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As Dores de Maria
AS DORES DE MARIA
Alice de Souza Birchal 1
Patrício de São Miguel 2
– “Eu não consigo sair dessa. A senhora não entende, doutora.” Assim terminara o depoimento daquela Maria, tão simples quanto sofrida, diante de uma delegada de mulheres admirada e inconformada com tamanha passividade. A doutora insistia: – “A senhora deve a si mesma uma atitude; retome sua liberdade e resgate sua dignidade!” Mas não convenceram uma à outra.
Aos costumes, disse nada.
Qualificação: a vítima do abuso era filha da miséria e da ignorância, migradas do interior inóspito para a vida melhor da Capital, instalando-se no inferno dos esquecidos subúrbios, onde se abraçam o analfabetismo, o desemprego e o alcoolismo de trabalhadores rurais cercados então de asfalto e alvenarias. Mãos grossas, olhos sem viço, ombros caídos, andar arrastado por chinelos surrados, cabelos presos num roto lenço estampado. Na cabeça, lembranças puídas, um grande vazio; mas se pensava nos filhos, soava a ternura. Respirava profundamente, querendo aspirar vida, mas nem todo ar do mundo lhe preenchia o vácuo de uma existência servil. Desde que se deu por gente tivera utilidade para os outros, sobretudo para o marido e os filhos: esses se regalaram em seus seios à exaustão. Aliás, nunca soube se foi gente ou se já nasceu objeto. O marido trazia o elementar para a sobrevivência, nas posses de pobre, tanto quanto lhe ignorava as verdadeiras carências. Seu universo ia do tanque ao fogão, da mesa de passar roupas à vassoura... Com um paninho, limpava a poeira da rua que o mundo levantava, dando notícia de movimento; arrumava em casa o esquecido por olhos que não a viam, só querendo a ordem e o asseio do lugar. Gastava suas horas perdida em dias inteiros de trabalho doméstico: rotina de anos que lhe ocupara a idade toda. Na infância, brincava de trabalhar, como toda menina de seu meio, e só teve uma boneca para banhar, ninar e cuidar: Suzi, a irmã mais nova. Não conhecera outra vida. Temia a liberdade, temia arriscar-se nesse abismo em queda livre, perdido o chão; o ócio era uma fantasia, gozada às escondidas de si própria, sentada numa banqueta, entregue a uma nesga de sol, que decalcava um oásis de aconchego na pequena área de serviço: um cantinho de lazer no restinho da tarde para pensar em nada. Seu conselheiro, o rádio; seu luxo, as novelas da televisão. Sua boca era para o sim, seus ouvidos para o não. Seu suor a abençoava, dizia o pastor. Glória a Deus!
Às perguntas da delegada, respondeu: mocinha, favelada, trabalhara como doméstica por pouco tempo, pois cedo engravidou. Casou-se com seu algoz, para desde sempre ser subjugada pela estupidez de um marido machista e possessivo, que a proibiu de trabalhar fora. Nada lhe faltava: sua modéstia e simplicidade pediam pouco. Nervoso, o marido descarregava suas raivas diárias na esposa, a quem deu uma boa condição naquele difícil meio social. Se batia nela, pelo menos era só ele: na comunidade outrem nunca a machucou; se a obrigava aos deveres da cama, com requintes de intimidades constrangedoras, pelo menos – pensava consigo mesma –, nenhum outro a estuprara. Aliás, serenado o iracundo, ele sempre acentuava isso, enquanto ia enchendo a mulher com seus dedos-tentáculos, toque de homem: muita libido, pouca carícia; muita língua, pouco ouvido. Contudo, ela ainda era grata, incomodada apenas com os excessos do marido, consolidados com o tempo. Mesmo não se sentindo merecedora dos espancamentos e grosserias, buscava entender as explosões de seu homem, convencendo-se de ter sua cota própria de responsabilidade, pois nunca fora capaz de ajudar nas despesas da casa, apesar da pesada rotina e de não permitir que as crianças perturbassem aquele a quem temiam e que mal reconheciam como pai.
Instada a dizer algo mais, respondeu que sentia, para além das dores no corpo, o ingrato desconforto da delação por, na presença da autoridade, falar mal – mal falando – do marido com suas maldades lá dele. Pobre homem!
A simples Maria reparava na delegada, arma na cintura, cercada de homens sob seu comando: cabelos lisos e lustrosos, bustos empinados a bisturi, roupa colada no corpo malhado, pele tratada, lábios vermelhos, sempre retocados, unhas pintadas, cheiro suave de quem acaba de sair do banho; nem deve ter precisado ser jovem, bastavam aqueles cuidados todos, pois a idade, sepulcro de toda mulher, peneira as vaidades e afasta o alvoroço dos homens, dando sossego ao corpo e aliviando o oco de um vazio inexplicável. Que humanidade!
A Dra. Maria Rocha vinha da classe média; os pais, sem ambição material, servidores públicos dedicados, prezavam o estudo. Tivera a infância feliz entre os irmãos, com todas as férias num hotel praiano. Estudara, do primário à faculdade de Direito, em escolas públicas, destacando-se pela inteligência. A beleza e a graça da juventude, não as perdera na maturidade, mas nunca se deslumbrou com isso, pois não queria ser prisioneira de seu templo, da sina de seus hormônios, serva do fadário de seu gênero, condenada no estigma de sua fragilidade, açoitada pelo bumerangue da subserviência no destino de ser protegida. Tinha garra e focou em seus objetivos, acalentando o desejo de ser delegada de polícia, para atuar na área da violência contra a mulher. A necessidade fê-la logo trabalhar num escritório de contabilidade, pois os pais não podiam mantê-la exclusivamente estudando para concurso. O seu trabalho lhe rendeu respeito profissional e suas economias deram-lhe um pequeno apartamento em bairro modesto.
Sua vida mudou ao casar-se com um marido ambicioso, cheio de relações importantes, mas instável nos negócios e um tanto pródigo. Ele, de origem simples, interiorano, conseguiu estabelecer-se com sucesso tal, que rapidamente chegou à Capital. Carregava grave problema cardíaco e diabetes controlável; dir-se-ia dele um tipo bonito, sem vícios, exceto a fixação de conviver com gente rica, onde se dava bem por ser determinado, inteligente e articulado. Isso encantou Maria, mais ainda quando, mesmo já com filhos, ele abraçou o sonho da esposa, estimulando-a a se preparar para o concurso e a se tornar alguém de presença social relevante. Aprovada no concurso, tão logo tomou posse, o marido se movimentou, e ela rápido estava na Capital, abreviando a carreira que de ordinário se alonga no interior do Estado.
Com o tempo, porém, o marido passou a demonstrar desconforto por não estar com a esposa nas situações de destaque que tocavam exclusivamente a ela, uma autoridade. Daí a pouco, com alguma desculpa, ele se recusava a acompanhar a mulher em qualquer evento de interesse dela, seja a uma solenidade, a um aniversário ou a um velório e, menos ainda, às comemorações do trabalho; nessas ocasiões, ele dizia preferir estar com os filhos. Com a fala mansa e sutil, sem aparente gravidade, mas instilando sincera preocupação, o marido constantemente advertia a esposa de que ela estava se masculinizando pelo trabalho, perdendo a graça de outros tempos, isso repetido exato quando ela se produzia para sair; ele realçava como uma chaga a ausência da mãe na rotina dos filhos, por mais que ela se desdobrasse para estar com as crianças. Depois vieram, incontáveis, as surpresas do marido estroina com gastos absolutamente prescindíveis, mesmo depois de o casal discutir e concluir pela desnecessidade daquilo.
Àquela altura, a casa se mantinha exclusivamente com os estáveis vencimentos da delegada. Na sequência de investimentos frustrâneos, o último empreendimento do marido, de alto risco, incluiu como garantia, à revelia da esposa, o imóvel por ela adquirido ainda antes do casamento: constrangida, ela assinou a papelada. As discussões domésticas iam aumentando, permeadas de ataques e cobranças do marido: ele reiterava que ela só viera para Capital graças a ele, desconsiderando qualquer esforço e capacidade da mulher, primeira colocada no concurso, além da reconhecida qualidade do seu trabalho; também se dizia refém da mulher por ser um homem doente. E a condição de saúde do marido se deteriorava a olhos vistos com a chegada da idade e pelos deliberados abusos gastronômicos. A delegada sentia aquela relação esvaziada, cujos vínculos de admiração e respeito perderam-se na história do casal, a ponto de já incomodar os filhos. Nas reuniões familiares, o marido insistia nos deboches à polícia, nas críticas à vida dos assalariados “barnabés” e observações desairosas à aparência da mulher, que ele insinuava envelhecida. Amigos íntimos e até parentes expressavam antipatia pela conduta desmedida do marido. Enfim, atento à infelicidade da mãe, o filho mais velho sugeriu-lhe o divórcio: – “A senhora deve a si mesma uma atitude; retome sua liberdade e resgate sua dignidade!”
Na Delegacia Especializada da Mulher o expediente findava. A delegada relia o caso da outra Maria, mas veio-lhe à lembrança a advertência do filho. Num súbito, perdeu-se noutro inquérito, fixando-se nas doídas palavras do garoto. Racionalizava tudo... mas não conseguia sair... e ninguém a entendia... só Maria.
[1] Bacharel em Direito, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994). Mestre em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999); Doutora em Direito, na linha de pesquisa de Processo Civil, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2005).
[2] Patrício de São Miguel
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