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Direitos sociais, transexualidade e princípio da dignidade da pessoa humana: uma análise interdisciplinar
1. Introdução. 2. A sexualidade e a questão de gênero. 3. Sexo: suas definições e diferenças. 4. O transexual como pessoa do sexo oposto e a cirurgia transgenital. 5. Análise das questões judiciais relacionadas ao transexual: da autorização para cirurgia à retificação do prenome e sexo jurídico. 6. Direitos sociais, princípio da dignidade da pessoa humana e a transexualidade. 6.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 7. Considerações finais. 8. Referências bibliográficas
1. INTRODUÇÃO
Faz muito tempo que a transexualidade vem sendo tratada nos Tribunais de Justiça pátrios. No mundo, a cirurgia de mudança de sexo já é aceita em vários países, inclusive no Brasil, após a Resolução do Conselho Federal de Medicina, datada do ano de 1997. O estudo sobre a transexualidade, principalmente após Freud, também tem reacendido diversas discussões, trazendo à baila conceitos, preconceitos e traumas enraizados na mente humana.
A dicotomia em relação ao direito de adequação social de uma minoria diferente daquela que se padroniza como normal é o centro do debate. Esse artigo aproveita a oportunidade de realização deste Fórum - privilegiado para o debate dos direito sociais – para levantar o polêmico tema, alertando sobre a problemática psico-jurídica-social encontrada pelo transexual em sua vida cotidiana, desmistificando conceitos enraizados, com amparo no Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.
Para a consecução deste artigo foi utilizado o método indutivo, operacionalizado pelas técnicas da pesquisa bibliográfica, do fichamento e do referente.
Espera-se que a sociedade se sensibilize com a questão da transexualidade e todos os debates co-relacionados, buscando colocar a felicidade e dignidade de todos os seres humanos acima dos valores arcaicos e retrógrados enraizados na sociedade brasileira e no mundo.
2. A SEXUALIDADE E A QUESTÃO DE GÊNERO
A sexualidade passa pelo conhecimento do gênero humano, diferença entre masculino e feminino na sociedade ocidental. Em um desses entendimentos defende-se que essa divisão faz parte do processo de seleção natural e evolução das relações familiares.
Cada tipo de sociedade trabalha a sexualidade de forma diferente. As características tidas como masculinas e femininas mudam de acordo com cada comunidade e seus períodos históricos, sendo o sexo, em grande parte, aprendido e não meramente biológico.
Assim, não se pode falar em determinismo biológico, ou seja, inclinações biológicas determinantes quanto às características do gênero. Tudo pode ser compreendido como processo de aculturamento, conceito empregado pelos autores citados na pesquisa, em especial Maed apud Peres [2001].
Já aquelas pessoas que estão fora do padrão estabelecido pela sociedade são os chamados socialmente inadaptados. Essa minoria não é vista pela maioria excludente. O que não é normal não pode existir, pensa a maioria.
2.1 Modificação histórico-social dos papéis sexuais.
Na evolução histórica da sociedade, percebe-se a mudança de paradigmas relacionados às diferenças em relação ao sexo e à sexualidade burguesa ocidental.
Antes o homem era tido como o chefe da casa e proprietário de todas as pessoas que dela faziam parte. Hoje, o conceito de propriedade dentro da família foi alterado. A mulher e os filhos deixam de ser considerados “coisas” e passam a ser respeitados como pessoas. A felicidade passa a ser o norte de todas as relações interpessoais, incluindo também o casamento.
Vale destacar que todas as definições ocidentais de comunidade ou núcleo familiar estabelecem a união apenas entre homem e mulher com o objetivo de regular as relações sexuais entre o casal e a sociedade, bem como a sobrevivência dos indivíduos que fazer parte da família.
Entretanto, o instituto do casamento não tem mais a força anterior. A busca do prazer (inclusive o feminino) começa a traçar as relações amorosas. O casamento deixa de ser visto como o regulador das relações sexuais, pois o sexo começa a ser compreendido como algo além da procriação.
Saindo a sexualidade dos padrões comum, abre-se a discussão para os sexualmente “inadaptados”. Homossexuais, bissexuais, assexuados, travestis, transexuais saem da obscuridade e ganham as ruas e centros de debates. Os conceitos enraizados de família e vida sexual modificam-se; a sociedade agora é chamada para se enquadrar nesses novos conceitos, respondendo às atuais demandas trazidas pelas mudanças.
3. SEXO: SUAS DEFINIÇÕES E DIFERENÇAS.
O sexo pode ser definido como o status “homem” e “mulher” tanto na qualidade do estado biológico como nas características secundárias.
Entretanto, as atribuições “masculinas” e “femininas" são encontradas em todas as pessoas, pois o gênero é um estado psicológico. O sexo visível no nascimento de uma criança não está necessariamente interligado com a sua identidade de gênero, posto que as experiências pós-natais podem sobrepujar tendências biológicas cromossomáticas estabelecidas.
Para evidenciar a complexidade da sexualidade, Peres [2001] divide o sexo em genético, gonádico, somático, legal ou civil, de criação e psicossocial. Nesta divisão, a autora comprova que não apenas os fatores biológicos interferem na formação da identidade de gênero de uma pessoa.
4. O TRANSEXUAL COMO PESSOA DO SEXO OPOSTO E A CIRURGIA TRANSGENITAL.
O transexual considera-se membro do sexo oposto, não se compreendendo como homossexual. Seus órgãos genitais e aparelho reprodutor são perfeitamente normais. O transexual estaria inserido em uma das desordens da identidade de gênero. Desejam a mudança para adaptação entre seu sexo biológico e o psicossocial. Não utilizam sua genitália para seus relacionamentos sexuais, onde seus órgãos genitais não constituem centro erógeno, não tendo ereção, no caso do transexual masculino.
Definem-se como pessoas presas no corpo de outra, podendo chegar à automutilação para buscar a adequação de seu sexo e a extirpação de um aparelho sexual que não lhe pertence, ou seja, seu sexo biológico está desassociado com o sexo psicossocial.
Em razão deste sentimento de inadequação vive na infelicidade, pois não se aceita como pessoa do sexo em que nasceu e a sociedade não o aceita por apresentar uma identidade sexual e características diferentes do seu sexo biológico. Busca, através da cirurgia de mudança de sexo, a felicidade que tanto busca, o conforto social e um lugar na sociedade.
A cirurgia transgenital, apesar da discussão ainda presente na sociedade brasileira, há muito tem sido feita no mundo através dos anos. Reconhecida pelos psicólogos, psicanalistas e Conselho Federal de Medicina como o único tratamento para buscar a adequação social do transexual, há anos vem sendo praticada no Brasil. Chegou à legalidade com a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1482/1997, que trazia a cirurgia tanto masculino para feminino, como feminino para masculino, em caráter experimental, em hospitais públicos e Universidades.
Com a evolução do tratamento do transexual, é editada a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1652/2002, permitindo que a cirurgia masculino para feminino seja também realizada em hospitais particulares, com os mesmos requisitos exigidos e acompanhamento de equipe multidisciplinar.
5. ANÁLISE DAS QUESTÕES JUDICIAIS RELACIONADAS AO TRANSEXUAL: DA AUTORIZAÇÃO PARA CIRURGIA À RETIFICAÇÃO DO PRENOME E SEXO JURÍDICO.
Apesar de todo o avanço na área médica, a questão jurídica ainda é tida como um empecilho para adequação do transexual operado na sociedade.
As decisões prolatadas pelos órgãos do Poder Judiciário deixam o transexual na incerteza jurídica, contrariando a base do Estado Democrático de Direito. A incerteza jurídica ainda está presente nos julgados colhidos em pesquisa jurisprudencial, realizado pela UNIVALI, não obstante terem modificações sensíveis em vários entendimentos dos Tribunais de Justiça colhidos nos últimos anos, em relação aos períodos anteriores.
Resta também evidenciado que as decisões de primeira instância são geralmente a favor do pedido de alteração dos documentos do transexual, sendo que o Ministério Público tem, em vários momentos, se insurgindo contra essas decisões.
Os juristas que compreendem a transexualidade desprovidos de preconceitos buscam nos princípios constitucionais, em especial, o da dignidade humana e nos direitos da personalidade, fundamentos jurídicos para deferir os pedidos de alteração do prenome e do sexo jurídico no assento de nascimento.
Entretanto, outros julgados vão no sentido de manter o prenome e sexo nos documentos do transexual operado, apesar de já estar com todas as características exteriores do outro sexo, baseados apenas no sexo biológico, na visão do sexo apenas para procriação dentro do casamento e na proibição da alteração do assento de nascimento das pessoas.
O ponto fundamental da vedação da alteração e o resultado trazido Poe ela é colocado por Araújo [2000]: o Estado impede ao transexual sua integração a sociedade sob o fundamento do sexo procriação. Evidencia que os valores morais ainda arraigados na sociedade moderna levam o interprete do direito a desconsiderar a questão do transexual, o que não envolve apenas opção sexual, mas um quadro psicológico bem estabelecido como desvio da identidade de gênero.
6. DIREITOS SOCIAIS, PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A TRANSEXUALIDADE.
Na análise dos princípios constitucionais encontra-se a necessidade de verificar o sistema que eles estão inseridos e como devem ser analisados dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Isto posto, conceitua-se sistema como “[…] a reunião ordenada das várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras” [CARAZZA,1997, p. 30].
Araújo [2000, p. 85] traz que a Constituição Federal deve ser compreendida como “[…] um sistema aberto de regras e princípios”, não podendo ser concebido um sistema jurídico somente formado por regras, pois “[…] este, embora pudesse ser considerando um “sistema de segurança”, não permitiria a sua própria complementação e desenvolvimento” [ARAÚJO, 2000, p. 85].
Carazza [1997, p. 31] conceitua princípio jurídico como:
[…] um enunciado lógico, implícito ou explícito que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.
O pensamento contemporâneo não pode mais ser concebido caso não esteja fundamentado nos princípios do ordenamento jurídico e os valores ditados pela sociedade. O fim da norma deve ter sempre em consideração o objetivo social e a felicidade do ser humano, não mais valendo o interesse de poucos sobre o bem estar dos outros.
Quanto aos princípios estabelecidos como normas, Espíndola [1999, p. 73] evidencia que estes têm como função dar fundamento material e formal aos “[…] subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa”, onde os princípios constitucionais, estabelecidos como norma, devem ser considerados como normas supremas do ordenamento jurídico. Concluí Carazza [1997, p. 32/33]:
Nenhuma interpretação poderá ser havida por boa (e, portanto, por jurídica) se, direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio jurídico-constitucional.
Pinho [2001, p. 53] define princípios fundamentais como “[…] as regras informadoras de todo um sistema de normas, as diretrizes básicas do ordenamento constitucional brasileiro”. Um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana, o qual se trabalhará no próximo tópico separadamente.
6.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
A Carta Magna traz o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos pilares da República Federativa do Brasil. Juntamente com a soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo jurídico, fazem parte dos fundamentos, princípios inerentes ao próprio Estado Brasileiro, elencados no art. 1º da CRFB. Diferentemente dos objetivos fundamentais do Estado, propostos no art. 3º da CRFB.
Os princípios inerentes ao Estado Brasileiro são considerados os valores primordiais, imediato, os quais nunca podem ser deixados de lado, como preceitua Bastos [1998, p. 157].
Dentre os fundamentos, destaca-se a dignidade da pessoa humana. Moraes [2003, p. 50] leciona sobre o referido princípio:
[…] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos;
“O princípio jurídico da proteção a dignidade da pessoa humana tem como núcleo essencial à idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentaliza ou descartá-la […]” [RIOS, 2001, p. 89], pois lhe são atribuídas características que lhe individualiza e representa uma identidade pessoal.
O reconhecimento da dignidade humana é elemento essencial na sociedade conceituada como um Estado Democrático de Direito, “[…] que promete aos indivíduos, muito mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades” [RIOS, 2001, p. 91].
A leitura de toda legislação e normas estabelecidas socialmente devem ter como norte a dignidade da pessoa humana, inclusive para sua aplicação aos casos concretos levados ao conhecimento do Poder Judiciário. Qualquer decisão dos tribunais que firam a dignidade de qualquer pessoa necessita ser reformada, posto que se confronta com um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mudança do sexo aparente para sua adequação ao sexo psicossocial no transexual é visto como o único tratamento que permite uma vivência digna em sociedade. Desvio de gênero, determinismo biológico, vários eixos de debates podem ser levantados em um tema tão polêmico. Entretanto, vale destacar que essa minoria, que enfrenta a diferença entre o sexo biológico e o psicossocial, está se destacando no cenário social, levando pretensas demandas ao Poder Judiciário como forma de garantia de direitos fundamentais atingidos.
Os julgamentos, dada a incerteza jurídica que cercam os seus resultados, fazem com que o transexual tenham seus direitos violados. Com certeza, os juristas prolatores das decisões não compreendem como o julgamento que fazem negando a alteração na certidão nascimento de seu prenome e sexo jurídico mantém o transexual em uma situação incômoda pelo resto de sua vida, não ocorrendo adaptação deste ao seu meio social, estando sempre deslocado e visto com preconceito pelos seus pares. Nunca será feliz porque cada vez que apresentar seus documentos para buscar um trabalho, ingressar em qualquer dos níveis de ensino ou comprar um imóvel será lembrado que seu sexo biológico e jurídico está em desacordo com seu sexo psicossocial e sua aparência exterior, sendo olhado com desprezo e repugnância pelos demais.
O problema está no fato que o senso comum desconsidera as minorias e os problemas são enfrentados por estes. Apesar de ser intitulado como seres humanos, tal concepção visando a exclusão e, como conseqüência, a infelicidade das pessoas não é levada em consideração, mesmo já estando bem definido pelas áreas médicas e psicológicas que a cirurgia de mudança de sexo é o tratamento adequado para adaptação social do transexual na sociedade.
Com essa falta de regulamentação e inúmeras decisões proferidas vedando a adequação social do transexual, constata-se que o direito fundamental da sobrevivência em sociedade e o princípio da dignidade da pessoa humana estão sendo violados reiteradamente.
Nesse novo momento social, com o renascimento do debate sobre humanismo e direitos sociais, sensibilizar sobre o papel do jurista e aplicador do Direito para esse tema se torna essencial. Não há como ignorar essa demanda social nascida com o debate sobre sexualidade em pleno desenvolvimento na sociedade ocidental. Buscar meios de adequação do transexual na sociedade, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, é um objetivo a ser traçado por toda a população brasileira, seja com a alteração do prenome e do sexo jurídico, seja com o combate aos preconceitos enraizados na comunidade.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. 162p.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo; Saraiva, 1998. 499p.
CARAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Consitucional Tributário. 9 ed. ver. e amp. São Paulo: Malheiros, 19897. 576p.
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceitos de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 274p.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003. 836p.
PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: O Direito a uma nova Identidade Sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 289p.
PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais. 2 ed. Ver. São Paulo: Saraiva, 2001. Col. Sinopses Jurídicas. 190p. 17 v.
1. INTRODUÇÃO
Faz muito tempo que a transexualidade vem sendo tratada nos Tribunais de Justiça pátrios. No mundo, a cirurgia de mudança de sexo já é aceita em vários países, inclusive no Brasil, após a Resolução do Conselho Federal de Medicina, datada do ano de 1997. O estudo sobre a transexualidade, principalmente após Freud, também tem reacendido diversas discussões, trazendo à baila conceitos, preconceitos e traumas enraizados na mente humana.
A dicotomia em relação ao direito de adequação social de uma minoria diferente daquela que se padroniza como normal é o centro do debate. Esse artigo aproveita a oportunidade de realização deste Fórum - privilegiado para o debate dos direito sociais – para levantar o polêmico tema, alertando sobre a problemática psico-jurídica-social encontrada pelo transexual em sua vida cotidiana, desmistificando conceitos enraizados, com amparo no Princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.
Para a consecução deste artigo foi utilizado o método indutivo, operacionalizado pelas técnicas da pesquisa bibliográfica, do fichamento e do referente.
Espera-se que a sociedade se sensibilize com a questão da transexualidade e todos os debates co-relacionados, buscando colocar a felicidade e dignidade de todos os seres humanos acima dos valores arcaicos e retrógrados enraizados na sociedade brasileira e no mundo.
2. A SEXUALIDADE E A QUESTÃO DE GÊNERO
A sexualidade passa pelo conhecimento do gênero humano, diferença entre masculino e feminino na sociedade ocidental. Em um desses entendimentos defende-se que essa divisão faz parte do processo de seleção natural e evolução das relações familiares.
Cada tipo de sociedade trabalha a sexualidade de forma diferente. As características tidas como masculinas e femininas mudam de acordo com cada comunidade e seus períodos históricos, sendo o sexo, em grande parte, aprendido e não meramente biológico.
Assim, não se pode falar em determinismo biológico, ou seja, inclinações biológicas determinantes quanto às características do gênero. Tudo pode ser compreendido como processo de aculturamento, conceito empregado pelos autores citados na pesquisa, em especial Maed apud Peres [2001].
Já aquelas pessoas que estão fora do padrão estabelecido pela sociedade são os chamados socialmente inadaptados. Essa minoria não é vista pela maioria excludente. O que não é normal não pode existir, pensa a maioria.
2.1 Modificação histórico-social dos papéis sexuais.
Na evolução histórica da sociedade, percebe-se a mudança de paradigmas relacionados às diferenças em relação ao sexo e à sexualidade burguesa ocidental.
Antes o homem era tido como o chefe da casa e proprietário de todas as pessoas que dela faziam parte. Hoje, o conceito de propriedade dentro da família foi alterado. A mulher e os filhos deixam de ser considerados “coisas” e passam a ser respeitados como pessoas. A felicidade passa a ser o norte de todas as relações interpessoais, incluindo também o casamento.
Vale destacar que todas as definições ocidentais de comunidade ou núcleo familiar estabelecem a união apenas entre homem e mulher com o objetivo de regular as relações sexuais entre o casal e a sociedade, bem como a sobrevivência dos indivíduos que fazer parte da família.
Entretanto, o instituto do casamento não tem mais a força anterior. A busca do prazer (inclusive o feminino) começa a traçar as relações amorosas. O casamento deixa de ser visto como o regulador das relações sexuais, pois o sexo começa a ser compreendido como algo além da procriação.
Saindo a sexualidade dos padrões comum, abre-se a discussão para os sexualmente “inadaptados”. Homossexuais, bissexuais, assexuados, travestis, transexuais saem da obscuridade e ganham as ruas e centros de debates. Os conceitos enraizados de família e vida sexual modificam-se; a sociedade agora é chamada para se enquadrar nesses novos conceitos, respondendo às atuais demandas trazidas pelas mudanças.
3. SEXO: SUAS DEFINIÇÕES E DIFERENÇAS.
O sexo pode ser definido como o status “homem” e “mulher” tanto na qualidade do estado biológico como nas características secundárias.
Entretanto, as atribuições “masculinas” e “femininas" são encontradas em todas as pessoas, pois o gênero é um estado psicológico. O sexo visível no nascimento de uma criança não está necessariamente interligado com a sua identidade de gênero, posto que as experiências pós-natais podem sobrepujar tendências biológicas cromossomáticas estabelecidas.
Para evidenciar a complexidade da sexualidade, Peres [2001] divide o sexo em genético, gonádico, somático, legal ou civil, de criação e psicossocial. Nesta divisão, a autora comprova que não apenas os fatores biológicos interferem na formação da identidade de gênero de uma pessoa.
4. O TRANSEXUAL COMO PESSOA DO SEXO OPOSTO E A CIRURGIA TRANSGENITAL.
O transexual considera-se membro do sexo oposto, não se compreendendo como homossexual. Seus órgãos genitais e aparelho reprodutor são perfeitamente normais. O transexual estaria inserido em uma das desordens da identidade de gênero. Desejam a mudança para adaptação entre seu sexo biológico e o psicossocial. Não utilizam sua genitália para seus relacionamentos sexuais, onde seus órgãos genitais não constituem centro erógeno, não tendo ereção, no caso do transexual masculino.
Definem-se como pessoas presas no corpo de outra, podendo chegar à automutilação para buscar a adequação de seu sexo e a extirpação de um aparelho sexual que não lhe pertence, ou seja, seu sexo biológico está desassociado com o sexo psicossocial.
Em razão deste sentimento de inadequação vive na infelicidade, pois não se aceita como pessoa do sexo em que nasceu e a sociedade não o aceita por apresentar uma identidade sexual e características diferentes do seu sexo biológico. Busca, através da cirurgia de mudança de sexo, a felicidade que tanto busca, o conforto social e um lugar na sociedade.
A cirurgia transgenital, apesar da discussão ainda presente na sociedade brasileira, há muito tem sido feita no mundo através dos anos. Reconhecida pelos psicólogos, psicanalistas e Conselho Federal de Medicina como o único tratamento para buscar a adequação social do transexual, há anos vem sendo praticada no Brasil. Chegou à legalidade com a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1482/1997, que trazia a cirurgia tanto masculino para feminino, como feminino para masculino, em caráter experimental, em hospitais públicos e Universidades.
Com a evolução do tratamento do transexual, é editada a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1652/2002, permitindo que a cirurgia masculino para feminino seja também realizada em hospitais particulares, com os mesmos requisitos exigidos e acompanhamento de equipe multidisciplinar.
5. ANÁLISE DAS QUESTÕES JUDICIAIS RELACIONADAS AO TRANSEXUAL: DA AUTORIZAÇÃO PARA CIRURGIA À RETIFICAÇÃO DO PRENOME E SEXO JURÍDICO.
Apesar de todo o avanço na área médica, a questão jurídica ainda é tida como um empecilho para adequação do transexual operado na sociedade.
As decisões prolatadas pelos órgãos do Poder Judiciário deixam o transexual na incerteza jurídica, contrariando a base do Estado Democrático de Direito. A incerteza jurídica ainda está presente nos julgados colhidos em pesquisa jurisprudencial, realizado pela UNIVALI, não obstante terem modificações sensíveis em vários entendimentos dos Tribunais de Justiça colhidos nos últimos anos, em relação aos períodos anteriores.
Resta também evidenciado que as decisões de primeira instância são geralmente a favor do pedido de alteração dos documentos do transexual, sendo que o Ministério Público tem, em vários momentos, se insurgindo contra essas decisões.
Os juristas que compreendem a transexualidade desprovidos de preconceitos buscam nos princípios constitucionais, em especial, o da dignidade humana e nos direitos da personalidade, fundamentos jurídicos para deferir os pedidos de alteração do prenome e do sexo jurídico no assento de nascimento.
Entretanto, outros julgados vão no sentido de manter o prenome e sexo nos documentos do transexual operado, apesar de já estar com todas as características exteriores do outro sexo, baseados apenas no sexo biológico, na visão do sexo apenas para procriação dentro do casamento e na proibição da alteração do assento de nascimento das pessoas.
O ponto fundamental da vedação da alteração e o resultado trazido Poe ela é colocado por Araújo [2000]: o Estado impede ao transexual sua integração a sociedade sob o fundamento do sexo procriação. Evidencia que os valores morais ainda arraigados na sociedade moderna levam o interprete do direito a desconsiderar a questão do transexual, o que não envolve apenas opção sexual, mas um quadro psicológico bem estabelecido como desvio da identidade de gênero.
6. DIREITOS SOCIAIS, PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A TRANSEXUALIDADE.
Na análise dos princípios constitucionais encontra-se a necessidade de verificar o sistema que eles estão inseridos e como devem ser analisados dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Isto posto, conceitua-se sistema como “[…] a reunião ordenada das várias partes que formam um todo, de tal sorte que elas se sustentam mutuamente e as últimas explicam-se pelas primeiras” [CARAZZA,1997, p. 30].
Araújo [2000, p. 85] traz que a Constituição Federal deve ser compreendida como “[…] um sistema aberto de regras e princípios”, não podendo ser concebido um sistema jurídico somente formado por regras, pois “[…] este, embora pudesse ser considerando um “sistema de segurança”, não permitiria a sua própria complementação e desenvolvimento” [ARAÚJO, 2000, p. 85].
Carazza [1997, p. 31] conceitua princípio jurídico como:
[…] um enunciado lógico, implícito ou explícito que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.
O pensamento contemporâneo não pode mais ser concebido caso não esteja fundamentado nos princípios do ordenamento jurídico e os valores ditados pela sociedade. O fim da norma deve ter sempre em consideração o objetivo social e a felicidade do ser humano, não mais valendo o interesse de poucos sobre o bem estar dos outros.
Quanto aos princípios estabelecidos como normas, Espíndola [1999, p. 73] evidencia que estes têm como função dar fundamento material e formal aos “[…] subprincípios e demais regras integrantes da sistemática normativa”, onde os princípios constitucionais, estabelecidos como norma, devem ser considerados como normas supremas do ordenamento jurídico. Concluí Carazza [1997, p. 32/33]:
Nenhuma interpretação poderá ser havida por boa (e, portanto, por jurídica) se, direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio jurídico-constitucional.
Pinho [2001, p. 53] define princípios fundamentais como “[…] as regras informadoras de todo um sistema de normas, as diretrizes básicas do ordenamento constitucional brasileiro”. Um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana, o qual se trabalhará no próximo tópico separadamente.
6.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
A Carta Magna traz o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos pilares da República Federativa do Brasil. Juntamente com a soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo jurídico, fazem parte dos fundamentos, princípios inerentes ao próprio Estado Brasileiro, elencados no art. 1º da CRFB. Diferentemente dos objetivos fundamentais do Estado, propostos no art. 3º da CRFB.
Os princípios inerentes ao Estado Brasileiro são considerados os valores primordiais, imediato, os quais nunca podem ser deixados de lado, como preceitua Bastos [1998, p. 157].
Dentre os fundamentos, destaca-se a dignidade da pessoa humana. Moraes [2003, p. 50] leciona sobre o referido princípio:
[…] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos;
“O princípio jurídico da proteção a dignidade da pessoa humana tem como núcleo essencial à idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não podendo ser instrumentaliza ou descartá-la […]” [RIOS, 2001, p. 89], pois lhe são atribuídas características que lhe individualiza e representa uma identidade pessoal.
O reconhecimento da dignidade humana é elemento essencial na sociedade conceituada como um Estado Democrático de Direito, “[…] que promete aos indivíduos, muito mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, a promoção positiva de suas liberdades” [RIOS, 2001, p. 91].
A leitura de toda legislação e normas estabelecidas socialmente devem ter como norte a dignidade da pessoa humana, inclusive para sua aplicação aos casos concretos levados ao conhecimento do Poder Judiciário. Qualquer decisão dos tribunais que firam a dignidade de qualquer pessoa necessita ser reformada, posto que se confronta com um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mudança do sexo aparente para sua adequação ao sexo psicossocial no transexual é visto como o único tratamento que permite uma vivência digna em sociedade. Desvio de gênero, determinismo biológico, vários eixos de debates podem ser levantados em um tema tão polêmico. Entretanto, vale destacar que essa minoria, que enfrenta a diferença entre o sexo biológico e o psicossocial, está se destacando no cenário social, levando pretensas demandas ao Poder Judiciário como forma de garantia de direitos fundamentais atingidos.
Os julgamentos, dada a incerteza jurídica que cercam os seus resultados, fazem com que o transexual tenham seus direitos violados. Com certeza, os juristas prolatores das decisões não compreendem como o julgamento que fazem negando a alteração na certidão nascimento de seu prenome e sexo jurídico mantém o transexual em uma situação incômoda pelo resto de sua vida, não ocorrendo adaptação deste ao seu meio social, estando sempre deslocado e visto com preconceito pelos seus pares. Nunca será feliz porque cada vez que apresentar seus documentos para buscar um trabalho, ingressar em qualquer dos níveis de ensino ou comprar um imóvel será lembrado que seu sexo biológico e jurídico está em desacordo com seu sexo psicossocial e sua aparência exterior, sendo olhado com desprezo e repugnância pelos demais.
O problema está no fato que o senso comum desconsidera as minorias e os problemas são enfrentados por estes. Apesar de ser intitulado como seres humanos, tal concepção visando a exclusão e, como conseqüência, a infelicidade das pessoas não é levada em consideração, mesmo já estando bem definido pelas áreas médicas e psicológicas que a cirurgia de mudança de sexo é o tratamento adequado para adaptação social do transexual na sociedade.
Com essa falta de regulamentação e inúmeras decisões proferidas vedando a adequação social do transexual, constata-se que o direito fundamental da sobrevivência em sociedade e o princípio da dignidade da pessoa humana estão sendo violados reiteradamente.
Nesse novo momento social, com o renascimento do debate sobre humanismo e direitos sociais, sensibilizar sobre o papel do jurista e aplicador do Direito para esse tema se torna essencial. Não há como ignorar essa demanda social nascida com o debate sobre sexualidade em pleno desenvolvimento na sociedade ocidental. Buscar meios de adequação do transexual na sociedade, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, é um objetivo a ser traçado por toda a população brasileira, seja com a alteração do prenome e do sexo jurídico, seja com o combate aos preconceitos enraizados na comunidade.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. 162p.
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo; Saraiva, 1998. 499p.
CARAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Consitucional Tributário. 9 ed. ver. e amp. São Paulo: Malheiros, 19897. 576p.
ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceitos de Princípios Constitucionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 274p.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2003. 836p.
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