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A inconstitucionalidade progressiva da prisão civil
Rafael Calmon
Mestre (UFES) e Doutor (UERJ) em Direito
Juiz de Direito do TJES
Se o Direito serve à vida, deve acompanhar as transformações sociais, certo? Afinal, somos seres naturalmente mutantes, engajados em relações familiares, sociais, negociais, afetivas e econômicas tão modificáveis e complexas quanto.
O problema é que as leis que regulam as relações jurídicas refletem os ideais e os valores vigentes na comunidade à época de sua elaboração, os quais, convenhamos, não costumam demorar para se tornarem obsoletos frente às constantes transformações sociais.
Surge, então, um interessante e inevitável conflito: a realidade social vs. a realidade normativa.
Por vezes, a discrepância entre essas duas realidades é tão gritante que o próprio legislador se encarrega de modificar a segunda. O Código Civil de 1916 e o Código de Processo Civil de 1973, por exemplo, foram ab-rogados pelos estatutos de 2002 e 2015, respectivamente, porque os cenários em que foram editados haviam se tornado tão diversos daqueles aos quais estavam sendo aplicados, que não valeria a pena submetê-los a meras reformas pontuais.
Em outras ocasiões, contudo, os ideais e valores que orientaram o legislador a elaborar certo diploma parecem se manter vivos mesmo com o passar do tempo, muito embora algumas de suas disposições precisem ser revistas aqui e ali. Nesses casos, a derrogação se encarrega de retirá-las do universo jurídico, como aconteceu com a figura típica prevista pelo artigo 240 do Código Penal, que considerava crime a prática de adultério.
O problema é que esse processo de alteração da realidade normativa costuma ser lento. Demasiadamente lento, em algumas vezes. Por depender de um verdadeiro processo legislativo, fica condicionado à atuação e à prévia aprovação pelas casas legislativas, o que, por si só, já consome significativo período de tempo.
Por incrível que pareça, a coisa se facilita um pouco quando, além de discrepante com a realidade social, a lei vigente se revele inconstitucional. É que, nesse caso, a palavra final a respeito não é dos Poderes Executivo ou Legislativo, mas sim do Poder Judiciário, que dispõe de meios muito mais rápidos, simples e baratos para efetuar a compatibilidade de atos normativos com a Constituição Federal.
Isso porque, como se sabe, dentro de sua esfera de competências, todo órgão judicial, inclusive aquele de primeiro grau de jurisdição, exerce o assim chamado controle difuso de constitucionalidade, por meio do qual não declara propriamente a inconstitucionalidade da lei federal, mas simplesmente deixa de aplicá-la ao caso concreto, em razão de seu conteúdo ser incompatível com a ordem constitucional vigente. Caso seja necessário realmente eliminar-se a lei federal do ordenamento, apenas o Supremo Tribunal Federal pode fazê-lo, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, tomando por paradigma a Constituição Federal. Finalmente, em se tratando de normas constitucionais originárias, nenhuma dessas hipóteses seria possível, em razão de não ser admitida a existência de "normas constitucionais inconstitucionais" (ADI 815/DF, DJ de 10.05.96), fazendo com que elas somente possam ser modificadas por força de alguma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), e, ainda assim, desde que observadas uma série de restrições (CR, art. 60, §4º).
Mas, será que a coisa precisa mesmo ser assim?
Pelo menos de acordo com o que restou decidido no RE 466.343/SP (julgado em conjunto com o RE 349.703 e com os HCs 87.585 e 92.566), talvez seja possível afirmar-se que não. Isso porque, naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a incorporação de tratados internacionais sobre direitos humanos ao nosso ordenamento, embora não acarrete a revogação de normas constitucionais com eles conflitantes, teria o condão de "paralisar" a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional que os contrariasse, impedindo que a própria disposição constitucional tivesse aplicabilidade.
Como não deve ter demorado para se perceber, o caso versado nesse julgado envolveu a prisão civil do depositário infiel, a qual veio a ser considerada ilícita, mesmo possuindo expressa previsão no texto constitucional (art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º), ao argumento de que ela não mais se mostraria compatível com o estado de coisas inaugurado pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH - Pacto de San José da Costa Rica, art. 7º, § 7).
Eventualmente, esse julgamento se transformaria no principal precedente da Súmula Vinculante n. 25, cujo enunciado dispõe que "é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito".
Infelizmente, a disparidade dos argumentos utilizados pelos julgadores impediu que se pudesse saber se a Corte havia se utilizado da técnica do "controle de convencionalidade" para chegar a essa conclusão. No entanto, o que ficou absolutamente claro é que o Supremo Tribunal Federal retirou a força normativa de uma regra constitucional originária, por entender que a internalização de tratados versando sobre direitos humanos projetaria "efeitos paralisantes" por todo o ordenamento. Na prática, portanto, deu no mesmo que ela fosse considerada inconstitucional.
Diante disso, a pergunta que se faz por aqui é saber se algo parecido poderia ocorrer com a prisão civil do devedor de alimentos. Afinal, por ser norma constitucional originária, seu controle de constitucionalidade ficaria inviabilizado, a princípio.
Todavia, seria possível imaginar um cenário em que ela, a prisão, não mais se mostrasse compatível com o estado de coisas existente no cenário internacional e nacional?
Acredito que sim.
No panorama externo, diversos países do mundo simplesmente abandonaram a prisão civil por dívidas, inclusive alimentares. Espanha, Portugal, Bélgica, França, Itália, Alemanha, Bulgária, República Checa, Estônia, Grécia, Finlândia e Argentina são apenas algumas nações onde isso ocorreu já faz algum tempo.
A própria Convenção da Haia sobre Alimentos, recentemente promulgada no Brasil por intermédio do Decreto n. 9.176/17, contempla um monte de medidas de execução voltadas a acelerar e a tornar mais efetivos os pedidos de prestação internacional de alimentos, como a retenção de salário, a penhora de contas bancárias e de outras fontes de rendimentos, a penhora de prestações de segurança social, a penhora de bens ou venda forçada, a retenção do reembolso de impostos, a retenção ou penhora de pensões de reforma, a requisição de informação às instituições de crédito, a recusa, suspensão ou revogação de várias licenças (por exemplo, CNH) e o recurso à mediação, conciliação ou outros procedimentos análogos para favorecer a execução voluntária, mas sequer se refere à prisão civil (art. 34.2).
Ao menos no âmbito externo, portanto, existe cenário favorável para que haja alteração do texto constitucional brasileiro ou da forma de sua interpretação.
Mas, e se não existisse esse panorama mundo afora? Será que, mesmo assim, não poderíamos valorizar a pessoa humana no âmbito interno, sem depender da evolução do tratamento do direito no âmbito externo? Será que não poderíamos ser criativos e inventivos por nós mesmos? Que tal se olhássemos para nossas particularidades, especialmente as de nosso superpopuloso e inconstitucional sistema prisional (STF, ADPF n. 347), antes de decretarmos pura e simplesmente a prisão civil de devedores de alimentos? As normas infraconstitucionais que regulam sua aplicação não precisariam ser relidas e aplicadas de acordo com os novos tempos?
Mais uma vez, acredito que sim.
E, o faço, respeitando todas as opiniões em sentido contrário.
É que, normas jurídicas, como tudo no Direito, podem se tornar obsoletas, anacrônicas, contraditórias e, eventualmente, ter sua própria constitucionalidade colocada em xeque.
As normas que se extraem dos artigos 528, §§ 3º a 7º e 911, par. único, do Código de Processo Civil, e do artigo 19 da Lei de Alimentos, por óbvio, não refugiriam a esse processo. O gigantesco, menos invasivo e bem menos custoso arsenal de medidas executivas (típicas e atípicas) colocadas à disposição do credor de alimentos pelo diploma processual, se contrapõe ao gravoso e caro encarceramento do devedor de alimentos, dando mostras seguras de que ele se encontra em franca obsolescência nos dias de hoje.
No entanto, não se pode negar que a realidade brasileira faz surgir uma curiosa situação: o anacronismo frente ao sistema de liberdades abraçado pela Constituição Federal recomendaria sua revogação, mas as circunstâncias de fato existentes no nosso país, especialmente a pobreza e o grande índice de inadimplência alimentar talvez pudessem justificar sua permanência dentro do ordenamento jurídico.
É, mais uma vez, e, sempre, o conflito entre a realidade social e a realidade normativa.
Por isso, é provável que, em um futuro não tão distante, essas normas comecem a receber o mesmo tratamento que vem sendo destinado a um punhado de normas que, por se revelarem obsoletas frente ao sistema de direito positivo, passaram a ser, a partir de determinado momento, consideradas em estado de "inconstitucionalidade progressiva", por se encontrarem em um estágio intermediário, de caráter transitório, entre a situação de constitucionalidade e o estado de inconstitucionalidade, como ocorreu com o artigo 68 do Código de Processo Penal - cujo texto passou a ser interpretado no sentido de que o Ministério Público somente teria legitimidade para propor a ação civil ex delicto, em favor de pessoas pobres, nas hipóteses em que a Defensoria Pública não estivesse organizada no respectivo ente federativo (STF, RE 147.776-SP, DJ de 19.05.98; STJ, REsp 171.918/MG, DJU de 23.08.04) -, ou, ainda, com o §5º do art. 1º da Lei de Assistência Judiciária (L. 1.060/50), no ponto em que confere prazo recursal penal em dobro às Defensorias Públicas - que passou a ser interpretado no sentido de que assim deveria ocorrer, ao menos até que a estruturação do órgão no plano estadual alcançasse o nível de organização do Ministério Público (STF, HC 70.514/SP, DJ de 27.6.97).
Independentemente de qualquer desses cenários vir a se concretizar no mundo real, alguns questionamentos parecem ser necessários a respeito da temática. Que tal, por exemplo se a prisão civil fosse inviabilizada quando se destinasse a coibir o devedor a pagar dívidas inferiores a X Reais ou acumuladas por períodos inferiores a Y meses? Não sendo essa uma hipótese realista, que tal substituir-se a prisão civil carcerária pela prisão civil domiciliar, nessas e em situações similares? O emprego da tornozeleira eletrônica não seria mais simples, barato, viável e menos ofensivo do que o encarceramento? Idosos precisariam mesmo, ser presos por dívidas alimentares? Avós, independentemente de serem idosos, deveriam continuar sendo encarcerados por dívidas de seus filhos em relação a seus netos? Pais ou mães que exercessem a guarda unilateral de filhos portadores de deficiência deveriam ser presos pelo não pagamento de alimentos a outros filhos? Mulheres grávidas ou lactantes poderiam ser mandadas para a prisão por esse inadimplemento?
Definitivamente, parece ter chegado o momento de analisarmos se a prisão civil merece, de fato, permanecer em nosso sistema ou, no mínimo, se ela merece continuar sendo aplicada da forma como vem sendo.
Esta é a reflexão que este texto pretende suscitar.
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