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Ação de Exigir Contas Alimentares: os desafios da nova interpretação
Ação de Exigir Contas Alimentares: os desafios da nova interpretação
Daniel Alt da Silva[1]
A pensão alimentícia é “um instituto básico no direito de família, considerado de ordem pública e protegido de modo especial pelo Estado”, sobretudo em razão de a entidade familiar ser constitucionalmente estimada como a base da sociedade, ocupando local de destaque “dentro do ordenamento de qualquer sistema político”.[2] Nesse passo, com suporte no princípio da solidariedade, os alimentos, em linhas gerais, “tem o significado de valores, bens ou serviços destinados às necessidades existenciais da pessoa, em virtude de relações de parentesco (direito parental)”,[3] especialmente quando o indivíduo, com o seu trabalho ou renda, não consegue prover o próprio sustento. Além disso, a alimentícia revela, dentre outras tantas, a característica da irrepetibilidade, cuja acepção – mesmo sem dispositivo legal correspondente – vaticina a impossibilidade de devolução (repetição), tendo em vista o propósito de proteção do alimentando nos casos de pagamento dúplice ou indevido de prestações.[4]
Ao depois, retratando inegáveis diretrizes subjetivas, resta importante consignar que os alimentos, com suporte no artigo 1.694, §1º, do Código Civil, devem ser fixados em observância à proporcionalidade. Aliás, há quem sustente que “o calvário das ações de alimentos no Judiciário está na busca incessante da prova do binômio necessidade-possibilidade”.[5]
Não bastasse isso, com o advento da Lei nº 13.058/2014, que estabelece a definição da expressão “guarda compartilhada”, sobreveio considerável alteração legislativa. Tal movimento, por exemplo, autorizou aos genitores a solicitação de prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em temáticas atreladas à saúde e educação dos filhos. Esclarecendo: enquanto a prestação de contas objetiva tem a ver com o destino do crédito frente às despesas, configurando simples balanço contábil, a prestação de contas subjetiva permite a discussão sobre o acerto no direcionamento, levando em consideração o melhor interesse dos filhos.
À vista do permissivo legal relatado, a jurisprudência majoritária passou a adotar posição no sentido de rechaçar o livre trânsito das pretensões. O acórdão paradigma é do Recurso Especial nº 1.637.378/DF, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado no Superior Tribunal de Justiça em 19.02.2019, cujo argumento principal para inadmitir o cabimento da ação de exigir contas sempre esteve atrelado à suposta ausência de interesse de agir.
Em síntese, ressaltando que “a possibilidade de se buscar informações a respeito do bem estar do filho e da boa aplicação dos recursos devidos [...] em nada se comunica com o dever de entregar uma planilha aritmética de gastos”, inclusive apontando que a discussão “deve ser objeto de uma análise global na via adequada”, o julgador argumenta que, mesmo havendo discordância acerca da “aplicação dos recursos, não há falar em devolução da quantia utilizada pelo credor, ante o princípio da irrepetibilidade que norteia as regras do Direito de Família”. E arremata: “permitir ações de prestação de contas significaria incentivar ações infindáveis e muitas vezes infundadas acerca de possível malversação dos alimentos, alternativa não plausível e pouco eficaz no Direito de Família”.[6]
De outra sorte, talvez servindo de mola propulsora à mudança jurisprudencial no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, adveio o julgamento, em 26.05.2020, do Recurso Especial nº 1.814.639/RS, com relatoria para o acórdão designada ao Ministro Moura Ribeiro. A situação fática em análise descortina peculiaridades, porquanto envolve cifra alimentar destinada à filho que experimenta necessidades especiais (síndrome de Down). Na origem, a demanda teve seu aviamento promovido em 27.04.2005, na Comarca de Gramado/RS, ocasião em que o alimentante buscava esclarecimentos sobre a destinação conferida à prestação alimentícia da criança, tendo em vista possíveis desvios praticados pela mãe (guardiã). O pedido logrou resultado de improcedência, ao que restou interposto o competente recurso ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, direcionado à relatoria do Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. As razões de decidir da Apelação Cível nº 70073041303, com desfecho em 26.07.2017, perpassam pelo cenário formalista de que, “como o pai alimentante não tem relação jurídica de direito material com a mãe e guardiã de seu filho, mas com o filho-alimentado, que é o titular dos alimentos, é descabido o pedido” de prestação de contas.[7]
Em consequência do não provimento do recurso, a discussão teve direcionamento ao Superior Tribunal de Justiça, de modo que o recurso especial restou distribuído originariamente ao Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. A propósito, seguindo a lógica esperada, o julgador aduziu que a “ação de prestação de contas, em regra, é via inadequada para a fiscalização dos recursos decorrentes da obrigação alimentar”, pelo que “torna este procedimento incompatível com a pretensão fiscalizatória do alimentante em relação aos recursos transmitidos ao alimentado que não está sob a sua guarda”. E mesmo reconhecendo a função fiscalizadora da manutenção e educação do filho como uma decorrência da autoridade parental, ponderou que tal exercício (fiscalização ou análise das contas) não deve ser instrumentalizado por intermédio de procedimento especial, mas “incidentalmente em revisão de alimentos, em modificação/regulamentação da guarda ou, até mesmo, em ação autônoma pelo procedimento ordinário, sem buscar a devolução das quantias e desde que apresente justo motivo”.[8]
Em flagrante oposição ao entendimento já consolidado, o Ministro Moura Ribeiro abriu divergência, e lançou mão de argumentação que interpreta o caso de acordo com o princípio da proteção integral da criança e do adolescente. A esse respeito, revigorando o conceito de autoridade parental, asseverou que “é juridicamente viável a ação de exigir contas [...], na medida em que tal pretensão, no mínimo, indiretamente, está relacionada com a saúde física e também psicológica do menor, lembrando que a lei não traz palavras inúteis”.[9]
Verdade seja dita, o desempenho da autoridade parental está entrelaçado à ideia de “conduzir a criança e o adolescente a uma condição de autonomia, mediante aquisição de discernimento, condição essencial para o exercício pleno de seus direitos fundamentais”. Além do mais, vale esclarecer que a “assistência, criação e educação estão diretamente atreladas à formação da personalidade do menor”,[10] sendo tais atribuições direcionadas aos pais, independentemente da situação conjugal, nos moldes do artigo 1.632 do Código Civil. Logo, proceder à negativa de averiguação do destino conferido à alimentícia do filho induz à conclusão de obstrução ao pleno exercício da autoridade parental.
Ademais, especificamente quanto à adequação do procedimento, a decisão em questão, reconhecendo a viabilidade jurídica da ação de exigir contas ajuizada em nome do próprio alimentante, demarcou a condição de que deve ser “proposta sem a finalidade de apurar a existência de eventual crédito, pois os alimentos prestados são irrepetíveis”. Em outras palavras: assinalando a efetiva presença de legítimo interesse processual, o comando judicial abalizou uma espécie de prestação de contas sui generis, visto que plenamente vedada a busca pelo “acertamento de contas”, devendo a medida ser utilizada, preferencialmente, “na hipótese em que haja pelo menos suspeita de malversação dos alimentos”.[11] Somado a isso, obtemperou que não há exigir, necessariamente, que o autor da demanda “afirme a existência de algum crédito, mas sim que ele demonstre que tem direito de ter as contas prestadas, ou seja, de que é titular de interesse gerido e administrado por outrem”.
A inovadora decisão, insta dizer, abre caminho para novas discussões, como também concede espaço ao fundado temor de aparição de incontáveis lides, de sorte que se impõe honesto e leal debate acadêmico. A começar: a) embora a decisão não labore com clareza a respeito do procedimento a ser adotado, se especial ou ordinário,[12] parece salutar arrematar que a via a ser escolhida não interfere na busca pelos esclarecimentos acerca de como a verba alimentar está sendo gasta; b) ao que se vê dos termos alinhados no voto vencedor, o processo tem como fito principal o recebimento de esclarecimentos de como a rubrica está sendo empregada, sendo ocluso o debate de eventual crédito ou débito. Nessa perspectiva, uma vez prestadas as contas, e estando configurados “indícios de que a gestão dos alimentos pela administradora da criança não está sendo adequada”,[13] cabível ao interessado buscar providências em ação autônoma, razão pela qual há a indicação de que fica dispensado o julgamento previsto no artigo 552 do Código de Processo Civil; c) em observância ao disposto no artigo 551, §2º, do Código de Processo Civil, as contas serão prestadas de forma minimamente clara e compreensível, mas não na modalidade mercantil; d) sem querer afirmar preceitos generalizantes, os quais não estão contemplados no modelo fático em análise, é coerente prever que a ação de exigir contas contabiliza igual cabimento nos casos de compartilhamento da custódia, porque, “no ordenamento brasileiro, a guarda não é fonte de novos deveres jurídicos, nem se mostra especialmente relevante”.[14] Afora tal elemento de convicção, é importante anotar que o fato gerador da prestação de contas é a autoridade parental, devidamente contornada de princípios constitucionais protetivos da criança e do adolescente; e) com esteio no artigo 550, §1º, do Código de Processo Civil, emerge como imprescindível – antes da inadvertida judicialização – a adoção de mecanismos extrajudiciais para solução do conflito, a fim de demonstrar o legítimo interesse na propositura; f) estimando que a alimentícia denota uma prestação de trato continuado, a reclamação judicial de esclarecimentos sobre o destino conferido ao pensionamento não pode servir de instrumento de abuso de direito, sob pena de infringir o dever de colaboração instituído pelo artigo 6º do Código de Processo Civil, e justificar, se for o caso, a aplicabilidade da indenização por “assédio processual”.[15]
[1] Mestre pela UniRitter. Professor do Curso de Especialização em Direito de Família e Sucessões da FMP. Conselheiro Fiscal do IBDFAM/RS. Advogado da área de Organização Patrimonial e Sucessória de Souto Correa Advogados. E-mail: daniel.alt@soutocorrea.com.br
[2] RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 727.
[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, v. 5, p. 376.
[4] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 947.
[5] BARBOSA, Águida Arruda. Alimentos. In: Direito de Família. Águida Arruda Barbosa e Claudia Stein Vieira (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, v. 7, p. 232.
[6] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.637.378/DF, Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 19.02.2019.
[7] TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70073041303, Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 26.07.2017.
[8] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.814.639/RS, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 26.05.2020.
[9] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.814.639/RS, Min. Moura Ribeiro, j. 26.05.2020.
[10] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima. O Direito das Famílias Entre a Norma e a Realidade. São Paulo: Atlas, 2010, p. 219-220 e 221.
[11] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.814.639/RS, Min. Moura Ribeiro, j. 26.05.2020.
[12] A Ministra Nancy Andrighi, que acompanhou a divergência vencedora juntamente com o Ministro Marco Aurélio Belizze, alertando para a complexidade do procedimento especial, sugeriu que inexiste razão para excluir a possibilidade de pedido simples, seguindo o procedimento comum.
[13] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.814.639/RS, Min. Moura Ribeiro, j. 26.05.2020.
[14] TEPEDIDO, Gustavo. A Disciplina da Guarda e a Autoridade Parental na Ordem Civil-Constitucional. In: Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 310.
[15] STJ, 3ª Turma, Recurso Especial nº 1.817.845/MS, Ministra Nancy Andrighi, j. 10.10.2019.
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