Artigos
A invalidade dos casamentos forçados por líderes religiosos à luz do princípio da afetividade
THE INVALIDITY OF FORCED MARRIAGES BY RELIGIOUS LEADERS IN THE LIGHT OF THE AFFECTIVITY PRINCIPLE
Bruno Diana[1]
Fernanda Martins Simões[2]
Resumo
O aconselhamento religioso é um instrumento frequentemente utilizado pelas instituições religiosas para aproximar os fiéis de suas doutrinas, inclusive no que se refere ao matrimônio. Porém, o limite entre liberdade religiosa e violência psicológica, em determinados casos, é tênue, de modo que a escolha da união passa a ser verdadeira imposição, surgindo o fenômeno do casamento forçado. Este estudo almeja, portanto, demonstrar o enquadramento da situação da união decorrente de pressão psicológica exercida por líder religioso, por diversos motivos, para que uma ou ambas as vítimas se casem como coação, apta a anular o negócio jurídico. Para tanto, utilizou-se o método histórico-analítico, por meio da pesquisa de literatura acadêmica e da aplicação dos institutos jurídicos correlatos. Como produto da investigação, constataram-se que as mulheres são as principais vítimas de violências psicológicas exercidas por líderes religiosos e que resultam em casamentos forçados, e que essas situações de fato se subsumem ao instituto da coação, a ensejar a anulação do enlace.
Palavras-chave: Casamentos forçados. Líderes religiosos. Coação. Anulação.
Abstract
Religious counseling is an instrument often used by religious institutions to bring the faithful closer to their doctrines, including with regard to marriage. However, the limit between religious freedom and psychological violence, in certain cases, is tenuous, so that the choice of union becomes a true imposition, with the phenomenon of forced marriage arising. This study aims, therefore, to demonstrate the framing of the situation of the union due to psychological pressure exerted by a religious leader, for several reasons, so that one or both victims marry as coercion, able to annul the legal business. For this, the historical-analytical method was used, through the research of academic literature and the application of related legal institutes. As a product of the investigation, it was found that women are the main victims of psychological violence carried out by religious leaders and that result in forced marriages, and that these situations are in fact subsumed by the institute of coercion, giving rise to the annulment of the bond.
Keywords: Forced marriages. Religious leaders. Coercion. Annulment.
INTRODUÇÃO
A convergência entre Igreja e Estado sempre gerou múltiplas discussões, mormente no que se referem aos limites de cada instituição na vida privada do ser humano. E com o casamento não é diferente. Negócio jurídico ou instituição, sacramento ou ato personalíssimo, fato é que o instituto foi apropriado por ambos, que atribuíram sentido e um conjunto de normas a serem seguidas para quem deseja obter o status de casado.
Para alguns, o matrimônio é um sonho, uma escolha livre e pessoal de compartilhar a vida com outra pessoa. Para outros, a possibilidade disso sequer se avizinha. Mas e quando o fiel, frequentador de uma denominação religiosa, busca aconselhamento de um líder sobre assuntos diversos de cunho individual e sai da reunião com a intransigente promessa de um casamento?
Assim, afigura-se necessário perscrutar até que ponto vai a liberdade religiosa e quando ela cruza a fronteira da autodeterminação. Se o casamento foi celebrado precipuamente em razão de violência psicológica, isto é, pressão para que um ou ambos os nubentes se casem, sob a ameaça de que, se não o fizerem, sofrerão graves atentados à honra e à boa imagem de que gozam no seio de sua comunidade, há que se examinar se, de fato, o matrimônio não fora realizado mediante vício de vontade.
Por isso, o objetivo deste artigo é investigar, em relação ao casamento religioso com efeito civil, até que ponto um líder espiritual está a exercer, por meio de orientação, sua liberdade religiosa, em especial diante do princípio da afetividade; quando a recomendação caracteriza pressão psicológica e sobre quem é exercida; bem como a (in)validade das uniões realizadas por meio de coação, o que se denomina de casamento forçado.
O tema é relevante porque o matrimônio pressupõe a liberdade dos cônjuges na escolha do parceiro, da forma de união e do momento da celebração, bem como o afeto, o respeito e a consideração recíprocas. Se esses requisitos, dentre outros previstos em lei, são desrespeitados, por consequência, o negócio jurídico é passível de nulidade, o que não pode ser permitido pelo Direito.
Para que se atinja a finalidade, o trabalho se iniciará traçando um vínculo entre o casamento religioso com efeito civil e o princípio da afetividade, diferenciando aquele do matrimônio forçado. Por conseguinte, debruçar-se-á sobre a influência dos líderes religiosos na decisão de casar, notadamente quando há notável pressão psicológica, em geral exercida sobre a mulher. Ao final, o instituto da coação será conceituado e detalhado para que se verifique a sua compatibilidade com a conjuntura narrada, além da eventual premência de se declarar, por meio da ação respectiva, a nulidade relativa do conúbio.
1 O CASAMENTO RELIGIOSO COM EFEITO CIVIL E OS LIMITES DA LIBERDADE RELIGIOSA DIANTE DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
Embora haja divergências doutrinárias, baseadas nas teorias que buscam explicar a natureza jurídica do casamento, a definição mais adequada que pode ser atribuída ao instituto é o de um negócio jurídico especial em que há “união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de constituição de uma família e baseado em um vínculo de afeto” (TARTUCE, 2021, p. 146).
E, dentre as possibilidades legalmente reconhecidas, o casamento religioso com efeito civil encontra guarida nos arts. 226, § 2º, da Constituição da República, 1.515 e 1.516 do Código Civil e 71 a 75 da Lei de Registros Públicos (Lei n.º 6.015/1973). Mas nem sempre se falou em efeito civil. Como explica Madaleno (2020, p. 107), no período do Império, o casamento religioso era a única modalidade possível e a Igreja Católica era a única com competência exclusiva para a celebração de matrimônios. Somente com a Constituição da República de 1891 é que o casamento civil passou a existir, criando-se o costume de realizar o casamento religioso ao lado do civil, embora hoje mitigado pela popularização da união estável.
Da própria conceituação extrai-se, por outro lado, que a relação jurídica produzida a partir do casamento é baseada na afetividade, na consideração mútua, na vontade livre e pessoal de formar família. Diminuiu-se a importância da hierarquia, do patrimônio e da reprodução e deu-se lugar à família horizontal, calcada na igualdade entre os pares e na ideia de estar juntos por desejo próprio, e não por obrigação.
Daí percebe-se a influência do princípio da afetividade, amplamente analisado por Calderón (2017, p. 148-154), que demonstra não só a feição principiológica da afetividade, que pode ser aferida por uma leitura sistemática da Constituição da República (art. 226, § 4º, e 227, caput, §§ 5º e 6º), do Código Civil (arts. 1.511, 1.583, § 2º, 1.584, § 5º, e 1.593) e de leis esparsas que reconhecem implícita ou explicitamente o conteúdo jurídico da afetividade, como também a necessidade de percebê-la de maneira direta, a partir de fatos concretos que a tornem clara, o que o autor chama de afetividade jurídica objetiva.
É nessa toada que o autor faz uma importante distinção, cuja citação é indispensável:
Corolária disso, a percepção que o princípio da afetividade jurídica possui duas dimensões: a objetiva, que é retratada pela presença de eventos representativos de uma expressão de afetividade, ou seja, fatos sociais que indiquem a presença de uma manifestação afetiva; e a subjetiva, que se refere ao afeto anímico em si, o sentimento propriamente dito. A verificação dessa dimensão subjetiva certamente foge ao Direito e, portanto, será sempre presumida, o que permite dizer que constatada a presença da dimensão objetiva da afetividade, restará desde logo presumida a sua dimensão subjetiva. (CALDERÓN, 2017, p. 153).
E, mais adiante, ele explica que a socioafetividade é o reconhecimento social de manifestações afetivas e que muitas vezes encontram tutela jurídica, como é o caso de “cuidado, entreajuda, afeição explícita, comunhão de vida, convivência mútua, mantença alheia, coabitação, projeto de vida em conjunto, existência ou planejamento de prole comum, proteção recíproca, acumulação patrimonial compartilhada [...]”. (CALDERÓN, 2017, p. 153).
Não há espaço para dúvidas, portanto, de que o princípio da afetividade é aplicável ao Direito de Família e especialmente ao casamento, cuja base é o afeto, aferível pelas manifestações de afetividade. A jurisprudência brasileira, inclusive, reconheceu e aplicou o princípio em diversas oportunidades, como na decisão do STF de reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares (ADI 4.277/DF e ADPF 132/RJ) e na decisão do STJ de cabimento de danos morais por abandono afetivo de pai para a filha (REsp 1.159.242/SP).
O casamento religioso com efeito civil, como qualquer outro, deve igualmente ser alicerçado na afetividade e na escolha livre e consciente do cônjuge e de casar ou não. Porém, na prática, em certos casos, a decisão aparentemente autônoma é, em verdade, orquestrada, induzida, persuadida e baseada em intensas pressões psicológicas exercidas por pessoas do círculo íntimo dos noivos, que deveriam inspirar e aconselhar, mas nunca obrigar ou dissuadir: os líderes religiosos.
Neste caso se encaixam como líderes religiosos os pastores, padres, diáconos, bispos, rabinos, monges, líderes espirituais, pais de santo, entre outros. Não está a se utilizar, neste artigo, do termo “líder” como tão-somente o representante máximo de cada religião. Ao contrário, líderes religiosos podem ser tanto os mais conhecidos de uma denominação religiosa como os sacerdotes locais, aqueles que exercem a sua função apenas em uma cidade ou em um bairro específico.
E mesmo que se busque de cada um apenas orientação e aconselhamento, o que se encontra em uma minoria – destaque-se – é completa dominação da vida alheia e destruição da individualidade do membro em favor de uma lista interminável de deveres de comportamento aplicável a todos. E dentre as violações praticadas, está o casamento forçado, muito mais noticiado em outros países, mas também presente no Brasil.
Uma definição simples e objetiva pode ser encontrada no documento “Like a bird with broken wings”, da ONU Mulheres sediada em Cabul, Afeganistão (2013, p. 36), cuja tradução livre para a língua portuguesa seria: o casamento forçado pode ser definido como qualquer casamento no qual uma parte não consente livremente com a união, e onde a coerção está envolvida para garantir que o matrimônio ocorra. Casamento forçado é uma violação dos direitos humanos.
Na África do Sul, com situação semelhante em Angola, ex-membros da Igreja Universal do Reino de Deus denunciaram à Comissão de Promoção e Proteção dos Direitos das Comunidades Religiosas e Linguísticas Culturais, instituição independente sul-africana, uma série de violações a direitos humanos que envolviam, além de racismo, vasectomias forçadas em pastores e abortos forçados em mulheres que frequentavam os templos, casamentos forçados com posterior privação de contato com a própria família, inclusive com a proibição de comparecimento em enterros (HYPENESS, 2021).
Destarte, no Brasil, país de base cristã ainda com forte influência da Igreja Católica, mas que assiste à ascensão de denominações pentecostais (ZYLBERKAN, 2020), há enorme dificuldade em se coletar dados no mesmo sentido. Isso não significa, contudo, que não haja casamentos forçados por líderes religiosos brasileiros, mas o medo das vítimas em denunciar resulta na escassez de registros.
No recorte específico dos casamentos infantis forçados, a pesquisa “Tirando o veú: estudo sobre casamento infantil no Brasil”, realizada pela Plan International Brasil, aponta as instituições religiosas como fator de risco nos casamentos e uniões forçadas. Segundo parcela das entrevistadas, todas mulheres, “A sanção religiosa pode ser exercida de muitas formas, abertas ou sutis, como crítica das lideranças ao casal e às suas famílias, afastamento temporário das atividades e fofocas. Eles citam expressões como ‘não casar e virar pessoa do mundo’, ‘se corromper’, ‘entrar na carne’, ‘viver no pecado’” (BRASIL, 2019, p. 57).
Porém, como a Lei n.º 13.811/2019 alterou a redação do art. 1.520 do CC para prever que o casamento só é possível, em qualquer caso e sem exceções, se as partes atingirem a idade núbil, de 16 anos, sob pena de nulidade, o presente trabalho focará no casamento forçado por líderes religiosos de pessoas – especialmente mulheres – acima da idade mínima requerida.
E, no que concerne à religiosidade e às suas formas de manifestação, é indubitável que a todos os brasileiros e as brasileiras são garantidas as liberdades de consciência, prevista no art. 5º, VI e VIII, da Constituição da República, que diz respeito à faculdade de o indivíduo pensar por si mesmo, não cabendo ao Estado impor concepções filosóficas ou religiosas (MENDES; BRANCO, 2018, p. 318), e de religião, que inclui “a liberdade de crença, de aderir a alguma religião, e a liberdade do exercício do culto respectivo” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 322).
Não se questiona de forma alguma o direito de participar e de acreditar nas orientações passadas por uma instituição religiosa, mas o abuso de poder de alguns dos líderes, que buscam impor suas convicções, mesmo que por intermédio de coação moral, a todos os seguidores.
Aliás, quando se trata de matrimônio, inclusive no âmbito religioso, a própria expressão “casamento forçado” é contraditória. Isso porque o casamento pressupõe a liberdade, a possibilidade de escolha e o afeto, como explicitado acima, especialmente em face do princípio da afetividade. E forçar o que deve ser livre, além de não fazer sentido, é ilegal e, portanto, passível de nulidade (relativa).
3 CASAMENTOS FORÇADOS POR LÍDERES RELIGIOSOS: A LINHA TÊNUE ENTRE ACONSELHAMENTO RELIGIOSO E VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Liberdade e afetividade como pilares da instituição “casamento” são noções relativamente recentes, desenvolvidas após diversos questionamentos sobre os fins das uniões entre pessoas para a formação de famílias e ligadas de modo íntimo com o movimento feminista. A luta pela liberdade da mulher tange a luta pelo casamento livre e baseado no afeto e na consideração mútuas.
Beauvoir, uma das mais importantes teóricas do feminismo, descreveu o casamento em obra publicada originalmente em 1949, mas que se encaixa como luva a muitas das realidades hodiernas:
Hoje o casamento conserva em grande parte esse aspecto tradicional. E, antes de tudo, impõe-se muito mais imperiosamente à jovem do que ao jovem. Há ainda importantes camadas sociais em que nenhuma outra perspectiva se propõe a ela; entre os camponeses a celibatária é um pária; fica sendo a serva do pai, dos irmãos, do cunhado; o êxodo para as cidades não está a seu alcance; o casamento, escravizando-a a um homem, faz dela dona de um lar. Em certos meios burgueses ainda se deixa a moça na incapacidade de ganhar a vida; ela só pode vegetar como um parasita no lar paterno ou aceitar uma posição subalterna em algum lar estranho. Mesmo nos casos em que ela é mais emancipada, o privilégio econômico detido pelos homens a incita a preferir o casamento a um ofício: ela procurará um marido de situação superior à sua, esperando que ele “vença” mais depressa, vá mais longe do que ela seria capaz. Admite-se, como outrora, que o ato de amor é, da parte da mulher, um serviço que presta ao homem; ele toma seu prazer e deve em troca alguma compensação. O corpo da mulher é um objeto que se compra; para ela, representa um capital que ela é autorizada a explorar. Por vezes ela traz um dote ao esposo, muitas vezes compromete-se a fornecer algum trabalho doméstico: cuidará da casa, educará os filhos. Em todo caso tem o direito de ser sustentada e a própria moral tradicional a exorta a isso. É natural que seja tentada por essa facilidade, ainda mais porque os trabalhos femininos são muitas vezes ingratos e mal remunerados; o casamento é uma carreira mais vantajosa do que muitas outras. [...]. (2019, p. 190-191, grifo original).
Corroborando o trecho acima, um dado social necessário para interpretar as normas relativas ao casamento, Dias (2010, p. 1) alerta que tanto a Igreja quanto o Estado se apropriaram do casamento, que é fenômeno anterior à própria existência destes, visando atender a seus próprios interesses. A primeira instituição erigiu-o ao status de sacramento, destacando a função reprodutiva; e a segunda moldou a família como instituição a ser protegida, nos termos do art. 226 da Constituição da República.
E, quando um membro funcional de uma denominação religiosa se imiscui na vida pessoal de seus seguidores a ponto de definir quem casará com quem, mesmo que a pretexto de (falso) aconselhamento religioso, surge o fenômeno, anteriormente conceituado, do casamento forçado por líder religioso.
Deve-se destacar, por outro lado, que o aconselhamento religioso, visto como uma modalidade do aconselhamento psicológico, nada tem de ilegal ou de imoral. Pelo contrário, é atividade comum no seio das instituições confessionais, originada a partir da combinação entre a imagem do terapeuta, que auxilia na resolução de problemas, e a imagem do orientador religioso, que guia o fiel no caminho da espiritualidade (MACEDO; FONSECA; HOLANDA, 2007, p. 207-208).
O problema advém justamente de cruzar o limite entre aconselhamento religioso e violência psicológica, classificada esta por Pimentel (2013, p. 12) como “uma forma de brutalidade que atinge o autoconceito, a autoimagem e a autoestima de alguém”. Quanto ao autoconceito, dentre os fatores que o integram, segundo a autora, está a autonomia, relacionada à faculdade de elaborar o sentimento pessoal de independência e de confiança em si mesmo. Por óbvio que a pressão exercida por um líder religioso, aqui equiparada a uma violência psicológica, atinge diretamente todas essas facetas do ser humano.
Traduzindo a situação até aqui esculpida para a linguagem do Direito, temos que a violência psicológica exercida por um líder religioso sobre duas pessoas, geralmente de gêneros distintos mas especialmente direcionada à mulher, para que se casem, seja a arbitrariedade relacionada à pessoa de um dos cônjuges, à necessidade ou à urgência da união, ao momento do casamento, à indispensabilidade do matrimônio para evitar imagem vergonhosa ou má fama perante a sociedade ou por qualquer outra razão escusa configura o instituto da coação, a ser abordado no tópico seguinte.
4 A INVALIDADE DOS CASAMENTOS FORÇADOS POR LÍDERES RELIGIOSOS MEDIANTE COAÇÃO
O Código Civil atual dispõe de norma específica para a coação exercida com o objetivo de obrigar ao matrimônio. É o art. 1.558, que estabelece a anulabilidade do casamento realizado em virtude de coação, desde que o consentimento de um ou de ambos os cônjuges tenha sido captado mediante fundado temor de mal considerável e iminente para a vida, a saúde e a honra, sua ou de seus familiares. Completa-se esse panorama com o art. 1.550, III, do Estatuto Civil, que dispõe ser anulável o casamento por vício de vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558 do Codex.
Rizzardo (2019, p. 129) explica que a coação pode ser física, denominada de vis absoluta, excluindo a vontade e tornando o negócio nulo de pleno direito; ou moral, causadora de temor na vítima, em que a vontade é viciada, mas não inexistente, e o negócio é anulável. No último caso, o sujeito passivo, embora relativizada a sua liberdade, pode “optar entre a realização do negócio, que lhe é exigido, e o dano, com que é ameaçada”.
Enumera o doutrinador, ainda, uma série de requisitos para a configuração da coação, que podem ser assim resumidos: a) a coação deve ser a causa determinante do negócio, de acordo com o art. 151 do CC; b) deve incutir na pessoa um medo justificado, como ameaça de morte, do ridículo, de escândalo, de ser denunciada às autoridades, dentre outros; c) a medida da coação levará em conta o gênero, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e outras circunstâncias que possam influir na gravidade, conforme o art. 152 do CC; d) o temor deve ser relativo a dano iminente, não podendo mais a vítima escapar deste; e) o dano deve ser considerável, ofendendo bens jurídicos como a vida, a saúde, a honra, a liberdade, a segurança própria e de terceiros etc.; f) o prejuízo deve ser direcionado à pessoa coagida, à sua família ou a seus bens; e g) a ameaça deve ser injusta, a ponto de atemorizar uma pessoa comum (RIZZARDO, 2019, p. 129-130).
Ora, de todas as ponderações feitas anteriormente, resta claro que a violência ou pressão psicológica exercida por líder religioso sobre um ou mais fiéis, notadamente sobre mulheres, a pretexto de aconselhamento religioso, para que se casem, subsume-se à hipótese da coação moral mediante fundado temor de mal à honra, à boa fama da vítima, prevista no art. 1.558 do CC.
Ademais, a pessoa coagida, com medo real e considerável de que a ameaça de que, se não casar logo, ficará mal vista no meio em que vive, ferindo de morte a sua honra perante as pessoas que tem profunda consideração, casa-se principalmente em virtude disso. Ninguém deseja ser súbita e abruptamente mal quisto, muito menos a vítima, no caso em apreço. E a pressão ou violência psicológica exercida é tamanha que a leva a viciar o seu consentimento para evitar o dano de ter a sua imagem, a sua honra manchadas.
Destaque-se, igualmente, que a coação aqui tratada é completamente distinta do temor reverencial, que consiste no “medo proveniente de uma posição de subordinação entre duas pessoas, como a do filho em relação ao seu pai; ou da esposa em relação ao marido (...)” (MADALENO, 2020, p. 163), como preleciona o art. 153 do CC. De maneira oposta, é a violência psicológica intensa sofrida com o objetivo de obrigar ao matrimônio.
Por derradeiro, deve o coacto, nos exatos termos do art. 1.560, IV, do CC, ajuizar a ação anulatória do casamento, presentes os demais requisitos expostos, no prazo decadencial de 4 (quatro) anos, contados a partir da cessação do vício, e não da data de celebração do enlace.
E, enquanto a perspectiva de que as mulheres, principais vítimas, sequer sofram qualquer espécie de coação para se casarem continua mera ilusão, somente a união delas, coagidas ou não, e o apoio da sociedade e do Estado para que saiam dessa condição podem diminuir e, eventualmente, extinguir estes casos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O casamento religioso com efeito civil é tutelado pela Constituição da República e por diversas leis infraconstitucionais, de modo que sua existência, validade e eficácia, preenchidos os requisitos legais, é inquestionável. Entretanto, como em qualquer casamento, a leitura jurídica do instituto deve ser realizada à luz do princípio da afetividade, que pressupõe a união de duas pessoas pelo afeto e pelo respeito que cultivam entre si, e não por eventual obrigação ou vislumbre da possibilidade de acúmulo patrimonial.
No processo de decisão que envolve o matrimônio, uma figura central pode influenciá-lo positiva ou negativamente: o líder religioso. Muitos fiéis, adeptos de diversas denominações religiosas, procuram a orientação do responsável local por determinada instituição dita sagrada, inclusive para a resolução de conflitos pessoais das mais variadas matizes, como a questão dos relacionamentos amorosos e sexuais.
E este, a pretexto de aconselhamento, acaba por influir de tal modo na vida do seguidor que comete contra ele ou ela – principalmente ela – verdadeira violência psicológica, pressionando-a a se casar porque está grávida, porque deseja iniciar a vivência sexual com o seu parceiro, porque estar solteira na idade dela levantaria dúvidas sobre o seu caráter ou por qualquer outro motivo que, na opinião pessoal do coator, violaria agressivamente a honra da pessoa, levando-a a crer que, de fato, esse dano ocorreria de pronto.
Caracteriza-se, por essa descrição, a figura da coação, exercida com a aspiração de obrigar alguém a se casar, nos termos do art. 1.558 do Código Civil. E, por ser vício da vontade a macular o negócio jurídico, este se torna passível de anulação, conforme o art. 1.550, III, do mesmo Código.
Mais do que apontar fundamentos e caminhos legais para a declaração de invalidade do casamento efetivado sob a coação de um líder religioso, é crucial exteriorizar a relação de submissão em que muitas mulheres se encontram. O matrimônio serve, muitas vezes, de instrumento para perpetuar e fortalecer essa situação repressiva. A mulher é tratada como peça, a vida dela como um tabuleiro e a união como uma jogada de mestre, acuando-a e ameaçando-a constantemente de ser derrubada e jogada para fora da competição.
Cabe às mulheres, até mesmo aquelas que não se encontram coagidas, à sociedade em geral, ao Estado e às próprias instituições religiosas identificarem esse estado, oferecerem acolhimento e ajuda de toda sorte à vítima e reconhecerem e punirem os coatores, sejam quem forem, nos termos da lei. Além disso, o investimento em prevenção é essencial. Informar as mulheres sobre os seus direitos, abrir discussões com toda a comunidade sobre as consequências dos julgamentos morais e sobre a necessidade de respeitar os desejos pessoais de cada um e formar líderes religiosos preparados para lidar com essas questões sem cometer qualquer espécie de violência psicológica são exemplos práticos de como é possível evitar e eliminar toda forma de coação.
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[1] Pós-graduando em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional, pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduando em Ministério Público - Estado Democrático de Direito pela Faculdade Positivo - Câmpus Londrina. Pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Tributário pelo Complexo LFG de Ensino. Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Câmpus Londrina. Foi estagiário de pós-graduação no Ministério Público do Estado do Paraná - 13ª Promotoria de Justiça em Londrina/PR. Foi estagiário na Procuradoria Seccional da Fazenda Nacional em Londrina/PR (fev-2016 a fev-2018). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Execução Penal. Advogado licenciado na OAB/PR sob o n° 96.735.
[2] Mestre em Direitos da Personalidade pelo Centro Universitário de Maringá/PR (CESUMAR). Especialista em Direito Aplicado pela EMAPAR e em Direito de Família e Sucessões pela UEL. Docente na Universidade Positivo - Faculdade Londrina/PR. Advogada e sócia do IBDFAM.
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