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Dez anos do julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4277. Como anda a aplicação do direito à busca da felicidade no direito de família pelo STF?
Dez anos do julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4277. Como anda a aplicação do direito à busca da felicidade no direito de família pelo STF?
Gabriel Gomes Contarini. Advogado. Residente jurídico da PGE-RJ. Pós graduando em advocacia pública pela ESAP-RJ.
Resumo: O presente artigo busca, em um primeiro momento, analisar de forma breve o julgamento da ADPF 132 e ADI 4277, dados 10 anos do caso. Dessa forma, se revisitará os fundamentos da decisão, em especial o uso da expressão “direito à busca da felicidade”. Em seguida, será explicado um pouco das origens desse direito para, depois, se adentrar na aplicação in concreto pela jurisprudência brasileira. Dessa maneira, serão trazidos os principais julgados pelo STF em matéria de direito de família em que o princípio foi evocado, sendo feitos comentários sobre cada um deles. Um comparativo com um julgado do STJ também é feito para, enfim, concluir-se o artigo com a opinião deste autor sobre a aplicação desse princípio pela Corte Máxima.
Palavras chave: Direito à busca da felicidade, Supremo Tribunal Federal, ADPF 132 e ADI 4277, jurisprudência formada, direito de família.
Abstract: This article seeks, at a first moment, to briefly analyze the judgment of ADPF 132 and ADI 4277, after10 years of the case. In this way, the fundamentals of the decision will be revisited, in particular the use of the expression “right to the pursuit of happiness”. Then, it will be explained a little of the origins of this right to, in another moment, get into the concrete application by the Brazilian former court decisions. In this way, will be brought the main cases of STF on family law in which the principle was evoked, with comments being made on each one of them. A comparison with a judgment of the STJ is also made to, finally, conclude the article with the opinion of this author on the application of this principle by the Supreme Court.
Key words: right to the pursuit of happiness, Federal Supreme Court, ADPF 132 e ADI 4277, former court decisions, family law.
Neste ano de 2021 completam-se 10 anos desde a histórica decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento conjunto da ADI 4277 com a ADPF 132 que equiparou, para todos os fins, as uniões estáveis homoafetivas às uniões estáveis heteroafetivas. Em um gigantesco e tardio salto iluminista, a corte máxima conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil assentando que “O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.
Na técnica da interpretação conforme à constituição, o referido artigo do Código Civil que traz a expressão “união estável entre o homem e a mulher” não foi modificado textualmente, tendo apenas sofrido uma interpretação pela corte, de forma a afastar uma vedação discriminatória que podia ser extraída do dispositivo.
Dessa forma, o julgamento permitiu que os cartórios do país registrassem uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, bem como promoveu a estabilidade jurídica ao tema, já que o cenário comum era o da existência de inúmeras decisões judiciais conflitantes reconhecendo e negando esse tipo de união.
No Acórdão publicado em 14/10/2011, um dos fundamentos utilizados para justificar a inexistência de diferença entre as uniões e, com isso, permitir a união homoafetiva foi o chamado “direito à busca da felicidade”. A evocação de tal princípio chamou a atenção dos juristas brasileiros pela robusta fundamentação em sua aplicação, em especial no voto do Min. Celso de Mello.
Embora o termo já tenha aparecido em outras decisões da corte de forma tímida, como na ADI 3.300-MC/DF e na STA 223-AgR/PE, nesse leading case em comento se afirmou de vez a existência no ordenamento brasileiro desse postulado que decorre diretamente do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, um dos Fundamentos da República segundo o art. 1°, inc. III, da Constituição Cidadã de 1988.
No que tange às origens históricas desse direito, remonta-se à Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776, na qual a expressão aparece pela primeira vez como um direito positivado. Naquele contexto, o processo que culminou com a independência americana, recheado de ideais liberais, revelam a base axiológica em que foram insculpidos os principais direitos da Carta Americana, fundada com um forte apelo às liberdades individuais. Assim, o direito à busca da felicidade apareceu como um corolário da autonomia e liberdade de uma forma geral, sem uma aplicação específica.
Já na ordem jurídica brasileira, como bem delimitado pelo STF, o seu conteúdo está intimamente ligado à promoção da dignidade humana, sendo a busca pela plena felicidade individual um elemento que permite a materialização da vertente “autonomia individua[1]l” da dignidade (SARMENTO, 2016) Trata-se, portanto, de um postulado constitucional implícito que nas palavras do Ministro Celso de Mello:
“decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais”.
Como se verá adiante, o Supremo Tribunal Federal aplicou diversas vezes esse princípio na resolução de casos relacionados ao direito de família e isso pode ser explicado pela mudança no entendimento sobre o conceito de família que ocorreu nas últimas décadas. Antes vista como célula do Estado (Dias, 2006), patrimonializada e direcionada a cumprir um interesse estatal, vez que só podia ser formalizada com a chancela do Estado através do matrimônio (Alves, 2009), a família passou, com a constituição de 1988 e com a evolução social, a ser considerada como o locus primordial de desenvolvimento pessoal e de promoção da felicidade e dignidade humana. A esse respeito, sábias são as palavras de Leonardo Barreto Moreira Alves (Alves, 2009):
o novo perfil da família desenhado pela Carta Magna Federal permitiu que ela se tornasse uma instituição verdadeiramente democrática, na qual a preocupação maior é com a felicidade pessoal dos seus membros, com a implementação da sua dignidade, com a realização dos seus direitos fundamentais, motivo pelo qual ela deixa de ser uma entidade estatal e ganha contornos de entidade social (célula básica da sociedade), o que autoriza o exercício da autonomia privada no seu âmago. (...) a família dos dias de hoje, por envolver relações afetivas, é muito mais uma entidade de fato do que uma instituição jurídica de monopólio do Estado, como outrora era tratada. (grifos nossos).
Logo, se a família é o principal espaço de desenvolvimento e de promoção da felicidade individual, é evidente que não tardaria para que a corte máxima passasse a, cada vez mais, usar o princípio da busca da felicidade no âmbito do direito de família.
E foi no contexto do julgamento da equiparação das uniões estáveis homoafetivas que tal jurisprudência se consolidou, demonstrando que, no âmbito familiar, a dignidade e o consequente direito à busca pela felicidade só podem ser alcançados quando o indivíduo é livre para estabelecer seus vínculos afetivos da forma que melhor lhe aprouver. Dessa forma, decidiu-se que impedir um casal homossexual de constituir família é impedir que os companheiros possam buscar uma vida feliz e completa, o que viola frontalmente a dignidade da pessoa humana.
Desde essa decisão, o Supremo revisitou o conceito algumas vezes e usou o caso narrado acima como precedente para fundamentar alguns julgamentos. Em 2015, na ADPF 291, o STF decidiu que as expressões “homossexual ou não” e “pederastia ou outro” constantes do art. 235 do Código Penal Militar são incompatíveis com a Constituição, por serem expressões pejorativas e de cunho discriminatório. Tal decisão teve como um dos fundamentos a proteção do direito à liberdade de orientação sexual, decorrente da busca pela felicidade que, por sua vez, materializa a dignidade da pessoa humana, como já havia sido afirmado pela corte.
Já em 2017, saindo um pouco da perspectiva da igualdade de orientação sexual, a aplicação do postulado no bojo do RE 898060 (Rel.Min. Luiz Fux, Publicado em 24/08/2017) se deu para afirmar o direito à pluriparentalidade, uma vez que, no direito brasileiro, não há hierarquia entre espécies de filiação nem entre modelos familiares (Art. 226, §4°, c/c art. 227, §6°, CRFB). Dessa forma, reconhecer a pluriparentalidade significou um grande avanço social, na medida em que se deu concretude à situações fáticas de afeto que eram subjugadas pelo simples fato de a relação não ser biológica, o que certamente não contribuía para a justa busca da felicidade dos membros daquela família. Veja-se alguns trechos do Acórdão:
“ (...) O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei” (...) Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).
Em 2018, foi julgado o RE 670.422/RS, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, no qual se decidiu que existe direito subjetivo à alteração de nome e classificação de gênero no assento de nascimento quando solicitada por transexual, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização. Nos termos do acórdão:
“Direito subjetivo à alteração do nome e da classificação de gênero no assento de nascimento. Possibilidade independentemente de cirurgia de procedimento cirúrgico de redesignação. Princípios da dignidade da pessoa humana, da personalidade, da intimidade, da isonomia, da saúde e da felicidade. Convivência com os princípios da publicidade, da informação pública, da segurança jurídica, da veracidade dos registros públicos e da confiança.
Fixou-se também que não poderá haver menção do termo “transexual” no registro, o que poderia gerar preconceito ao indivíduo. Aqui, novamente o postulado da busca pela felicidade foi usado como fundamento para permitir um grau maior de liberdade e autodeterminação dos indivíduos, na medida em que o Estado não pode se opor a registrar o nome e o sexo da pessoa tal como ela se vê e se enxerga. O precedente usado na fundamentação foi justamente a ADPF 132 e a ADI 4277.
Mais recentemente, em acórdão publicado em 27/07/2020, o pleno do STF decidiu que candidata grávida tem o direito de ter o seu teste de aptidão física remarcado, posto que se trata de um direito subjetivo que promove a igualdade de gênero, a busca pela felicidade, a liberdade reprodutiva e outros valores encartados pelo constituinte como ideário da nação brasileira. O Tribunal entendeu que obrigar a mãe a realizar o esforço físico poria em risco o bebê e a própria mãe, não cabendo também a eliminação do certame, pois o Estado estaria indiretamente desestimulando o livre planejamento familiar, um dos elementos do direito à busca da felicidade. (RE 1058333, de relatoria do Ministro Luiz Fux)
Comparativamente, já no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, há um julgado que invoca o direito à busca da felicidade de uma forma que pode ser passível de críticas. No REsp 1348458/ MG, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, usou-se o postulado na fundamentação da existência do dever de monogamia no direito brasileiro. Para a Ministra, a existência de uniões estáveis paralelas não pode ser tutelada pelo direito, uma vez que rompe com a busca da felicidade dos membros familiares em razão do abandona da eticidade e integridade. Veja-se o trecho do acórdão:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO CONCOMITANTE. DEVER DE FIDELIDADE. INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. AUSÊNCIA. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1º e 2º da Lei 9.278/96.
(...)
Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.
6. Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade.
No congresso Nacional, há uma PEC de n° 19/2010 sem previsão de ser posta em votação que carinhosamente foi apelidada de “PEC da felicidade” por prever a inclusão expressa desse hoje princípio implícito no art. 6° da Constituição. Enquanto a emenda não vem, resta ao mundo jurídico colher da jurisprudência formada as melhores lições e proveitos.
Nesse sentido, percebe-se que passados dez anos desde o julgamento da ADPF 132 e ADI 4277 o Supremo Tribunal Federal consolidou a existência do direito à busca da felicidade, princípio implícito que decorre diretamente da dignidade da pessoa humana. Ao mesmo tempo que se trata de um importante atalho para a aplicação in concreto da aberta noção de dignidade, na medida em que conecta situações reais ao núcleo essencial do princípio, também é certo que funciona como filtro a fim de bloquear o uso infundado e banalizado desse fundamento da república tão importante.
Dessa forma, seja reconhecendo direitos LGTBI, seja promovendo a plena liberdade de conformação familiar, o STF tem cumprido bem o seu papel hermenêutico e de guardião da Constituição ao dar vida à direitos fundamentais que, em outros tempos, ficariam “presos” ao papel indefinidamente[2]. Desse modo, já se pode afirmar que em razão do princípio da vedação ao retrocesso social, os julgados pelo Supremo acima listados se encontram em uma forte posição de estabilidade, o que é ótimo para o Estado de Direito brasileiro. Todavia, quanto mais proteção melhor, cabendo à sociedade avançar no debate, contribuindo, assim, para tirar a “PEC da felicidade” da gaveta e positivar de vez como cláusula pétrea esse valioso instrumento de proteção do ser humano e de uma sociedade livre, igual e dinâmica.
Referências bibliográficas
ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Por um direito de família mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia privada no âmbito do direito de família. 2009. Dissertação de mestrado - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Belo Horizonte, 2009. Orientador: Walsir Edson Rodrigues Júnior. pag.58
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 7ªed. Ver. E atual. – São Paulo: Saraiva, 2016.
NETTO, Ernesto Silveira. A busca da felicidade no âmbito do direito de família e sucessões. Site do IBDFAM, 23/07/2018. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1286/A+busca+da+felicidade+no+%C3%A2mbito+do+Direito+de+Fam%C3%ADlia+e+Sucess%C3%B5es Acesso em 23/03/2021.
PATERNIDADE socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico, decide STF, Notícias STF, 21/09/2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325781 Acesso em 23/03/2021
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Direito de Família - Vol. V/ Atual. Tânia da Silva Pereira, 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
PROPOSTA DE Emenda à Constituição n° 19/2010. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/97622 Acesso em 23/03/2021.
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: Conteúdo, trajetórias e metodologia. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
VALLE, João Paulo Lawall. A Dignidade Humana e o seu conteúdo mínimo. 22/04/2014. EBEJI Conhecimento jurídico. Disponível em: https://blog.ebeji.com.br/a-dignidade-humana-e-o-seu-conteudo-minimo/#:~:text=Para%20Lu%C3%ADs%20Roberto%20Barroso%20o,A%20autonomia%20de%20cada%20indiv%C3%ADduo%3B&text=O%20segundo%2C%20por%20sua%20vez,indiv%C3%ADduo%20e%20n%C3%A3o%20o%20contr%C3%A1rio.
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[1] Para o Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ, Daniel Sarmento, a dignidade compreende o mínimo existencial, o valor intrínseco do indivíduo, o reconhecimento e a autonomia.
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