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O reconhecimento das uniões poliafetivas pelo ordenamento jurídico brasileiro e os efeitos decorrentes da dissolução inter vivos
O reconhecimento das uniões poliafetivas pelo ordenamento jurídico brasileiro e os efeitos decorrentes da dissolução inter vivos
Maiara Francieli Haas[1]
RESUMO
O presente trabalho científico dedica-se ao estudo dos relacionamentos poliafetivos. Busca-se aferir a possibilidade de reconhecimento das relações poliafetivas como entidades familiares perante o ordenamento jurídico brasileiro, assim como os efeitos decorrentes de eventual dissolução inter vivos. A temática carece de apreciação em virtude da omissão do legislador em tutelar os efeitos decorrentes dos referidos relacionamentos amorosos, que são uma realidade social condenada e eivada de preconceito. Para isso, revelou-se imprescindível analisar a influência dos princípios constitucionais no direito das famílias e a diversidade de entidades familiares contemporâneas. Ademais, também foram abordados os aspectos constitutivos das relações poliafetivas, com o intuito de identificar qual delas merece receber status de entidade familiar. Para consecução do objetivo traçado neste trabalho depreendeu-se análise de natureza bibliográfica, abordagem qualitativa e método hipotético-dedutivo. Verificou-se que, tendo em vista as previsões constitucionais inclusivas, em especial da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental basilar do ordenamento jurídico brasileiro, a união poliafetiva é uma realidade que não pode ser ignorada pelo Estado e merece ser tutelada como entidade familiar. Além disso, considerando o caráter personalíssimo dos relacionamentos amorosos poliafetivos, colhe-se que os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução inter vivos não devem ser tutelados apenas pelo direito obrigacional. Desse modo, a partilha patrimonial precisa ser igualitária e justa, respeitando o regime de bens eleito pelos conviventes ou, no caso de omissão, o regime legal supletivo, em razão da aplicação por analogia das regras previstas às uniões estáveis.
Palavras-chave: Direito das famílias. Poliafetividade. Reconhecimento jurídico. Dissolução. Partilha inter vivos.
ABSTRACT
The present scienfic work dedicated to the study polyfaffective relationships. Sought measure throughout the study the possibility in recognition of polyfaffective relations how family entities before the ordening legal brazilian and the resulting effects in eventual dissolution “inter vivos”. The thematic lacks in appreciation in virtue of omission of the legislator in guardianship expressly the effects arising from referred loving relationships, that are a condemned social reality and riddled with prejudice. For this, proved to be essential analyze the influence from constitutional principles at the family law and the diversity of contemporary family entities. Furthermore, the constitutive aspects of pollyfaffective relationships were also addressed, in order to identify which one deserves to receive family entity status. For attainment of the goal traced in this work analysis emerged in bibliographic nature, qualitative approach and hypothetical-deductive method. Consequently, the polyaffective unions are a reality that cannot be ignored by state, so that deserve to be treat as family entities, primarily because of the application of constitutional principles including. Besides that, considering the very personal character of multi-affective love relationships, equity effects arising from dissolution “inter vivos” they should not be protected only by mandatory right. Equity sharing ,on the other hand, needs to be egalitarian and fair, respecting the regime of goods elected by cohabitants or, in case of omission, the supplementary legal regime, because of the application by analogy of the rules planned for stable unions.
Keywords: family law ou Right of families. Polyaffectivity. Legal recognition. Dissolution. Partition “inter vivos”.
1 INTRODUÇÃO
No decorrer do presente trabalho serão analisados quais relacionamentos poliamorosos merecem reconhecimento como entidades familiares perante o ordenamento jurídico brasileiro, assim como os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução inter vivos das referidas uniões.
O tema foi escolhido em virtude da omissão do legislativo em regulamentar a matéria, de modo que, atualmente, os relacionamentos não monogâmicos são uma realidade social que carece de regulamentação, acarretando, inclusive, insegurança jurídica aos integrantes da relação.
Ademais, o Conselho Nacional de Justiça proibiu a lavratura de escrituras públicas de reconhecimento das uniões poliafetivas, fomentando a exclusão desta modalidade de relacionamento do ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, mostra-se relevante abordar a temática com o intuito de iniciar processo de modificação no cenário jurídico brasileiro, que ainda se mostra contrário à aceitação e ao deferimento de direitos aquelas entidades familiares não tradicionais, principalmente as constituídas pela poliafetividade.
Então, levanta-se a seguinte problemática: o ordenamento jurídico brasileiro permite o reconhecimento das uniões poliafetivas como entidades familiares e atribui efeitos patrimoniais à dissolução inter vivos das referidas uniões?
No início do estudo serão analisadas as famílias através dos tempos e a efetiva influência dos princípios constitucionais inclusivos na construção do direito das famílias contemporâneo. Ao final do mencionado capítulo serão ponderadas, com base no consagrado princípio constitucional da pluralidade de entidades familiares, as entidades familiares existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Em contrapartida, o capítulo subsequente tratará das uniões poliafetivas como hipótese de constituição familiar perante o ordenamento jurídico brasileiro. Para isso, serão avaliados o conceito e a origem do poliamor e o instituto da monogamia, se princípio ou valor, discussão imprescindível ao reconhecimento das relações não monogâmicas como entidades familiares. Ainda, para complementar o aludido capítulo, será analisada a união poliafetiva em conformidade com os princípios constitucionais inclusivos.
À vista disso, o quarto capítulo estudará detalhadamente o efeito patrimonial desinente da dissolução inter vivos das uniões poliafetivas. Para tal fim, analisará o tratamento jurídico destinado à partilha inter vivos das uniões estáveis, para posteriormente aferir a possibilidade de aplicação, por analogia, dessas regras à dissolução das uniões poliafetivas.
O quarto capítulo também será destinado à averiguação dos direitos conferidos atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro às uniões poliafetivas dissolvidas, com a intenção de buscar solução efetiva à situação vivenciada pelos casais poliamoros, que fogem ao modelo tradicional de família e acabam tendo seus direitos relegados à esfera societária ou fadados ao enriquecimento injustificado de apenas um dos integrantes do relacionamento.
O presente trabalho será finalizado com a exibição da conclusão, que foi obtida através da aplicação de abordagem qualitativa, método hipotético-dedutivo e análise de natureza bibliográfica.
2 MUTABILIDADE DO CONCEITO DE FAMÍLIA
O modelo convencional de família, representado pelo matrimônio de um homem e de uma mulher posteriormente cercados de filhos, passou por significativa reformulação. Atualmente a família busca a promoção dos interesses existenciais e afetivos de seus integrantes (DIAS, 2020, p. 437-438).
Diante disso, não é possível estabelecer uma visão única e idealizada acerca dos núcleos familiares.
2.1 Família através dos tempos
A família do passado possuía marcas de uma sociedade conservadora e era definida pela procriação, característica considerada sinônimo de melhoria nas condições de sobrevivência do núcleo familiar (DIAS, 2020, p. 43).
Foi a Carta Magna de 1988 que finalizou a desigualdade jurídica perpetuada historicamente no direito de família brasileiro, acabou com a discriminação imposta às entidades familiares não constituídas pelo matrimônio e consolidou a igualdade e a solidariedade das famílias e de seus membros (LOBÔ, 2015, p. 29).
Depreende-se que o moderno panorama atribuído à família não está mais condicionado ao padrão tradicional: casamento, sexo e procriação, isso pois, o elemento que confere proteção jurídica ao grupo familiar é o vínculo afetivo que une as pessoas com propósitos e objetivos de vida comuns (DIAS, 2020, p. 439).
A família atual possui a função básica de promover a realização pessoal e a afetividade, de modo que as antigas funções religiosa, econômica, política e procracional desapareceram ou exercem apenas papel secundário (LOBÔ, 2015, p. 15).
2.2 Influência dos princípios constitucionais no direito das famílias
Preliminarmente, percebe-se que os princípios constitucionais são normas fundamentais que orientam, de uma forma especial, o direito de família. Dentre os princípios aplicáveis especificamente ao direito de família merece destaque o princípio da afetividade.
A Carta Magna consagrou, no artigo 1, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Assim, considerando que a família possui a finalidade de desenvolver a dignidade da pessoa humana, é possível concluir que a entidade familiar atua como instrumento de realização existencial de seus membros (LOBÔ, 2015, p. 56).
Ademais, o princípio da igualdade indica que não há qualquer fundamentação jurídica que justifique a distinção de direitos e deveres ou hierarquização entre as diferentes formas de constituir entidades familiares, inexistindo modelo preferencial (LOBÔ, 2015, p. 60).
Para além disso, todas as pessoas possuem a liberdade de escolher a forma de entidade familiar que querem constituir, assim como a orientação sexual do companheiro. Nesse sentido, “o princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador.” (LOBÔ, 2015, p. 64).
Muito embora o Estado tenha interesse na preservação da família, mostra-se necessário estabelecer limite ao intervencionismo, de modo que a regulamentação das relações interpessoais deve respeitar a dignidade, a liberdade e a igualdade, resguardando a função primordial de garantir o direito à vida digna e feliz (DIAS, 2020, p. 40).
Percebe-se que as famílias constituídas pela sociedade moderna, de modelos não tradicionais, possuem fundamento na comunhão de afeto. Pode-se afirmar que a afetividade é o único laço que mantém pessoas unidas nas relações familiares (LOBÔ, 2015, p. 67).
Constata-se, outrossim, que o direito à felicidade também é princípio fundamental aplicável ao Direito das Famílias. Contudo, muito embora materialmente constitucional, o referido princípio não está consagrado na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional. Apesar disso, o silêncio do legislador não impede sua invocação pela Justiça com a finalidade de corrigir as lacunas presentes no ordenamento jurídico (DIAS, 2020, p. 76-77).
Ante o exposto, é perceptível que os princípios constitucionais exerceram influência significativa na evolução do direito das famílias, ocasionando a construção de núcleos familiares repletos de afeto, igualdade, liberdade, solidariedade e, primordialmente, alicerçados na dignidade da pessoa humana.
2.3 Diversidade de entidades familiares contemporâneas
Quando se pensa em entidade familiar vem à mente o modelo tradicional, constituído por um homem e uma mulher unidos pelo casamento, com a atribuição essencial de reproduzir. Entretanto, a realidade é outra (DIAS, 2020, p. 437).
O conceito contemporâneo de entidade familiar é diversificado e possui como base os laços afetivos. Desse modo, as variadas formas de expressar o amor merecem ser tuteladas pelo direito das famílias.
Conforme destacado no capítulo anterior, a Constituição Federal de 1988 alargou o conceito de família e deixou de reconhecer o matrimônio como única instituição familiar merecedora de proteção, consagrando o princípio do pluralismo de entidades familiares.
Assim, deixar de conferir juridicidade às entidades familiares compostas com base na afetividade e comprometimento mútuo, pessoal e patrimonial, exprime concordância com a injustiça (DIAS, 2020, p. 70).
Diante disso, qualquer entidade familiar originada, formalmente ou informalmente, na manifestação afetiva goza de igual proteção do Poder Público (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 61).
O eudemonismo enfatiza a busca pela felicidade individual de cada um dos membros da família. Nesse seguimento, o afeto pode ser considerado o único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida (DIAS, 2020, p. 454).
Mostra-se razoável afirmar que o caput do artigo 226 da Carta Magna trata de cláusula geral de inclusão, não sendo permitido excluir as entidades familiares que preenchem os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade (LOBÔ, 2015, p. 76).
Considerando o princípio da dignidade da pessoa humana como norteador das relações familiares, verifica-se que também devem ser atribuídos efeitos patrimoniais e pessoais às relações contínuas e duradouras estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo.
As uniões homoafetivas, assim como as demais entidades familiares, possuem como fundamento primário o afeto. Portanto, “dividem-se alegrias, tristezas, sexualidade, afeto, solidariedade, amor..., enfim, projetos de vida. Por isso, não é crível, nem admissível, que lhes seja negada a caracterização como entidade familiar." (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 64).
A respeito das famílias batizadas de monoparentais, a Constituição Federal instituiu, no artigo 226, § 4º, como entidade familiar o grupo formado por qualquer dos pais e seus descendentes.
Verifica-se que o legislador deixou regulamentar a entidade familiar denominada anaparental, que é formada pela convivência entre parentes ou não parentes que convivem sob o mesmo teto durante longos anos, com comunhão de esforços e propósitos. Nada obstante, essa modalidade de entidade familiar merece o mesmo tratamento jurídico conferido ao casamento e à união estável (DIAS, 2020, p. 450).
As famílias instituídas após o término de relações afetivas pretéritas são chamadas, dentre outros nomes, de pluriparentais e são compostas de egressos de casamentos ou uniões anteriores, que trazem para o novo núcleo familiar filhos e, não raramente, têm filhos em comum (DIAS, 2020, p. 451).
No que se refere às famílias simultâneas, a manutenção de duas entidades familiares concomitantemente é alvo de repúdio social e legal, entretanto, essas uniões não deixam de ser formadas pelos indivíduos, produzindo, consequentemente, efeitos jurídicos.
A monogamia é frequentemente utilizada como fundamento para a não atribuição de efeitos jurídicos aos relacionamentos simultâneos, todavia, tal negativa apenas enaltece o enriquecimento sem causa do companheiro infiel (DIAS, 2020, p. 61).
Assim, em virtude da omissão do legislativo em tutelar os núcleos familiares simultâneos, a atuação do Poder Judiciário busca garantir a dignidade da pessoa humana, ponderando efeitos pessoais e patrimoniais.
O poliamorismo também se afasta do modelo tradicional da heteronormatividade e da singularidade, sendo alvo de danação religiosa e repúdio social. Por conseguinte, as uniões poliamorosas são vítimas da exclusão de direitos e da omissão do legislador, que não passam de tentativas frustradas de condenar os mencionados relacionamentos à invisibilidade (DIAS, 2020, p. 448).
3 UNIÕES POLIAFETIVAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A análise das uniões poliafetivas no ordenamento jurídico brasileiro requer compreensão acerca da origem e do conceito de poliamor, assim como entendimento a respeito da delimitação constitucional da monogamia.
Ademais, é necessário analisar a composição das famílias constituídas pelo poliamor e os elementos normativos a elas aplicáveis, com a finalidade de identificar se merecem proteção jurídica assim como as demais entidades familiares.
3.1 Origem e conceito
Muito embora as relações não monogâmicas tenham sido fixadas com maior intensidade nas últimas décadas, estão presentes na sociedade há séculos.
O poliamor surgiu após o enfraquecimento do amor exclusivo, possibilitando que as pessoas amassem e se relacionassem sexualmente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo (CAMELO, 2020, p. 129).
O poliamor é exteriorizado de diversas formas, cabendo ao Estado, observando o princípio da pluralidade de entidades familiares, identificar a qual delas deve ser atribuído status de entidade familiar (CAMELO, 2020, p. 134).
A palavra poliamor significa amor por várias pessoas. Desse modo, as relações poliamorosas são formadas consensualmente por, no mínimo, três pessoas (CAMELO, 2020, p. 127).
A filosofia poliamorista considera incompreensível o fato de amar uma única pessoa ao longo da vida (CAMELO, 2020, p. 129).
A filosofia do poliamor também prevê que as pessoas podem livremente amar várias pessoas ao mesmo tempo, dando publicidade a isso, sem se sentirem culpadas, constrangidas ou sofrerem preconceito (SANTOS, 2020, p. 20).
“O poliamor, então, significa o amor consentindo e sabido entre várias pessoas que optam por viver esse tipo de relacionamento, havendo respeito, lealdade e felicidade entre eles.” (SANTOS, 2020, p. 20).
O consentimento de todos os envolvidos é pressuposto dos relacionamentos poliamorosos, assim como a transparência e a solidariedade, que são deveres da boa-fé objetiva (CAMELO, 2020, p. 134).
Assim, as uniões poliafetivas se distinguem das uniões simultâneas, isso pois, estas geralmente acontecem na clandestinidade, ou seja, um dos integrantes da relação não sabe que o marido ou companheiro mantém outra relação (DIAS, 2020, p. 641).
Os relacionamentos poliamorosos não possuem apenas conotação sexual, eles se referem aos sentimentos dos envolvidos, de modo que um dos aspectos fundamentais dessa modalidade de relacionamento é o amor (CAMELO, 2020, p. 131).
Verifica-se que o consenso, a liberdade e a honestidade são características imprescindíveis aos relacionamentos poliamoristas.
No que diz respeito aos elementos de definição do poliamor competentes para caracterizar uma entidade familiar:
O poliamor que se baseia no amor, se dá com o conhecimento e aceitação de todos os participantes, são relações afetivas, íntimas, emocionais entre dois ou mais indivíduos numa única unidade familiar, sendo que todos exercem a sua autonomia privada tendo como objetivo a constituição de família (SANTOS, 2020, p. 26).
Com relação às peculiaridades do relacionamento poliafetivo:
A poliafetividade, por sua vez, decorre do poliamor qualificado pelo objetivo de constituir família, ou seja, um núcleo familiar formado por três ou mais pessoas, que manifestam livremente a vontade de constituir família, partilhando objetivos comuns, fundados na afetividade, boa-fé e solidariedade (PAMPLONA FILHO, 2020, p. 46).
As definições supramencionadas permitem concluir que nem toda relação poliamorosa é apta a constituir uma entidade familiar, por faltar-lhe a afetividade, elemento essencial de caracterização.
Na união denominada poliafetiva é constituído apenas um núcleo familiar e todos os integrantes residem na mesma casa, de modo que o referido relacionamento pode ser equiparado ao casamento, visto que a única diferença é o número de integrantes da relação. Assim, o tratamento dispensado às diversas entidades familiares reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro também deve ser conferido às uniões poliafetivas (SANTIAGO, 2015, p. 196).
Nada obstante, considerando os princípios da pluralidade de entidades familiares e da liberdade, os relacionamentos poliafetivos consensuais, instruídos com amor e honestidade, requerem o mesmo respeito concedido às demais entidades familiares formada livremente pela afetividade de seus membros.
Nessa toada, percebe-se que o indivíduo possui o poder de constituir o grupo familiar que melhor respeita os desejos de seu coração e materializa sua dignidade.
No que concerne à injustificada omissão da legislação em tutelar fatos contrários aos bons costumes e à moral, verifica-se que é insuficiente para refrear a busca do ser humano pela felicidade (DIAS, 2020, p. 84-85).
Levando em consideração que não falta lealdade aos integrantes dos relacionamentos poliafetivos ao assumirem direitos e deveres mútuos, a instrumentalização dos relacionamentos a três deve ser considerada transparente e honesta (DIAS, 2020, p. 642).
3.2 Monogamia: valor ou princípio
Muito embora o casamento tenha deixado de ser o único meio de formação da família, a monogamia permanece sendo empregada com firmeza, inclusive pela jurisprudência (CAMELO, 2019, p. 120).
“Tradicionalmente, a monogamia foi definida como sendo a condição daquele indivíduo que se relaciona afetiva e sexualmente com apenas um parceiro durante toda a sua vida.” (PAMPLONA FILHO, 2019, p. 55).
A igreja influenciou na concretização da monogamia, incutindo na sociedade a ideia de que monogamia e indissolubilidade do matrimônio eram decorrentes da própria união, fomentando o preconceito em relação às outras modalidades de relacionamento, tudo isso para proteger o patrimônio familiar (CAMELO, 2019, p. 120).
A monogamia não é um princípio, mas sim regra proibitiva da manutenção de dois casamentos concomitantemente (DIAS, 2020, p. 60).
No mesmo ponto de vista:
A monogamia não se sustenta como princípio jurídico, sobretudo, por não ser considerada um “dever ser” imposto pelo Estado a todas as relações familiares. No primado da dignidade da pessoa humana, não é possível compelir um indivíduo a formar uma família essencialmente monogâmica, quando esta não for a sua essência de vida (PAMPLONA FILHO; VIEGAS, 2019, p. 58).
Dessa forma, a monogamia “não se sustenta como dever-ser, sendo apenas um padrão de conduta histórico e não obrigatório, mero valor que cabe juízo de qualidade de ser um bom ou péssimo estilo de vida [...]” (PAMPLONA FILHO; VIEGAS, 2019, p. 61).
3.3 Possibilidade de reconhecimento da união poliafetiva como entidade familiar no direito brasileiro
No Brasil, o primeiro relacionamento poliafetivo materializado através de escritura pública foi noticiado na cidade de Tupã, interior de São Paulo, no ano de 2012, ocasião na qual um homem e duas mulheres postularam a instrumentalização da união (IBDFAM, 2020, n.p.).
Porém, a primeira escrita pública declaratória de união poliafetiva lavrada no Brasil repercutiu negativamente, foi considerada inexistente, indecente, nula e rotulada como afronta à moral e aos bons costumes (DIAS, 2020, p. 641).
No ano de 2016 a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão vinculado ao Conselho Nacional de Justiça, emanou recomendação provisória para que não fossem lavradas escrituras públicas de reconhecimento das uniões poliafetivas (CAMELO, 2019, p. 158).
A decisão exarada se coaduna com a aversão à família não monogâmica apresentada pelos religiosos e pelos conservadores. Ocorre que “moral e religião não podem atrapalhar a promoção da dignidade dos indivíduos que escolheram viver no âmbito de uma conjugalidade múltipla.” (VIEGAS, 2017, p. 191).
Inobstante, “a jurisprudência igualmente não resiste à sedutora arrogância de punir quem vive de maneira diversa do aceito pela moral conservadora. Buscando preservar a concepção de família afinada com o conceito de casamento [...]” (DIAS, 2020, p. 84).
Acerca da possibilidade de lavratura de escrituras públicas de uniões poliafetivas:
Reconhecida a natureza de família à união poliafetiva - composta por múltiplos parceiros, fundada na convivência pública, contínua, duradoura e com animus de constituir família - a sua formalização, por meio de escritura pública, é mera consequência que gera segurança jurídica para as partes [...] (PAMPLONA FILHO; VIEGAS, 2019, p. 64).
Sabe-se que não é qualquer relação poliamorosa que pode almejar status de família, apenas as relações poliafetivas podem, isso porque, um núcleo familiar só se forma quando existe afetividade, elemento essencial de caracterização (CAMELO, 2019, p. 138).
Nessa perspectiva, “apenas as configurações em que todos os componentes se relacionam igualmente, sem qualquer hierarquia de importância, são capazes de amparar a afetividade reclamada pela axiologia constitucional.” (CAMELO, 2019, p. 138).
Negar a existência de núcleos poliafetivos acarreta a exclusão de direitos aos integrantes da família, de modo que não poderiam ser deferidos alimentos, herança e partilha de bens comuns (DIAS, 2020, p. 642).
Contudo, tendo em vista a livre manifestação de vontade externada pelos integrantes do relacionamento, destinada a assumir obrigações recíprocas, revela-se incabível realizar julgamento prévio de reprovabilidade das formações familiares conjugais plurais, bem como subtrair-lhes efeitos jurídicos (DIAS, 2020, p. 641-642).
No que concerne à interferência estatal nos relacionamentos afetivos:
Há de se considerar que os deveres de fidelidade, respeito, amor, afeto, carinho, amizade e sexo são próprios da liberdade e da intimidade de cada ser humano, bem como de cada entidade familiar, ambiente estritamente privado, que não cabe intervenção estatal, simplesmente, por não haver interesse coletivo (VIEGAS, 2017, p. 185).
Apesar disso, o Estado nega juridicidade às entidades familiares constituídas sem observância do modelo eleito como correto, de maneira que são condenadas à invisibilidade. Todavia, muito embora os transgressores são punidos mediante a exclusão do sistema jurídico, as situações concretas não desaparecem, gerando, apenas, a exclusão de direitos (DIAS, 2020, p. 83).
Diante do exposto, é perceptível que as relações amorosas entre três ou mais pessoas, denominadas poliafetivas, constituídas com a intenção de formar família e fundadas na convivência contínua, duradoura e pública, merecem seguir o mesmo caminho traçado pelas relações homoafetivas, que foram reconhecidas como entidades familiares pelo ordenamento jurídico, inicialmente através da jurisprudência, em virtude das previsões inclusivas instituídas pela Carta Magna de 1988.
4 EFEITOS PATRIMONIAIS DECORRENTES DA DISSOLUÇÃO INTER VIVOS DAS FAMÍLIAS POLIAFETIVAS
Em virtude das peculiaridades inerentes aos relacionamentos poliafetivos e da inexistência de legislação específica, inicialmente serão ponderados os efeitos patrimoniais resultantes da dissolução em vida das uniões estáveis para posteriormente aferir a possibilidade de aplicação dessas regras à dissolução inter vivos das uniões poliafetivas.
4.1 Regime patrimonial, dissolução e partilha de bens na união estável
A união estável passou a ser tutelada primeiramente através do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal. Nada obstante, foi o Código Civil de 2002, por intermédio dos artigos 1723 a 1727, que regulamentou de forma mais específica esta modalidade de relacionamento amoroso, inclusive as relações econômicas entre os conviventes, estabelecendo o regime de bens aplicável.
Com a chegada do Código Civil de 2002 as uniões estáveis passaram a ser regidas pelo regime da comunhão parcial de bens (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 453-454).
O regime de bens diverso da comunhão parcial pode ser escolhido pelos companheiros antes ou após o início da união, adotando qualquer um dos regimes previstos aos cônjuges ou criando regime diferenciado, através de instrumento público ou particular (LOBÔ, 2015, p. 162).
A título exemplificativo, os regimes patrimoniais diversos da comunhão parcial, previstos atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, são os regimes da comunhão universal de bens, da separação convencional de bens, da separação obrigatória de bens e da participação final nos aquestos.
Dessarte, tendo em vista que o regime da comunhão parcial de bens é eleito pela legislação civil como supletivo, sendo aplicado para a grande maioria das uniões estáveis, revela-se imperioso tecer suscintos comentários acerca de seus efeitos.
“Configurado o início da união estável, o bem adquirido por qualquer dos companheiros ingressa automaticamente na comunhão, pouco importando em cuja titularidade esteja.” (LOBÔ, 2015, p. 160).
Dessa forma, percebe-se que:
No regime da comunhão parcial, todos os bens amealhados durante o relacionamento são considerados fruto do esforço comum. Presume-se que foram adquiridos por colaboração mútua, passando a pertencer a ambos em parte iguais. Instala-se o que é chamado de mancomunhão: propriedade em mão comum. Adquirido o bem por um, transforma-se em propriedade comum, devendo ser partilhado, por metade, quando da dissolução do vínculo (DIAS, 2020, p. 594).
Assim, ingressam na comunhão as dívidas contraídas em proveito da família e os bens móveis, porque, salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos durante o relacionamento (LOBÔ, 2015, p. 161).
Entretanto, a presunção absoluta de colaboração cessará nas situações em que ficar demonstrada a inexistência de ajuda mútua, sob pena de enriquecimento sem causa (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 477).
Ademais, existem exceções de incomunicabilidade dos bens, previstas nos artigos 1659 e 1661 do Código Civil, que deverão ser provadas pelo convivente que as alegar (DIAS, 2020, p. 594).
Portanto, não integram a comunhão os bens adquiridos antes do relacionamento, os bens de uso pessoal, instrumentos de profissão, pensões e aqueles bens adquiridos durante a união estável com valores advindos de doações ou herança, tendo em vista que são considerados bens particulares de cada companheiro (LOBÔ, 2015, p. 161).
Ultrapassada a breve análise do regime patrimonial aplicável, revela-se imperioso abordar os aspectos relevantes da dissolução e da partilha de bens na união estável.
“A união estável se constitui e se extingue sem a necessidade de chancela estatal, ao contrário do que ocorre com o casamento, que depende do amém do Estado, quer para existir, quer para ter um fim.” (DIAS, 2020, p. 609).
A dissolução, por sua vez, pode ser amigável ou judicial. A dissolução amigável é formalizada por instrumento particular, através do qual os companheiros definem direitos patrimoniais e pessoais, sem necessidade de postular homologação judicial. O pedido judicial de dissolução é formulado principalmente quando existe litígio entre os companheiros (LOBÔ, 2015, p. 165-166).
Salienta-se que a dissolução da união não poderá ser realizada por escritura pública quando existirem nascituros ou filhos incapazes, independentemente do consenso entre os conviventes (DIAS, 2020, p. 611).
Percebe-se que a partilha deve observar o ordenamento jurídico vigente ao tempo de aquisição de cada bem.
Para terminar o tópico, infere-se que a divisão de bens decorre primordialmente da confusão patrimonial levada a efeito durante a união estável. Nesse seguimento, haure-se da doutrina:
Basta que a convivência tenha levado ao embaralhamento de patrimônios. Independentemente do nome de quem conste como adquirente do bem, a divisão se impõe, a não ser que fique comprovada eventual sub-rogação ou outra causa de incomunicabilidade patrimonial (DIAS, 2020, p. 596-597).
Desse modo, depreende-se que em razão da dissolução da união estável os bens adquiridos onerosamente pelos companheiros durante o relacionamento devem ser partilhados, observando, para isso, o regime de bens escolhido ou o regime legal suplementar.
4.2 Da possibilidade de aplicar as regras da dissolução e da partilha de bens inter vivos da união estável nas uniões poliafetivas
Considerando que a Carta Magna estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento estruturante do ordenamento jurídico brasileiro, a união integrada por mais de três pessoas, respaldada no afeto, na solidariedade e na honestidade, na qual os membros possuem o intuito de compartilhar vida conjunta, deve receber o status de entidade familiar.
Diante disso, tendo em vista a falta de previsão expressa na legislação, depreende-se que os efeitos patrimoniais decorrentes da união estável são aplicáveis às uniões poliafetivas.
Os efeitos patrimoniais conferidos às relações poliafetivas formadas antes da Constituição Federal de 1988 são aqueles atribuídos às sociedades de fato, apenas com o intuito de evitar o enriquecimento ilícito. Isso porque, foi a principiologia constitucional que inicialmente atribuiu status de entidade familiar às relações poliafetivas (CAMELO, 2019, p. 157).
Aos demais casos, revela-se pertinente mencionar a possibilidade de aplicar por analogia a triação como forma de partilhar os bens. Infere-se que para as uniões dúplices já é possível aplicar a partilha na forma de triação, que consiste na divisão do patrimônio adquirido durante o relacionamento em três partes.
Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência pioneira do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. RECONHECIMENTO. PARTILHA. "TRIAÇÃO". ALIMENTOS PARA EX-COMPANHEIRA E PARA O FILHO COMUM. Viável reconhecer união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que restou cabalmente demonstrada a existência de união estável entre as partes, consubstanciada em contrato particular assinado pelos companheiros e por 03 testemunhas; [...] Reconhecimento de união dúplice que impõe partilha de bens na forma de “triação”[...]. (Apelação Cível n. 70039284542, 8ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11 jan. 2011).
A triação prevê que quando não for possível estipular o predomínio de uma das relações a divisão do acervo patrimonial acumulado durante a relação poliafetiva deve ser realiza em três partes idênticas (DIAS, 2020, p. 644).
No que diz respeito à partilha de bens no direito sucessório brasileiro, a triação já é utilizada pelos tribunais estaduais como possível solução para as famílias poliamoristas. Aliás, “trata-se de um início promissor para a proteção patrimonial familiar das famílias poliamoristas.” (MURAKAMI, 2019, p. 11).
Assim, percebe-se que não é razoável descartar a triação também como hipótese de partilha de bens inter vivos nos relacionamentos poliafetivos, visto que apresenta solução adequada e efetiva para a resolução do conflito.
Para além disso, observa-se que o momento e a forma de constituição do relacionamento poliafetivo são elementos imprescindíveis para a definição das regras aplicáveis. Desse modo, assim como nas uniões estáveis, a partilha deverá considerar primordialmente o ordenamento jurídico vigente no momento da aquisição do bem a ser partilhado e o equilíbrio na porcentagem entre os integrantes do relacionamento.
Acerca da influência do momento e da forma de constituição do relacionamento poliafetivo, verifica-se que o tratamento jurídico conferido ao relacionamento que iniciou monogâmico e depois se transformou em poliamorista, através da inserção de um novo parceiro, não será o mesmo que aquele conferido ao relacionamento originalmente poliafetivo, pois a complexidade de ambos é diversa (CAMELO, 2019, p. 157-158).
Nos relacionamentos amorosos originalmente poliafetivos a partilha observará o regime de bens eleito pelos parceiros ou, subsidiariamente, o regime legal da comunhão parcial de bens, efetuando-se de forma proporcional entre todos os integrantes da união. Ademais, em virtude da aplicabilidade por analogia das regras previstas à união estável, compreende-se que, para a realização da partilha de forma igualitária entre os membros do relacionamento, não há necessidade de comprovação do esforço comum na aquisição do patrimônio.
De modo diverso, a partilha nos relacionamentos originalmente monogâmicos nos quais foram inseridos um novo integrante, que também se relacionará com o intuito de constituir família, formando uma união poliafetiva, é mais complexa. Entretanto, deverá ser igualmente realizada com equilíbrio entre os envolvidos.
“Neste caso, até o ingresso do novo membro, valerá entre o casal o regime de bens legal ou pactuado. Posteriormente, para acomodar a proteção ao novo integrante, o ideal será a celebração de um pacto [...]” (CAMELO, 2019, p. 158).
Compreende-se que neste último caso a partilha deverá ser realizada em dois momentos diversos. De início, será necessário partilhar os bens adquiridos durante o relacionamento monogâmico, em duas partes distintas, em conformidade com o regime de bens escolhido pelos parceiros ou aplicado pela legislação em virtude da omissão. Na segunda partilha, serão divididos os bens onerosamente adquiridos durante o relacionamento poliafetivo em tantas partes quanto forem os integrantes do relacionamento, de forma igualitária e compatível com o regime de bens legal ou escolhido através de documento particular assinado por todos os membros da união.
Dessarte, conclui-se que, muito embora inexiste lei regulamentando exclusivamente os efeitos jurídicos da dissolução inter vivos das uniões poliafetivas, por analogia são aplicadas as regras da união estável, em virtude de ser a entidade familiar com maior semelhança estrutural.
4.3 Direitos conferidos atualmente pelo ordenamento jurídico brasileiro às uniões poliafetivas dissolvidas
O legislador é omisso ao regulamentar os efeitos jurídicos decorrentes das uniões poliafetivas, razão pela qual deve ser aplicado por analogia o tratamento conferido às uniões estáveis, tendo em vista a semelhança estrutural.
Todavia, verifica-se que o cenário jurídico brasileiro ainda se mostra contrário à aceitação e ao deferimento de direitos aquelas entidades familiares constituídas pela poliafetividade.
“O que ocorre é a inércia na atividade legiferante, em muitos casos, ocasionando um abismo entre o direito e a evolução da sociedade, o que permite que tais conflitos sociais sejam resolvidos pelo Poder Judiciário.” (SANTOS, 2019, p. 43).
Para uma adequada aplicação do princípio da afetividade, é imprescindível que os juízes julguem os casos concretos envolvendo relações familiares com base na solidariedade e na sensibilidade, ignorando, para tanto, a parcialidade e a interpretação pessoal (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 94).
Argumenta-se que aos integrantes dos relacionamentos poliafetivos caberia apenas a invocação do direito societário. Entretanto, a invocação do direito societário auxiliaria apenas na partilha dos bens adquiridos onerosamente durante a relação, através da comprovação de esforço mútuo (CAMELO, 2019, p. 159).
Acerca da possibilidade de dividir entre os integrantes do relacionamento poliafetivo o patrimônio amealhado, a 4ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Velho (RO), proferiu importante decisão nos autos n. 001.2008.005553-1. A referida decisum reconheceu que a relação poliamorosa, consentida e tolerada, acarreta efeitos legais, dentre eles a divisão do patrimônio adquirido durante o relacionamento (YOSHIOKA; TAKEYAMA, 2017, p. 9).
“Atualmente se relega uma relação humana, formada com afeto, à seara do direito obrigacional, respaldando-a, apenas, em termos econômicos contra o enriquecimento ilícito de quaisquer de seus integrantes.” (CAMELO, 2019, p. 159).
5 CONCLUSÃO
No decurso do presente trabalho foram abordados os relacionamentos poliafetivos sob a perspectiva da Constituição Federal de 1988, com a finalidade primordial de depreender se podem ser considerados entidades familiares e, por conseguinte, produzirem efeitos patrimoniais em virtude da dissolução inter vivos.
A Carta Magna de 1988 consolidou a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito e, por conseguinte, promoveu profunda modificação na estrutura da entidade familiar. Diante disso, o matrimônio deixou de ser considerado, pelo Estado e pela sociedade, o único modelo de relacionamento amoroso aceitável e válido.
Para além disso, a Constituição Federal de 1988 introduziu um conjunto de princípios inclusivos que evidenciaram o caráter democrático das famílias.
No tocante ao princípio da liberdade, identificou-se que todos os indivíduos possuem autonomia para escolher a orientação sexual do parceiro e constituir a modalidade de entidade familiar que melhor atenda aos seus anseios pessoais.
Outrossim, o princípio da igualdade nos permite inferir que inexistem fundamentos jurídicos capazes de embasar a distinção de direitos e deveres entre as diversificadas entidades familiares existentes.
Não há modelo preferencial de família, muito pelo contrário, o rol constitucional é apenas exemplificativo (artigo 226 da Constituição Federal), razão pela qual todas as entidades familiares fundadas na afetividade merecem proteção estatal.
Sobre a afetividade como elemento indispensável aos relacionamentos amorosos, a Lei Maior firmou a igualdade e a solidariedade das famílias e de seus membros, consolidando o afeto como elemento construtivo dos relacionamentos familiares.
Assim, os núcleos familiares não tradicionais introduzidos pela sociedade moderna e alicerçados no compartilhamento de afeto merecem, sem dúvida alguma, proteção jurídica.
Aliás, arrisco salientar que a afetividade, além de imprescindível à constituição dos relacionamentos amorosos, é um dos únicos elementos constitutivos que permite a manutenção da instituição familiar ao longo dos anos. Sem afetividade a união perece.
No tocante à intervenção do Estado nas relações familiares, percebe-se que independentemente do interesse estatal na preservação das famílias é fundamental que o intervencionismo ocorra de forma limitada, para que não atrapalhe o desenvolvimento das relações interpessoais, preservando a felicidade e a dignidade humana.
Dos mencionados princípios constitucionais decorre a concepção basilar das famílias contemporâneas, as quais possuem como função primordial a promoção da realização pessoal e o desenvolvimento dos laços de afetividade, recebendo o cognome de família eudemonista.
Assim, devido à diversidade de entidades familiares baseadas na afetividade e às previsões inclusivas da Carta Magna, o ser humano possui o poder de fundar a entidade familiar que melhor respeita os desejos de seu coração e materializa sua dignidade.
À vista disso, afirma-se que as entidades familiares poliafetivas são merecedoras de proteção estatal. Contudo, algumas relações poliamorosas não constituem entidade familiar, por faltar-lhes a afetividade, elemento essencial de caracterização das famílias.
Desse modo, para receber status de entidade familiar a união poliamorosa precisa ser constituída por três ou mais pessoas com base na afetividade e na consensualidade. Além disso, é necessário que exista um único núcleo familiar e que todos os integrantes do núcleo se relacionem entre si.
Com tais características as uniões poliafetivas poderão ser equiparadas às uniões estáveis convencionais para fins de proteção estatal, de modo que a única diferença é o número de integrantes da relação.
Destarte, depreende-se que as relações amorosas entre três ou mais pessoas, denominadas poliafetivas, constituídas com a intenção de formar família e fundadas na convivência contínua, duradoura e pública, merecem ser reconhecidas como entidades familiares perante o ordenamento jurídico, em virtude das previsões inclusivas instituídas pela Carta Magna de 1988.
Entretanto, o ordenamento jurídico brasileiro vigente é omisso, de maneira que deixa de tutelar expressamente as uniões poliafetivas e, por conseguinte, ignora completamente uma realidade social vivenciada por diversas famílias.
Inobstante, com o intuito de demonstrar que, apesar da omissão do legislativo em tutelar os efeitos decorrentes das uniões poliafetivas, as previsões constitucionais inclusivas reconhecem inúmeras modalidades de entidades familiares, no decorrer do presente trabalho foram abordados diversos princípios aplicáveis aos relacionamentos familiares não tradicionais.
Diante da busca contínua do ser humano pela felicidade, observamos que nada pode refrear o surgimento de relações amorosas não tradicionais e plurais. A monogamia deve ser empregada apenas como valor, pois se revela padrão de conduta, de forma que compete a cada pessoa julgar conveniente adotá-la, ou não, como estilo de vida.
Por conseguinte, como todas as demais entidades familiares, as uniões plurais produzirão efeitos pessoais e patrimoniais. Conquanto, o presente trabalho científico analisou, com exclusividade, os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução inter vivos das entidades familiares poliafetivas, estabelecendo o modo adequado de efetivar a partilha de bens.
Em virtude da ausência de tutela jurídica específica, aos relacionamentos poliafetivos devem ser aplicadas, por analogia, as regras previstas às uniões estáveis, isso porque é a modalidade de relacionamento que resguarda maior semelhança estrutural.
Assim sendo, os efeitos jurídicos patrimoniais são reflexos naturais da relação travada entre os conviventes, razão pela qual independem da vontades dos envolvidos.
Tanto na união estável quanto na união poliafetiva os conviventes podem firmar contrato particular de convivência, estabelecendo o que quiserem, inclusive o regime de bens aplicável. Em caso de omissão o regime patrimonial será aquele indicado pela legislação, atualmente aplica-se o regime da comunhão parcial. A única diferença é que na união estável o pacto dos conviventes poderá ser materializado através da lavratura de escritura pública, o que não é permitido para as uniões poliafetivas, considerando a proibição exarada pelo Conselho Nacional de Justiça.
Assim como na união estável, as uniões poliafetivas também se constituem e se extinguem sem a necessidade de chancela estatal, de modo que a escritura pública revela-se apenas uma solenidade.
Foi constatado que atualmente os relacionamentos poliafetivos são banidos à seara do direito obrigacional, apenas para fins patrimoniais, com a finalidade de prevenir o enriquecimento ilícito de quaisquer dos integrantes do relacionamento e realizar a partilha dos bens onerosamente adquiridos durante a relação, mediante comprovação do esforço mútuo.
No entanto, a solução apresentada atualmente revela-se insuficiente, de forma que, tendo em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, a partilha de bens decorrente da dissolução inter vivos deve ser realizada de modo distinto e, consequentemente, mais justo e eficiente.
Existindo consenso os companheiros podem resolver as questões patrimoniais sem intervenção estatal, mediante celebração de contrato particular, ainda que tenham sido adquiridos bens imóveis durante o relacionamento.
A respeito do modo de partilhar os bens adquiridos durante o relacionamento poliafetivo em razão da dissolução inter vivos, a triação revela-se solução adequada e efetiva para a resolução do conflito.
Nada obstante, aos relacionamentos poliafetivos formados antes da Carta Constitucional de 1988 devem ser atribuídos os mesmos efeitos patrimoniais conferidos às sociedades de fato, apenas com o intuito de evitar o enriquecimento ilícito.
Dessarte, às uniões poliafetivas constituídas após a Constituição Federal de 1988, em virtude da aplicabilidade, por analogia, das regras previstas à união estável, serão dissolvidas de acordo com o modo de fundação do relacionamento, sendo distinta entre os relacionamentos originalmente poliafetivos e aqueles inicialmente monogâmicos remodelados em poliamorosos.
Na partilha de bens decorrente da dissolução inter vivos das uniões poliafetivas os bens adquiridos onerosamente pelos conviventes durante o relacionamento devem ser divididos, observando, para isso, o regime de bens eleito ou o regime legal suplementar.
Salienta-se que, levando em consideração a presunção legal de colaboração mútua, a realização da partilha de forma igualitária entre os membros do relacionamento prescinde de comprovação do esforço comum na aquisição do patrimônio.
Nos relacionamentos amorosos originalmente poliafetivos a partilha ocorrerá de forma relativamente simples. Observando o regime de bens eleito pelos parceiros ou, subsidiariamente, o regime legal da comunhão parcial de bens, será efetuada a triação de forma proporcional entre todos os integrantes da união.
Todavia, nos relacionamentos inicialmente monogâmicos remodelados em poliamorosos a partilha deverá ser realizada em dois momentos diversos. Preliminarmente, serão divididos os bens onerosamente adquiridos durante o relacionamento monogâmico, em duas partes distintas, conforme o regime de bens escolhido pelos parceiros ou aplicado pela legislação em virtude da omissão.
Na segunda etapa da partilha, deverá ser realizada a triação dos bens onerosamente adquiridos durante o relacionamento poliafetivo, em tantas partes quanto forem os integrantes da união, de forma igualitária e compatível com o regime de bens legal ou escolhido pelos membros do relacionamento através de documento particular.
Ante o exposto, conclui-se que a tutela jurídica atualmente conferida às uniões estáveis poliafetivas dissolvidas em vida não é suficiente e adequada. Muito pelo contrário, revela-se imprescindível que o legislador, superando o preconceito e a discriminação enraizados em nossa sociedade, assim como considerando as previsões constitucionais inclusivas, regulamente expressamente os efeitos pessoais e patrimoniais decorrentes da dissolução inter vivos das uniões poliafetivas.
REFERÊNCIAS
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[1] Pós-Graduada em Direito das Famílias e Sucessões pela Instituição Damásio Educacional. Pós-Graduanda em Psicologia Jurídica pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC.
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