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Lei de Alienação Parental, qual o caminho, a revogação total, sua manutenção integral, sem modificações, ou o seu aperfeiçoamento?
Por Fernando Salzer e Silva – Advogado familiarista.
Atualmente o Brasil, quiçá o mundo, vive um momento de extremos e radicalismos, onde as posições antagônicas são objeto de violentos confrontos, principalmente nas redes sociais.
O direito, como uma das principais ferramentas de regulação da sociedade e de pacificação da convivência social, está intimamente envolvido em tais inflamadas celeumas.
No direito das famílias, em especial, um exemplo de tais posições extremas e radicais se dá através da passional discussão envolvendo a Lei de Alienação Parental, Lei Federal 12.318/2010, que culminou no surgimento de três grupos sociais antagônicos: um em prol da revogação total, “do cancelamento” da Lei, outro que busca a sua manutenção integral, sem modificações ou ajustes, e um terceiro, de linha moderada e pragmática, que defende o aperfeiçoamento e a correta aplicação das normas constantes em tal legislação, através da constante atualização e capacitação de todos os atores envolvidos.
A Lei de Alienação Parental, como ocorre com a maioria das leis, apresenta defeitos e qualidades, variando estes conforme o ponto de vista pessoal de cada cidadão, dos grupos, coletivos, tribos sociais, etc.
Os indiscutíveis defeitos da Lei 12.318/2010 se encontram, topicamente, em sua ementa e no artigo 1º, uma vez que, de forma equivocada, passam a ideia de que tal normativo introduziu de forma originária o fato alienação parental no cotidiano nacional, no ordenamento jurídico, assim como que referida legislação trata tão somente do fenômeno (psicológico, social e jurídico) que é a alienação parental.
O fenômeno da alienação parental, que é uma das espécies de assédio familiar e moral, configurando violência psicológica[1], existe desde os primórdios do mundo civilizado, carregando forte bagagem cultural e transgeracional.
A ementa da lei em testilha, para retratar os verdadeiros objetivos e o real conteúdo das disposições contidas na legislação em questão, deveria dizer que essa dispõe sobre mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares[2], objetivando dar proteção especial às famílias, bases da sociedade,[3] assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade[4], de forma integral[5], o direito ao respeito e à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, a fim de lhes proporcionar o completo desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade[6].
A Lei 12.318/2010, por integrar, complementar e aperfeiçoar, visando alcançar o objetivo da proteção integral, o sistema protetivo legal iniciado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal 8.069/1990, encontra seu norte interpretativo nas disposições contidas nos artigos 100 e 153 do referido ECA, devendo o hermeneuta ter em mente que o fim das normas insertas na Lei de Alienação Parental é buscar a criação, a manutenção e o fortalecimento de saudáveis vínculos familiares e comunitários, sendo expressamente vedado o afastamento da criança ou do adolescente de suas famílias de origem, sem que haja previsão legal para tanto, devendo, em todas as hipóteses, ser observado, em quaisquer das fases, o devido processo legal[7].
O anseio pela busca da criação, da manutenção e do fortalecimento dos saudáveis vínculos familiares e comunitários, tem como escopo principal permitir o sadio desenvolvimento, psíquico e moral da criança e do adolescente, dando a tais cidadãos, sujeitos de direito, a chance de conhecerem e preservarem todas as suas origens, de construírem suas imagens, personalidades e identidades, com autonomia para, respeitado seu estágio de desenvolvimento, formarem seus próprios valores, ideias e crenças, enfim, encontrarem seu lugar no mundo.
Tal assertiva é confirmada pela Lei 13.327/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, o Marco Legal da Primeira Infância, que, complementando e aperfeiçoando o ECA, a Lei de Alienação Parental e outros normativos, reforça que para o desenvolvimento infantil integral, se faz necessário políticas públicas de fortalecimento das famílias, materna e/ou paterna, no exercício compartilhado de suas funções de cuidado e educação de seus filhos[8].
Visando o fortalecimento das famílias, o Marco Legal da Primeira Infância introduziu dois dispositivos no ECA, especificamente, parágrafos únicos nos artigos 3º e 22, que, conjugados, determinam o seguinte:
“Em relação a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem, mães, pais e responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas.”
Fica claro que para as crianças e adolescentes desenvolverem seus valores, ideias e crenças, é necessário que conheçam todas as famílias das quais se originaram, que convivam com as eventuais diversidades culturais, de crença e de origem, aprendendo a ter tolerância com as diferenças e particularidades existentes, pois só assim poderão desenvolver, de forma autônoma, sua própria imagem, personalidade e identidade.
Ter ciência de suas origens, de sua ancestralidade, é tão importante, se revelando até mesmo uma necessidade inarredável do ser humano, que o próprio legislador federal, ciente disso, deixou estampado no art. 48 do ECA que “o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica”, podendo o acesso a tal informação ser concedido, inclusive, aos cidadãos com idade inferior a dezoito anos.
Conhecer o passado de seus ascendentes é uma forma de prevenção, de correção de rumos, de quebra de ciclos, pois, adaptando a frase de Edmund Burke, “aquele que não conhece a sua história, está condenado a repeti-la”.
Garantir a convivência familiar saudável, em um arranjo no qual mães e/ou pais, que vivam ou não sob o mesmo teto, ainda que não tenham mais qualquer tipo de convívio ou relação entre si, a não ser a sociedade parental, de forma madura, compartilhem[9] os cuidados e a educação do filho[10], ensinando e incentivando que esses respeitem e obedeçam a todos os seus ascendentes[11], permitindo a transmissão familiar de suas respectivas crenças e culturas, também é um remédio apto a franquear que todos os genitores, lato senso, biológicos e/ou socioafetivos, possam exercer sua autoridade parental, quebrando a ultrapassa visão de funções estereotipadas de homens e mulheres[12], ajudando a eliminar eventuais discriminações contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento, às relações familiares, à maternidade e à paternidade[13].
O legislador federal, em sua missão constitucional, atento à necessidade de buscar e permitir a criação, a manutenção e o fortalecimento de saudáveis vínculos familiares e comunitários, ciente dos benefícios que isso traz para as crianças, adolescentes, famílias e toda a coletividade, teve o cuidado de, no corpo da Lei de Alienação Parental, evitar criar um método inquisitivo, preferindo instituir um processo terapêutico, através da realização de perícias realizadas por equipes interprofissionais ou multidisciplinares[14], especializadas[15], compostas por profissionais com formação acadêmica em suas respectivas áreas[16], buscando entender o histórico, o cotidiano, as angustias, aflições e os desejos, o contexto de todas as famílias envolvidas, tanto das unilaterais[17], na visão de mães e/ou pais (biológicos ou socioafetividade), como da nuclear, esta, imutável, na ótica do filho.
Importante ressaltar que, face à relevância dos objetivos visados por tal procedimento terapêutico, o legislador federal, sabiamente, determinou que o Estado, incluído o Poder Judiciário[18], tem a obrigação de proporcionar e efetivar a formação continuada e a capacitação permanente de todos os profissionais envolvidos no curso dos respectivos processos[19].
Como a psicanalista, mestre e doutora em Direito Civil, Giselle Câmara Groeninga, costuma dizer em suas palestras, a Lei 12.318/2010 determina no §1º, de seu artigo 5º, abaixo transcrito, que seja realizada uma perícia 360º, abordando todos os aspectos e especificidades das diversas famílias envolvidas.
“Art. 5o Havendo indício da prática de ato de alienação parental, em ação autônoma ou incidental, o juiz, se necessário, determinará perícia psicológica ou biopsicossocial.
§ 1o O laudo pericial terá base em ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, conforme o caso, compreendendo, inclusive, entrevista pessoal com as partes, exame de documentos dos autos, histórico do relacionamento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de eventual acusação contra genitor.”
Concluído tal procedimento terapêutico, seguindo a diretriz de que a manutenção ou a reintegração de criança ou adolescente às suas famílias terá preferência em relação a qualquer outra providência[20], o sistema legal de prevenção e proteção traz, como medidas preferenciais e pedagógicas, as seguintes, extraídas do art. 129 do ECA e do art. 6º da Lei 12.318/2010: advertência, encaminhamento a serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos, encaminhamento, até mesmo compulsório, a tratamento psicológico, biopsicossocial ou psiquiátrico, encaminhamento a cursos ou programas de orientação e ampliação do regime de convivência familiar.
Caso tais medidas pedagógicas não surtam efeito ou caso haja resistência dos pais, mães e demais familiares envolvidos em obedecê-las, somente a partir daí poderão ser aplicadas as outras medidas previstas nos dispositivos legais mencionados, sempre observada a gradação constante em tais normas.
Assim, após esse breve exposição, como sempre respeitando as fundamentadas opiniões em contrário, pensando no pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, na proteção especial que as famílias devem ter do Estado, buscando que a cada dia possamos evoluir na construção de uma sociedade justa, imbuída de tolerância, de respeito às diversidades raciais, sexuais, familiares e de origem, quebrando ultrapassados estereótipos, preservando as culturas e as tradições familiares, se faz necessário que os extremos, as posições radicais, em uma demonstração de maturidade, dialoguem, evitando que o combate fratricida de posicionamentos resulte em um inconstitucional retrocesso social de todo um sistema protetivo e preventivo, representado pelo ECA, Lei de Alienação Parental, Marco de Primeira Infância e outros, que vem paulatinamente sendo construído desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o que, se concretizado, atentaria contra princípio da vedação de proteção deficiente de bens jurídicos tutelados.
[1] Art. 4º, II, “c”, Lei 13.341/2017.
[2] Art. 226, §8º, Constituição Federal.
[3] Art. 226, caput, Constituição Federal.
[4] Art. 227, caput, Constituição Federal.
[5] Art. 1º, Lei 8.9069/1990.
[6] Art. 3º, caput, Lei 8.906/1990.
[7] Art. 24, Lei 8.069/1990.
[8] Art. 13, Lei 13.257/2016.
[9] Arts. 1.583, §1º e 1.584, §2º, Código Civil.
[10] Art. 18, Decreto 99.710/1990, Convenção sobre os direitos da Criança; arts. 1.579, caput e parágrafo único, 1.634, I e 1.636, caput e parágrafo único, Código Civil.
[11] Art. 1.634, IX, Código civil c/c art. 29, “c”, Decreto 99.710/1990.
[12] Art. 5º, “a”, Decreto 4.377/2002, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.
[13] Art. 16. Decreto 4.377/2002.
[14] Art. 157, §1º, Lei 8.069/1990.
[15] Art. 699, Código de Processo civil; Arts. 5º, parágrafo único, 12, I, II, V e §3º, Lei 13.341/2017.
[16] Art. 473, III, Código de Processo Civil.
[17] Art. 226, §4º, Constituição Federal.
[18] Arts. 14, caput e parágrafos, e 15, Resolução CNJ nº 299/2019.
[19] Arts. 70, III e 88, VIII, Lei 8.069/1990; Art. 10, Lei 13.257/2016; Arts. 5º, XI, 14, §1º, II, e 20, §1º, Lei 13.431/2017.
[20] Art. 19, §3º, Lei 8.069/1990.
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