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Ação de divórcio e as tutelas provisórias: Urgência ou evidência?
Ação de divórcio e as tutelas provisórias:
Urgência ou evidência?
Thiago Carlos de Souza Brito[1]
Daniel Alt da Silva[2]
Natália Emmel[3]
As recentes decisões dos Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil, à luz da nova pragmática apresentada pelo Código de Processo Civil, em comunhão ao ordenamento constitucional, têm reconhecido a possibilidade de concessão provisória do divórcio. Como fundamento, dispõem que, ainda que não exista previsão específica quanto ao divórcio liminar, os casos em julgamento preenchem, no todo, os requisitos necessários a ensejar a concessão de tutela provisória consistente na decretação, in limine litis, do divórcio. Isto porque se trata de um direito potestativo e incondicional, dependendo – tão apenas e somente – da vontade de uma das partes, cabendo ao outro consorte, invariavelmente, aceitar a manifestação.
A propósito, neste mesmo sentido foi o entendimento do juízo da 3ª Vara da Família de Joinville/SC, ao deferir pedido de tutela antecipada para fins de decretar o divórcio de um casal antes mesmo da citação da parte ré. O magistrado, como razão de decidir, afirmou ser direito potestativo incondicionado, na medida em que não existe a necessidade de prova ou condição, nem mesmo de contraditório, sendo o elemento volitivo de um dos cônjuges o único requisito indeclinável.[4]
Por sua vez, a 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, levando em consideração o direito potestativo da parte, em consonância ao aludido no art. 311 do CPC, reconheceu ser plausível a sua concessão em sede de tutela de evidência. Entendeu-se, igualmente, que o contraditório poderia ser adiado, tendo em vista que a oitiva do outro cônjuge e a produção de provas outras não seriam capazes de desfigurar a vontade manifesta da parte interessada na cessação da união havida.[5]
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui posicionamento análogo: sendo o divórcio um direito potestativo, é possível a concessão de tutela de evidência para decretá-lo “diante da desnecessidade de concordância da outra parte”. A Corte paulista decretou o divórcio em sede de tutela de evidência, consubstanciado no art. 311, inc. IV, do CPC, em virtude “da EC nº 66/2010, que deu nova redação ao § 6º do art. 226, da CF, de modo a não mais exigir das partes que comprovem a culpa e o decurso de tempo para a dissolução do vínculo matrimonial”.[6]
Em suma, retiram-se dos julgados os fundamentos que seguem: a) o divórcio é um direito potestativo e irresistível; b) depende apenas da manifestação de vontade de um dos cônjuges, em atenção à autonomia privada; c) foi abolida a exigência de prévia separação judicial; d) por identidade substancial, dispensa até mesmo a própria separação de fato; e) independe de prova ou condição; e, f) prescinde o contraditório e a ampla defesa.
Entretanto, o tema, sobretudo em razão da inegável repercussão, merece uma reflexão mais aprofundada e acurada. Especialmente em obediência à metodologia processual, questiona-se qual seria o meio adequado para a concessão da tutela provisória na ação de divórcio.
Antes, algumas premissas. Nos termos da legislação pátria, certo é que o divórcio põe termo ao vínculo conjugal, dissolvendo o casamento válido, inclusive representando um direito personalíssimo dos cônjuges.[7] Ao depois, o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010 autorizou a concessão do divórcio sem a anterior decretação da separação, tampouco a observância de quaisquer prazos.
Enfim, sendo o direito de se divorciar potestativo – e, assim, irresistível –, inexiste defesa a ser realizada. E como afirma Flávio Tartuce, na medida em que se contrapõe a um estado de sujeição, o direito potestativo “encurrala a outra parte, que não tem saída”.[8] Nessa perspectiva, considerar o divórcio como direito potestativo significa reconhecer que o réu não pode se opor a ele.
Veja-se que as recentes decisões prolatadas firmam o entendimento de que se manter casado é questão que diz respeito somente às partes. Os entraves processuais, nem mesmo o princípio do contraditório, não são suficientes para postergar o reconhecimento judicial. Em verdade, a liberdade e a felicidade de um dos consortes é força motriz à sua concessão.
Partindo de tais premissas, é necessário questionar se a opção encontrada pelo Poder Judiciário é a mais adequada diante daquelas existentes no Código de Processo Civil. Ao que tudo indica, parece correto afirmar que a decisão que concede o divórcio liminarmente é satisfativa, vez que antecipa os efeitos da tutela definitiva.
Em apertada síntese, a prestação jurisdicional não pode ser concedida de forma imediata e necessita de um tempo para a prática de todos os atos até a tutela definitiva. Todavia, existem situações nas quais o legislador, ciente de que a demora pode prejudicar as partes e a efetividade da decisão, permite a concessão de tutelas urgentes. Há, de igual modo, situações nas quais a urgência não existe, mas o titular do direito assenta-se, como afirmam Fredie Didier, Paula Sarno e Rafael de Oliveira,[9] em afirmações de fato comprovadas e evidentes, de modo que a tutela satisfativa é concedida.
Eis a questão: o divórcio liminar pode ser concedido mediante a tutela provisória de urgência ou pela tutela provisória de evidência?
De um lado, as tutelas de urgência têm como característica a precariedade (decisão interlocutória), ou seja, são aptas a serem substituídas por outra decisão que seria definitiva (sentença). Além disso, é baseada em cognição sumária, não exauriente, ainda dependente de aprofundamento do contraditório pelas partes no curso do processo. Aliás, exatamente por ainda ser suscetível de modificação ou revogação (art. 296, caput, do CPC), tem como último elemento identificador a inaptidão para tornar-se indiscutível pela coisa julgada.
Ora, considerando que na ação de divórcio o direito exercido pela parte autora é potestativo e independe da concordância, o elemento da sumariedade, ao nosso sentir, fica prejudicado. Isso porque não há uma análise superficial do objeto litigioso, mas sim uma cognição completa e exauriente, vez que os requisitos para a sua concessão são i) a certidão de casamento válida, provada por meio de documento público (arts. 405 e 406 do CPC) e ii) a manifestação de vontade da parte no sentido de extinguir o vínculo matrimonial. Assim, a cognição realizada pelo julgador é exauriente e, portanto, definitiva. É dizer: não há nada que a parte adversa possa suscitar em contestação para afastar a pretensão do autor. Logo, não parece ser a tutela provisória de urgência o instrumento procedimental adequado para a solução da conturbada temática.
De outro lado, a tutela provisória de evidência é, ainda segundo Fredie Didier, Paula Sarno e Rafael de Oliveira,[10] técnica processual que distribui o ônus do tempo do processo, para permitir a antecipação dos efeitos da tutela definitiva, desde que atendidos cumulativos seus dois pressupostos, a saber: prova das alegações de fato e probabilidade de acolhimento da pretensão. Interessante destacar que prescinde ela o risco de dano. O que importa é a existência de um fato jurídico processual, no sentido de que as afirmações de fato estão devidamente comprovadas.
Considerando o que foi até aqui exposto, parece correto sustentar que o divórcio, caso seja requerido pela parte, pode ser concedido em sede de tutela de evidência, baseado na hipótese do inc. IV do art. 311, a saber, “a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.” Contudo, existe um robusto problema em tal argumento, decorrente do disposto no parágrafo único do art. 311 do CPC.
O mencionado dispositivo limita a concessão liminar da tutela provisória de evidência apenas nas situações indicadas nos inc. II e II do mesmo art. 311. E o legislador fez constar a restrição também no art. 9º, parágrafo único, inc. II, do CPC. Liminar, como é sabido, significa decisão sem a formação do contraditório. Em outras palavras: em uma primeira leitura, também não seria possível a concessão do divórcio liminar com suporte no citado inc. IV do art. 311 do CPC.
De fato, a melhor solução seria o aperfeiçoamento normativo, com a modificação dos mencionados artigos do CPC para incluir expressamente o inc. VI do 311. No entanto, mesmo na contramão da mais rigorosa cátedra, quiçá representando ativismo judicial, propomos uma interpretação ampliativa do parágrafo único do art. 311 do CPC. A rigor, a Emenda Constitucional nº 66/2010, ao facilitar a concessão do divórcio, tem como objetivo claro prestigiar a liberdade do individuo, de modo a permitir a extinção do vínculo matrimonial sem maiores entraves. Por sua vez, considerando que o processo é um instrumento que deve se adequar às necessidades do direito material, não se mostra adequada a restrição de concessão da tutela provisória de evidência quando o próprio legislador constitucional retirou os obstáculos para a sua imediata concessão. Em complemento, cumpre referir que o art. 4º do CPC, de natureza principiológica, estabelece que as partes têm o direito de obter, em prazo razoável, a solução integral do mérito. Restringir a concessão liminar da tutela de evidência em ação de divórcio, ao fim e ao cabo, é prestigiar o contraditório sem respaldo no Direito material
Diante disso, parece acertada a linha de raciocínio trilhada pelas decisões dos Tribunais de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Estado de São Paulo, ao efeito de autorizarem, liminarmente, a concessão da tutela de evidência do divórcio, com vistas a prestigiar a autonomia privada e o princípio da liberdade mediante a utilização do meio processual adequado para tanto. Sem sofismas, os anseios da sociedade devem ser levados em apreço, de modo a promover uma tutela jurisdicional mais democrática, humana e eficaz.
[1] Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela FDUFMG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP. Membro fundador do Instituto de Direito Processual – IDPro. Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Advogado. Email: thiago@thiagobritoadvocacia.com.br
[2] Mestre pela UniRitter. Professor do Curso de Especialização em Direito de Família e Sucessões da FMP. Conselheiro Fiscal do IBDFAM/RS. Advogado. E-mail: daniel.alt@soutocorrea.com.br
[3] Bacharel em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP. Advogada. Email: nati_emmel@hotmail.com
[4] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/juiza-decreta-divorcio-de-casal-em-joinville-antes-mesmo-da-citacao-do-marido
[5] TJRJ, 20ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 0042493-26.2019.8.19.0000, Desa. Maria da Glória Oliveira Bandeira de Mello, j. 07.08.2019.
[6] TJSP, 9ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2267701-33.2018.8.26.0000, Des. José Aparício Coelho Prado Neto, j. 22.11.2019.
[7] Vale esclarecer que não é ignorada a concepção jurisprudencial de continuidade do processo de divórcio após o falecimento de um dos cônjuges, o denominado divórcio post mortem. Exemplo: TJMG, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 1.0000.17.071266-5/001, Des. Oliveira Firmo, j. 29.05.2018.
[8] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral. Vol. 1. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
[9] DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Vol. 2. 10ª Edição. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 568.
[10] Idem, p. 568.
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