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Da comunicação do FGTS no regime da comunhão parcial de bens
Da comunicação do FGTS no regime da comunhão parcial de bens
Flávio Tartuce[1]
No último dia 6 de fevereiro de 2021, o Professor Zeno Veloso publicou um interessante artigo, na sua coluna do jornal O Liberal, de Belém do Pará, demonstrando o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de haver a comunicação dos valores recebidos em FGTS por um dos cônjuges ou companheiros, estando vigente entre as partes o regime da comunhão parcial de bens. Na ocasião, como doutrina majoritária foram citados os Professores Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald; além do autor deste texto e do próprio articulista. Como fundamento jurisprudencial, destacou-se o seguinte aresto, da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça:
"O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 709.212/DF, debateu a natureza jurídica do FGTS, oportunidade em que afirmou se tratar de ‘direito dos trabalhadores brasileiros (não só dos empregados, portanto), consubstanciado na criação de um pecúlio permanente, que pode ser sacado pelos seus titulares em diversas circunstâncias legalmente definidas (cf. art. 20 da Lei 8.036/1995)’ (ARE 709212, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2014, DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015). (...). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Egrégia Terceira Turma enfrentou a questão, estabelecendo que o FGTS é 'direito social dos trabalhadores urbanos e rurais', constituindo, pois, fruto civil do trabalho (REsp 848.660/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, DJe 13/05/2011). (...). O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é o de que os proventos do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento, compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não. (...). Assim, deve ser reconhecido o direito à meação dos valores do FGTS auferidos durante a constância do casamento, ainda que o saque daqueles valores não seja realizado imediatamente à separação do casal" (STJ, REsp 1.399.199/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 09/03/2016, DJe 22/04/2016).
Esse último acórdão, a propósito, excluiu da comunicação os valores recebidos por um dos cônjuges em momento antecedente à união, por terem uma causa anterior, nos termos do que está no art. 1.661 do Código Civil, in verbis: "são incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento". Em suma, a posição atual do STJ pode ser resumida na seguinte afirmação, constante da Edição n. 113 da ferramenta Jurisprudência em Teses da Corte, publicada em 2018 e que trata da dissolução do casamento e da união estável: “as verbas de natureza trabalhista nascidas e pleiteadas na constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens integram o patrimônio comum do casal e, portanto, devem ser objeto da partilha no momento da separação” (tese n. 3). E, mais, sobre o FGTS: “deve ser reconhecido o direito à meação dos valores depositados em conta vinculada ao Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS auferidos durante a constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens, ainda que não sejam sacados imediatamente após a separação do casal ou que tenham sido utilizados para aquisição de imóvel pelo casal durante a vigência da relação” (tese n. 4, publicada na mesma ferramenta e edição).
Diante de toda a polêmica gerada pelo destacado texto do Professor Zeno Veloso, não percebida em anos anteriores, resolvi escrever este artigo. A propósito, o que me parece é que as redes sociais, nos últimos tempos, acabaram por incentivar respostas rápidas, imediatas e instantâneas por muitos, baseadas em um "suposto bom senso", muitas vezes sem se conhecer todo o debate técnico que envolve determinado assunto, no âmbito do Direito Privado. Sobram opiniões, mas faltam leituras prévias...
De início, sobre ser esse o entendimento jurisprudencial majoritário, a posição do Superior Tribunal de Justiça quanto à existência de um fruto civil, decorrente do salário recebido por um dos consortes, é há muito tempo aplicada. Entre os primeiros julgados a respeito de verbas trabalhistas, a propósito, destaco o seguinte: "ao cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens é devida a meação das verbas trabalhistas pleiteadas judicialmente durante a constância do casamento. As verbas indenizatórias decorrentes da rescisão do contrato de trabalho só devem ser excluídas da comunhão quando o direito trabalhista tenha nascido ou tenha sido pleiteado após a separação do casal" (STJ, REsp 646.529/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado na remota data de 21/06/2005). Trata-se, portanto, de aplicação do art. 1.660, inc. V, do Código Civil de 2002, que estabelece a comunicação, na comunhão parcial de bens, dos frutos dos bens comuns, ou dos bens particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.
As verbas trabalhistas, por óbvio, são frutos civis ou rendimentos sobre bens particulares, assim entendidos os valores oriundos do trabalho individual, como rendimentos privados. Confirmando essa minha afirmação, em outro aresto, publicado no Informativo n. 430 do STJ, concluiu a mesma relatora:
“O ser humano vive da retribuição pecuniária que aufere com o seu trabalho. Não é diferente quando ele contrai matrimônio, hipótese em que marido e mulher retiram de seus proventos o necessário para seu sustento, contribuindo, proporcionalmente, para a manutenção da entidade familiar. Se é do labor de cada cônjuge, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, que invariavelmente advêm os recursos necessários à aquisição e conservação do patrimônio comum, ainda que em determinados momentos, na constância do casamento, apenas um dos consortes desenvolva atividade remunerada, a colaboração e o esforço comum são presumidos, servindo, o regime matrimonial de bens, de lastro para a manutenção da família. Em consideração à disparidade de proventos entre marido e mulher, comum a muitas famílias, ou, ainda, frente à opção do casal no sentido de que um deles permaneça em casa cuidando dos filhos, muito embora seja facultado a cada cônjuge guardar, como particulares, os proventos do seu trabalho pessoal, na forma do art. 1.659, inc. VI, do CC/2002, deve-se entender que, uma vez recebida a contraprestação do labor de cada um, ela se comunica” (STJ, REsp 1.024.169/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.04.2010, DJe 28.04.2010).
Esse último acórdão tem o mérito de esclarecer o conteúdo do art. 1.659, inc. VI, do Código Civil de 2002, que prevê a não comunicação, na comunhão parcial de bens, dos proventos do trabalho de cada consorte. Muitos utilizam tal regra como argumento para afastar não só a comunicação dos salários recebidos como as verbas e frutos que deles decorrem.
De toda sorte, se tal entendimento fosse aplicado, haveria uma negação ou esvaziamento quase total do próprio regime da comunhão parcial de bens, notadamente da sua regra fundamental, prevista no art. 1.658 da codificação privada em vigor, no sentido de que se comunicam os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento. Mais do que isso, haveria também um esvaziamento da comunhão universal, pois o art. 1.668, inc. V, do CC/2002 exclui da comunicação, igualmente, os citados proventos do trabalho de cada um dos consortes.
De forma impecável, a doutrina há tempos adverte sobre a necessidade de uma leitura restritiva do art. 1.659, inc. VI, sob pena de se colocar em descrédito os dois regimes. Segundo Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, jurista que participou da última fase do processo de elaboração do Código Civil de 2002, “a previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, produz situação que se antagoniza com a própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não se comunicam, os bens sub-rogados desses rendimentos também não se comunicam, conforme o inciso II, e, por conseguinte, praticamente nada se comunica nesse regime, no entendimento de que a grande maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem em vista comunicar todos os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso, sendo que aqueles adquiridos com frutos do trabalho contêm essa onerosidade aquisitiva” (Código Civil comentado. Coordenador Deputado Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1519).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem concluído do mesmo modo, como se extrai dos acórdãos antes citados. De data mais recente, acrescente-se o seguinte: "não se pode olvidar que o art. 1.659, VI, do CC/2002, é fruto de profunda discussão no âmbito doutrinário e jurisprudencial, especialmente porque, se fosse a regra interpretada literalmente, o resultado seria a incomunicabilidade quase integral dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, desnaturando-se por completo o regime da comunhão parcial ou total de bens" (STJ, REsp 1.651.292/RS, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020).
A crítica à última regra também é encontrada na doutrina clássica. Silvio Rodrigues, por exemplo, traz outra solução plausível para a interpretação do art. 1.659, inc. VI, defendendo que “no exato momento em que as referidas rendas se transformam em patrimônio, por exemplo, pela compra dos bens, opera-se em relação a estes a comunhão, pela incidência da regra contida nos arts. 1.658 e 1.660, I, até porque não acrescenta o inciso em exame a hipótese e os bens sub-rogados em seu lugar. Entendimento diverso contraria a essência do regime da comunhão parcial e levaria ao absurdo de só se comunicarem os aquestos adquiridos com o produto de bens particulares e comuns ou por fato eventual, além dos destinados por doação ou herança ao casal” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 6: direito de família. p. 183). Por esse caminho, também há que se reconhecer a comunicação de todas as verbas trabalhistas recebidas durante o casamento ou a união estável, na mesma linha do que sustentei.
Portanto, no âmbito do Direito Civil, é cada vez mais fundamental conhecer todos os caminhos percorridos, pela doutrina e pela jurisprudência, na interpretação e na experimentação concreta da lei, não se fazendo apenas afirmações baseadas em percepções superficiais da leitura do texto da norma jurídica.
[1] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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