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A regulação jurídica das vulnerabilidades esquecidas
A regulação jurídica das vulnerabilidades esquecidas
Jones Figueirêdo Alves
Muito pouco foi tratado, até então, sobre a categoria de um grupo de pessoas vulneráveis, as que se encontram sob a herança da perda dos seus pais ou de seus provedores, vitimados uns e outros pelos crimes dolosos contra eles praticados, e que se colocam, daí, fragilizadas e desprotegidas, com a denominação de “herdeiros carentes” segundo a leitura do art. 245 da Constituição Federal.
Foi preciso ser ajuizada, afinal, a ADO 62, no último dia 1o de março, perante o Supremo Tribunal Federal (01), em busca de regulamentação da norma constitucional para, nessa realidade omissiva aberta à discussão da sociedade, dar-lhes a devida e urgente visibilidade jurídica. E, designadamente, de tudo que convém regulamentar a proteção a esse grupo vulnerável, nas pessoas individualmente consideradas, também ser garantida, nesse propósito de ordem legal, uma efetividade protetiva plena e eficaz.
Iniludível e desafiador reconhecer a necessidade de uma sólida teoria das vulnerabilidades para identificar, situar e mapear referidos herdeiros carentes em uma percepção perfeita do “ser vulnerável” e de se estabelecer, de conseguinte, políticas públicas satisfatórias que assegurem resultado útil na solução sociojurídica adequada em favor deles.
Diante de tais premissas, convoca-se (i) conceituar as vulnerabilidades e (ii) sublinhar o primado da elevada responsabilidade regulatória no tema constitucional em comento. Nesse serviço, impõe-se, com todo acerto e destaque, assinalar, antes de mais, que:
(i) “a tutela das vulnerabilidades foi levada a sério no direito brasileiro a partir do momento em que o ordenamento jurídico colocou a pessoa humana em seu centro de proteção e promoção” (...) e que “o reconhecimento da vulnerabilidade de alguns grupos é a forma de se concretizar uma tutela positiva, já que a simples proibição da discriminação se demonstrou insuficiente para a promoção da igualdade substancial de certas pessoas, sendo necessário ações afirmativas no sentido de editar leis especiais para a proteção a esses grupos” (Brochado Teixeira e Carla Moutinho, 2021) (02);
(ii) Nesse valioso contexto doutrinário reportado, segue-se, então, reconhecer que o suprimento das necessidades especificas, por leis especiais, de cada grupo vulnerável identificado, como os das crianças e dos adolescentes, idosos, pessoas com deficiência e mulheres sob violência doméstica, está a exigir, sempre, uma tutela jurídica integral, sob pena de a proteção constitucional quedar-se inerte e/ou deficitária, falhando o Estado nos seus inerentes deveres de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.
A esse propósito, torna-se indiscutível que “ao não proteger suficientemente tais direitos, o Estado viola a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot)” (Patrícia Chambers Ramos, 2018) (03).
De fato. O “Untermassverbot”, termo extraído da doutrina constitucional alemã, com ampla repercussão em outras áreas de direito (v.g. penal e civil), tem-se constatado todas as vezes quando o Estado não legisla, adequadamente, a proteção de determinado direito fundamental, implicando uma notória deficiência.
E bem dizer que as obrigações de Estado não devam ser prestadas aquém do necessário integral, porque se assim forem, estará o Estado incorrendo em proteção deficiente, a não se permitir ou tolerar. Qualquer que seja a deficiência de uma prestação legislativa impostergável, o elemento da insuficiência resultará na desproteção dos bens jurídicos fundamentais tuteláveis.
Esse dever de proteção integral tem sido entendido como “imperativo de tutela”, conforme a doutrina de Souza Neto e de Daniel Sarmento (04), e bem exposta no RE 57.854, segundo o voto do ministro Luiz Fux. Ou seja, diante da dimensão objetiva consagrada aos direitos fundamentais, transcende-se a dimensão subjetiva que antes os orientava para dotar todo o sistema jurídico de leis especiais que assegurem a proteção adequada. Uma atuação omissiva ou insuficiente do Estado exige o controle da inconstitucionalidade por omissão ou em casos que tais do art. 245, CF, também o próprio manejo injuncional para assegurar a proteção reclamada.
Dessa forma, forçoso admitir que em termos do que preconiza o art. 245 da Carta Magna, são insuficientes, de fato, as proposições legislativas então apresentadas, como refere, em sua petição inicial, a ADO 62. (05)
No ponto, convém realçar que o PLS nº 518/2013, apresentado para regulamentar o art. 245 da Constituição Federal e estabelecer, nessa diretiva, o “Estatuto da Vítima e de seus dependentes”, foi arquivado ao final da legislatura (31.12.2018), nos termos do art. 332 do Regimento Interno do Senado federal. (06).
Lado outro, o PL nº 3.503/2004 (de autoria do senador José Sarney, na origem o PLS 269/2003) em tramitação atual na Câmara dos Deputados paralisado desde 18.08.2015 com a criação de uma Comissão Especial, “define os direitos das vítimas de ações criminosas e regulamenta o art. 245 da Constituição Federal, para criar o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos (Funav), além de outras providências.” (07)
Ao referido projeto, estão apensados diversos outros, destacando-se o PL n° 7.012/2002, que dispõe sobre “medidas de assistência e atendimento às vítimas de violência; (08); o PL n. 1.115/2007, que “determina o pagamento de indenização pelo Estado e concede isenção de imposto de renda para a vítima e seus familiares”; o PL n. 2.575/2015, que impõe ao homicida a obrigação de pagamento de pensão alimentícia para filhos, cônjuge ou companheiro da vítima; o PL n. 430/2007, estabelecendo que “a União concederá indenização à vítima de crime violento quando o autor do crime for desconhecido ou não tiver bens para fazê-lo, aplicando recursos do Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN;” valendo, ainda, destacar o PL n. 2143/2003, que Institui o Fundo de Auxílio Financeiro à Pessoa Vítima de Crime Praticado com Arma de Fogo.
Como se observa, não há negar a importância dos projetos de lei antes referidos quando tratam da assistência pública às vítimas de crimes dolosos graves e/ou de seus familiares. Designadamente, o PLS nº 269 (atual PL n. 3.503/2004), ao cogitar de uma assistência estatal mais imediata e eficaz, a minimizar os danos do delito, como resultado mínimo e urgente de proteção.
O projeto institui uma assistência financeira que “consistirá no pagamento de quantia única à vítima ou a seus herdeiros e dependentes carentes, dispensando se, para esse fim, a comprovação da autoria do crime ou o pronunciamento final das instâncias de persecução criminal.” (art. 4º, inciso IV).
Mas não é só. Ao referir o art. 245, C.F., que “a lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso”, impende observar que o FUNAV - Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos – não se apresenta suficiente a exaurir essa regulação.
Mecanismos outros devem ser assegurados à imediata efetividade de implemento aos direitos dos herdeiros e dependentes carentes à uma devida assistência integral.
No ponto, o valor de benefício financeiro, por exemplo, não deve ser tarifado, devendo guardar a sua devida conformidade com a inteligência do próprio artigo 1.694 do Código Civil, quando o Estado se substituirá ao provedor, devendo, portanto, assegurar aos referidos herdeiros e dependentes carentes”, alimentos “de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Em outro giro, a regra constitucional do art. 245, C.F., ao tratar da “prestação assistência”, não pode ser entendida, restritivamente ao suporte financeiro dos desassistidos. A assistência aos vulneráveis, nessa espécie, colima uma proteção integral, ou seja, a proteção quanto bastante, como a Constituição Federal assim também reserva como cláusula protetiva aos demais grupos vulneráveis.
Como aludiu Mauro Cappeletti referido por Fernanda Tartuce (09):
“a nossa é a época do direito responsabilizado, do direito não separado da sociedade, mas intimamente ligado a ele, às suas necessidades, às suas demandas, ao grito de esperança, mais ´espesso´ diante dos justos protestos e das dores que vêm da sociedade”
Pois bem. Um direito responsabilizado, em verdade, resulta proteger a vulnerabilidade dos herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos, em face das suas mais diversas relações jurídico-sociais, pelo que as condições de assistência que devam ser prestadas pelo Estado alcancem maiores latitudes, programadas nas leis especiais. Esse é um trabalho legisferante.
Aqui, cumpre assinalar que a ausência de leis específicas não se trata de uma opção política de não legislar, porquanto os direitos desse segmento vulnerável são inalienáveis e fundamentais, a saber que o ditame do art. 245 da CF é incisivo sobre a necessidade de edição da lei (“a lei disporá...”). Todavia, malgrado esse comando, omitiu-se a Constituição de fixar prazo determinado para o exercício da iniciativa reservada, cabendo agora, para os efeitos do art. 245, C.F., ao STF pronunciar-se a respeito.
Enquanto isso, algumas reflexões iniciais aqui são imediatamente postas, em potencial de colaboração:
(i) Reflete-se, a toda evidência, que os grupos vulneráveis compõem famílias, em todos os seus fenômenos jurídicos e sociais, a exemplo de crianças, adolescentes, idosos, pessoas descapacitadas, mulheres sob violência doméstica, o que configura, inegavelmente, a vis atrativa, do direito de família, para influir e contribuir em todas as dimensões dos respectivos problemas;
(ii) o art. 245 do CC deve refletir um título autônomo, na configuração de um preceito constitucional até agora descumprido, e em razão de sua importância, embora medidas jurídicas especiais sejam cabíveis de caso concreto, reclama prioritariamente a solução legislativa cabível, com a contribuição de toda a sociedade civil e jurídica, representativa por suas instituições e academias, notadamente o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM);
(iii) Reflexão importante se impõe, extraída da Justificativa ao Projeto de Lei n. PL n. 430/2007, nos seguintes termos:
“Vítimas de delitos tem padecido de constante abandono desde que o sistema penal substituiu a vingança privada pela intervenção pública nos conflitos penais. Isto se dá devido ao afastamento do Estado do problema social e comunitário originado pelo delito. Tal distância sistemática leva cada vez mais o desinteresse do sistema penal, vale dizer, do Estado pela vítima, tanto em termos de atendimento pessoal e familiar como de reparação de danos.
Não bastando os sofrimentos próprios do abandono social, a vítima fica penalizada pelos efeitos econômicos restritivos do delito. Mesmo que a luta contra a criminalidade constitua, para o Estado, uma obrigação de meios e não de resultado impõe-se, ainda assim, a solidariedade social do mesmo em favor das vítimas de crimes violentos”
(iv) um capítulo próprio deve ser dado ao problema da violência letal contra as mulheres, quando os órfãos do feminicídio podem ser havidos como filhos do Estado. A questão se apresenta cabível, nos fins do art. 245 da C.F. à exata medida onde o Estado falha na proteção das vítimas dos crimes do tipo. Chama-se a atenção do legislador, a exemplo de destinar-lhes uma mãe social, cuja regulamentação dada pela Lei nº 7.644, de 18.12.1987, deveria(á) contemplar essa hipótese de orfandade. “Em muitos casos as crianças perdem a mãe, assassinada, e o pai, que vai preso. Mas não há rede de proteção para que famílias se reorganizem” (Instituto Humanitas Unisinos, 2020). Segundo o I.H.U., o país tem cerca de dois mil órfãos do feminicídio por ano.
(v) Para efeito de eficiência de desempenho na prestação assistencial devida pelo Estado e/ou responsáveis diretos, cuida-se nos exatos termos da regulação do art. 245, C.F., conveniente a criação de Juizados Especiais de Família Assistenciários, onde por via administrativa ou judicial ali poderão ser resolvidas as questões da assistência social aos herdeiros e dependentes carentes.
(vi) Abre-se inequívoco espaço para a figura do amicus curiae, ou amigo da corte, instituída no país com a Lei 9.868/99. A intervenção representativa ganhou maior funcionalidade com o Código de Processo Civil e tem demonstrado o quanto tem sido útil para contribuir com a qualidade dos julgamentos.
No caso da ADO 62, inconteste a transcendência da lide que não deve se limitar às partes do processo, diante do que dispõe o art. 138 do C.P.C. e considerando a relevância da matéria, afiguram-se atendidos os pressupostos para efeito de admissão do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). A especificidade temática da lide alcança o seu amplo trabalho doutrinário e institucional exercido junto à comunidade jurídica e aos tribunais.
É com essa introdução que o IBDFAM deve se apresentar como “amicus curiae”, em face da ADO 62, perante o STF.
Afinal, todas as famílias são sagradas famílias, inclusive aquelas formadas por herdeiros carentes de vítimas de crimes, também atingidos na sacralidade de suas dignidades de pessoa, merecendo, portanto, a proteção do Estado. O IBDFAM diz sim.
Anotações:
(01) Web:
(02) BROCHADO TEIXEIRA, Ana Carolina. MOUTINHO NERY, Maria Carla. Vulnerabilidade Digital de Crianças e Adolescentes: a importância da autoridade parental para uma educação nas redes. In: EHRARDT JR. Marcos. LOBO, Fabíola (Org.) Vulnerabilidade e sua compreensão no direito brasileiro. Indiatuba (SP): Ed. Foco, 216 p., pp. 133-147.
(03) CHAMBERS RAMOS, Patrícia Pimentel de Oliveira. A Reparação Mínima em favor da Vítima de Crimes Violentos e a Atuação do Ministério Público. In: http://www.mprj.mp.br/documents/20184/1275172/Patricia_Pimentel_de_Oliveira_Chambers_Ramos.pdf
(04) SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013;
(05) ALVES, Jones Figueirêdo. Herdeiros carentes de vitímas de crimes são famílias desprotegidas. In: Consultor Jurídico, 07.03.2021. Web: https://www.conjur.com.br/2021-mar-07/processo-familiar-herdeiros-carentes-vitimas-crimes-sao-familias-desprotegidas
(06) PLS n. 518/2013. Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3851460&ts=1594021626692&disposition=inline
(07) https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=216684&filename=PL+3503/2004
(08) Web https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=57088&filename=PL+7012/2002
(09) TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012, 391 p.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico – Conjur, em 14.03.2021.
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