Urie Bronfenbrenner,[29] apresenta-se neste contexto como uma proposta a ser empregada por operadores do Direito, da Psicologia e do Serviço Social com grande potencial para ser uma referência teórica capaz de promover uma compreensão mais profunda da dinâmica familiar envolvida no contexto de litígio, pois a partir deste referencial todos os envolvidos são tratados como seres em desenvolvimento e não apenas as crianças e adolescentes.
A partir desta mudança de paradigma é possível perceber que também os cônjuges precisam de espaço para processar a etapa que se apresenta como o encerramento de uma etapa de suas vidas – casamento ou união estável – e o início de uma nova fase: Pós-separação. Nesse contexto, é possível compreender que a maneira como cada adulto é afetado pelo fim do relacionamento impactará sim na sua relação com os filhos. Então não adianta apenas repetirmos que os pais não podem confundir conjugalidade com parentalidade. É preciso que avancemos.
Um julgamento que representou (e ainda representa) um grande avanço na análise de critérios para fixação da guarda compartilhada foi o REsp n. 1.251.000, que teve como relatora a Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça,[30] em que foi afirmado categoricamente que a ausência de consenso entre os genitores não afasta a aplicabilidade da guarda compartilhada. De fato. A afirmação de que é necessário consenso para aplicação da guarda compartilha implica quase definitivamente a inviabilidade do instituto. Por outro lado, a litigiosidade dos genitores não é um fenômeno a ser menosprezado quando da análise da guarda. Aliás, a guarda compartilhada não pode ser um ideal como um fim em si mesma. Ao se pensar neste modelo guarda como um ideal a ser buscado, como bem consta no julgamento, é preciso entender que o que justifica o esforço de implementação da guarda compartilhada é a busca por se promover um ambiente favorável ao desenvolvimento dos filhos.
Parece-nos que ainda que não se busque “extirpar as diferenças”, é fundamental entender as representações que tais diferenças ou conflitos têm para os filhos envolvidos. Além disso, os impasses não podem mesmo é comprometer o desenvolvimento dos filhos, mas há situações em que o conflito entre o casal traz implicações negativas para o desenvolvimento dos filhos, como expomos a seguir.
No artigo elaborado por Maria Auxiliadora Dessen e Marcela Pereira Braz (2005), intitulado As relações maritais e sua influência nas relações parentais: implicações para o desenvolvimento da criança são apresentadas diversas pesquisas voltadas à investigação das inter-relações entre os subsistemas marital e parental.
No que diz respeito às relações conjugais, a divisão de tarefa e cuidados com os filhos se apresenta como uma das principais fontes de conflitos entre o casal, revelando mais uma vez que a questão de gênero, no âmago das relações conjugais e parentais, não se encontra superada pela modernidade ou pelo exercício da atividade laboral por parte das mulheres. Especificamente quanto às relações parentais e suas influências no desenvolvimento dos filhos, as autoras do artigo destacam os seguintes fatores: 1) tipo de relacionamento estabelecido entre os genitores e suas crianças; 2) o ajustamento dos genitores na vida adulta; 3) as fontes de estresse na família.[31]
Ao interagir com seus filhos, pais estressados pelo descontentamento conjugal eram mais frios e irritadiços. Os filhos de casais na mencionada condição brincavam menos e tinham relações mais conflitivas com seus pares, além de apresentar pior qualidade de saúde. Várias outras pesquisas são citadas, precipuamente quanto aos prejuízos da desestrutura familiar e conjugal para o comportamento das crianças.
Entre os tipos de conflitos apontados, um merece destaque especial. Trata-se de discórdias entre pais e mães quanto às formas de criar e educar os filhos, sendo que tais desacordos são os que mais geram problemas de comportamento nos filhos.[32] O ponto em destaque é o que mais nos interessa neste estudo, pois é o tipo de conflito que tende a perdurar após o fim do casamento, durante o exercício da guarda, seja ela de que modelo for, compartilhada ou unilateral. Obviamente pode haver agravamento na guarda compartilhada, que exige em algumas situações a tomada de decisões conjuntas por ambos os genitores.
Outra conclusão que entendemos possível se extrair disso é que se a divisão de tarefas e cuidados com os filhos é tão presente durante os casamentos, por certo o problema persistirá após o divórcio e isso há de ser encarado, já que não se resolverá com o decreto do divórcio e fixação do arranjo referente à guarda.
Havendo filhos, os problemas que permearam a conjugalidade provavelmente seguirão atravessando a parentalidade, por mais que os operadores do Direito e da Psicologia insistam na necessidade de separação entre conjugalidade e parentalidade.
Portanto, identificamos que enfrentar o problema da discórdia conjugal no pós-divórcio se apresenta como um importante ponto de partida para se atender ao princípio do melhor interesse da criança e adolescente. Talvez a atuação dos profissionais nos processos que tratam da demanda devesse ser precipuamente a busca do enfrentamento do conflito e da minimização das dificuldades de diálogos parentais, pois a diminuição das ocorrências conflitivas pode se apresentar como um ótimo caminho para a garantia do melhor ambiente para o desenvolvimento da criança.
O que sugerimos, a partir da análise das pesquisas aqui apresentadas, é que se deve levar em consideração que as dificuldades nas relações dos cônjuges, inclusive no pós-divórcio, aumentam as dificuldades dos genitores em lidar com seus filhos, o que impõe uma compreensão bidirecional do litígio, na forma proposta por Bronfenbrenner.[33]
É sabido que o fim do casamento representa, quase sempre, queda do padrão de vida dos integrantes da família. Com a queda do padrão econômico, surge o estresse. Outras fontes de preocupações também estarão presentes e, como se sabe, cada um reagirá a sua maneira. Portanto, defendemos que não há motivos para se desconsiderar o próprio desenvolvimento humano dos pais no momento do conflito.
É comum se ouvir que no processo judicial a atenção dos profissionais deve estar voltada para os filhos e não para os genitores, os quais têm a obrigação de encontrar caminhos para o exercício da guarda compartilhada. Contudo, a determinação judicial não funciona tão bem na prática, nem mesmo com aplicação de multas e outras penalidades. Quando os genitores não estão imbuídos do cuidado da prole ou estão voltados apenas para a solução dos próprios problemas, não basta a imposição judicial no sentido de que devem exercer adequadamente seus papéis. Os genitores também estão vivenciando seus processos de desenvolvimento.
Não é possível isolar a criança no contexto do conflito familiar, como se esta fosse apenas um sujeito passivo a ser protegida. A criança deve ser tratada como sujeito a ser protegido sim, mas não como sujeito susceptível de ser isolado no contexto de conflito.
5 CONCLUSÕES
A questão do desenvolvimento humano não está afeta a apenas uma área do conhecimento e, pensamos, talvez seja o tema cuja compreensão exija maior interação entre as diversas áreas do saber. O Direito de Família apresenta aos seus operadores o difícil dever de empregar, em todas as situações que lhes são apresentadas, medidas e decisões que visem garantir às crianças e aos adolescentes o princípio do melhor interesse da criança e adolescente, objetivando sempre lhes proporcionar condições ambientais adequadas para o desenvolvimento humano.
A teoria bioecológica do desenvolvimento humano, engendrada por Bronfenbrenner,[34] apresenta-se neste trabalho como um referencial científico para todos os profissionais que necessitam encontrar caminhos capazes de garantir às crianças e aos adolescentes o melhor ambiente para o desenvolvimento humano, principalmente por contemplar a mais ampla orientação sistêmica.
Os estudos de Bronfenbrenner, apoiados em pesquisas recentes, citadas neste trabalho, mostram-nos que a busca do arranjo que garanta o melhor ambiente para desenvolvimento dos filhos necessariamente deve passar pela análise da relação entre genitores-filhos durante o casamento, bem como a maneira como as discórdias entre o casal impactavam na relação de cada genitor para com cada filho. Não se pode negligenciar a individualidade de cada membro da família e nem as peculiaridades da família enquanto grupo. É preciso ainda especial atenção quanto ao contexto sócio-histórico-cultural e às subculturas (religião, por exemplo) nas quais o grupo está inserido.
Precisamos aprofundar quanto a alguns postulados vigentes e retroceder quanto a outros. Por exemplo, a partir do que se apresentou neste trabalho, entendemos que não se pode simplesmente “separar” a parentalidade da conjugalidade, como se houvesse um dispositivo que aciona ora uma e ora outra função nas pessoas envolvidas na disputa.
Quanto a outras suposições, como a de que a guarda compartilhada é o melhor caminho sempre que houver litígio entre os genitores, necessitamos, claramente, de estudos constantes e aprofundamentos, pois se na constância do casamento os conflitos representam fonte de grande sofrimento para os filhos, no pós-divorcio não deve ser diferente. Ademais, se não há, durante o casamento, um modelo de família igual ao outro, provavelmente após o divórcio também precisamos aceitar arranjos que atendam da melhor maneira todos os envolvidos, sem engessamento em um único modelo.
A partir do que se apresentou neste trabalho, concluímos que nós, profissionais do Direito, precisamos avançar profundamente com a contribuição de várias áreas do conhecimento para a elaboração de pesquisas a serem realizadas, principalmente após o julgamento dos processos nos quais o casal vivenciara grande litígio, pois não temos informações sobre como segue o desenvolvimento dos membros da família após a imposição de determinado modelo de guarda no processo judicial.
Para concluir, pretendemos reforçar que o desenvolvimento humano é um fenômeno, cuja compreensão implica adoção de modelos sistêmicos aptos a valorizar as inter-relações entre diferentes sistemas. O modelo sistêmico eleito deve dotar o indivíduo da importância a ele atribuída pela Psicologia, mas sem desprezar o coletivismo, que deve ser considerado sob a perspectiva da Psicologia cultural e transcultural, da Antropologia e da Sociologia, tudo isso em consideração aos aspectos biológicos do ser humano.
6 REFERÊNCIAS
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DUARTE, Lenita Pacheco Lemos. A angústia das crianças diante dos desenlaces parentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
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ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. Salvador: JusPodivm, 2019.
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[1]GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
[2]MENDES, Josimar Antônio de Alcântara. Debatendo sobre alienação parental – Diferentes perspectivas, 2019, p. 26. Disponível em:
[3]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[4]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[5]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[6]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[7]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996
[8]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 16.
[9]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
[10]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 18.
[11]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017, p. 133-134. (eBook)
[12]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[13]DESSEN, Maria Auxiliadora; COSTA JR., Áderson Luiz. A ciência do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005, p. 76.
[14]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017, p. 133. (eBook)
[15]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
[16]Cf.: BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996; BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[17]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017, p. 139. (eBook)
[18]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017, p. 149. (eBook)
[19]DESSEN, Maria Auxiliadora; COSTA JR., Áderson Luiz. A ciência do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005, p. 82.
[20]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[21]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[22]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
[23]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, p. 24.
[24]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996; BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[25]HARRIS, Judith Rich. Diga-me com quem anda.... Trad. Anna Olga de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 15.
[26]HARRIS, Judith Rich. Diga-me com quem anda.... Trad. Anna Olga de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999, p. 271.
[27]HARRIS, Judith Rich. Diga-me com quem anda.... Trad. Anna Olga de Barros Barreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
[28]PERES, Vannúzia Leal Andrade. Subjetividade e psicologia jurídica. Curitiba: Appris, 2018.
[29]BRONFENBRENNER, Urie. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996; BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[30]BRASIL. STJ. Disponível em:
[31]DESSEN, Maria Auxiliadora; COSTA JR., Áderson Luiz. A ciência do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005.
[32]DESSEN, Maria Auxiliadora; COSTA JR., Áderson Luiz. A ciência do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005.
[33]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
[34]BRONFENBRENNER, Urie. Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando seres humanos mais humanos. Porto Alegre: Artmed, 2017. (eBook)
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