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Como enfrentar um perito psicólogo
Em um primeiro momento, pensei ter entendido o porquê de tal pergunta e o seu sentido. Este interlocutor, atuando como porta voz de um certo número de homens, expressava toda a angústia contida em uma situação como esta. Tendo atuado como perito psicólogo em casos de suspeita de abuso sexual, pude entrar em contato com a ansiedade e a angústia inerentes a uma situação em que se cogita que tal ato tenha existido entre um pai e um (a) filho(a).
Estatisticamente sabemos que o número de homens acusados e de casos comprovados de perpetradores masculinos supera o de sua contrapartida por mulheres. Porém, pensando um pouco numa possível resposta me dei conta que ela era uma “falsa pergunta”. Porque a pergunta já traz em seu bojo a resposta, ou pelo menos, retira totalmente a razão de ser de uma pergunta anterior: Ocorreu abuso sexual entre pai e filho (a)? De que natureza? Em que circunstâncias? E se não ocorreu, por que se levanta tal suspeita? Há uma acusação sabidamente infundada feita propositadamente por outra motivação? Ou se trata de uma reação “exagerada” da mãe em função de algum “indício” mal interpretado?
Se o pai foi injustamente acusado pela mãe já estaria, do ponto de vista da perícia, definida a sua conclusão. Enquanto realizador da avaliação pericial psicológica necessito deixar todas as hipóteses o mais aberto possível até que possa, por meio de uma convergência de dados, fechar algum diagnóstico. Portanto, em relação à pergunta inicial que exprime uma angústia real (na pergunta), mas que é representativo da angústia da situação frente ao perito eu diria: Não há como aplacar tal angústia a priori. Não há um “treino” possível ou forma de escapar as necessárias fontes de tais angústias: Será que ele (o perito) vai me entender? Será que ele vai acreditar em mim? Será que ele vai me dar o “benefício da dúvida”? Eu diria até mais, por parte do profissional que realiza a avaliação não há melhor forma de se aproveitar da situação de atendimento vis-à-vis do que deixar aflorar e observar a manifestação de tais angústias.
No fundo a pergunta inicial é um tanto capciosa e parcial, parte do princípio que aquele periciando é “inocente”. E se não for o caso? Será que uma orientação bem intencionada não corre o risco de ser “aproveitada” por um pai perverso e utilizada a seu favor? Que garantias o psicólogo tem que sua orientação será lida e seguida apenas por pais “injustamente acusados” e não por aqueles outros não tão injustamente acusados? Talvez isto venha a revelar uma grande resistência em se aceitar que existam pessoas que possam cometer abusos sexuais em relação a crianças, e, principalmente em relação às suas próprias.
O CEARAS – Centro de Estudos e Atendimento Relativo ao Abuso Sexual do Departamento de Medicina da USP que vem realizando suas atividades em São Paulo desde 1993 trabalha com uma clientela específica de famílias com ocorrência de abuso sexual intrafamiliar encaminhado pela justiça (COHEN e FIGARO, 1996). A existência do serviço e de sua clientela são provas cabais de que tais atos existem. Ainda mais, o CEARAS somente trabalha com casos que estão sendo ou já foram legalmente processados. Quantos casos que não foram à Justiça podem existir? Não há estatísticas seguras, mas supõe-se que haja vários casos de abuso que não foram e nunca serão reportadas ao Judiciário.
O criador da Psicanálise, Sigmund Freud, também teve a oportunidade de atender a uma vítima de abuso sexual intrafamiliar. É o exemplo apresentado de Katharina que compõe os casos clínicos pré-psicanalíticos datados de 1895. Katharina é uma jovem de dezoito anos que lhe faz uma consulta informal a respeito de seus sintomas. Ao seguir as associações da moça e conversando sobre o que Katharina teria visto ou sentido, chega-se a um evento sexual traumático. O tio tentara abusar sexualmente dela da mesma forma que ela descobre - é aí que eclodem seus sintomas (dificuldade de respiração, tontura, pensamento de morte e visão de um rosto que a assusta), que o tio estaria fazendo o mesmo com sua prima. Ao denunciar o fato à tia, precipitou a separação judicial do casal e o ódio do tio para com ela. É por meio de uma nota acrescida em 1924 que Freud diz poder abandonar a discrição e revelar que Katharina, na verdade, era filha e não sobrinha, tendo sofrido tentativa de abuso sexual pelo próprio pai (p. 133). Não sabemos as decorrências jurídicas deste caso, mas este bem poderia ser um caso de Vara de Família em que restrições à visita ao pai seriam levantadas pela mãe.
Tivemos a oportunidade de mostrar que a acusação de abuso sexual dentro de casos de Vara de Família assume um aspecto diferenciado (Shine, 2003). Segundo os pesquisadores americanos THOENNES e TJADEN (1990) em uma amostra de 9.000 famílias em disputa de guarda e/ou visita, em menos de 2% dos casos foi feita a alegação de abuso (169 casos). No entanto, em metade dos casos avaliados com tal queixa, os peritos concluíram que houve abuso sexual. Desconheço trabalhos que abordem a realidade nacional a fim de podermos comparar nossos dados. Contudo, de forma empírica podemos afirmar que os casos onde se levantam suspeitas de abuso têm crescido em nosso dia-a-dia. Este dado também é corroborado por pesquisadores de outros países (AWAD e MCDONOUGH,1991; THOENNES e TJADEN, 1990).
É preciso lembrar que o recurso à Psicologia para respaldar uma ocorrência de abuso sexual se dá pela inexistência de evidências físicas que possam provar a materialidade dos fatos. Busca-se, então, a partir do discurso da criança uma forma de comprovação do ato. E esta comprovação esbarra na dificuldade do profissional se valer de instrumentos que não foram criados para afirmar a ocorrência de um fato na realidade, mas sim de apreciar sua existência psíquica. Ela sempre será uma inferência a partir de elementos do mundo psíquico, das representações mentais acessíveis a partir destes instrumentos. Por exemplo, em um teste projetivo infantil a criança pode contar uma estória na qual a protagonista criança é maltratada pela figura paterna. Isto não pode e não deve ser interpretado de forma simplista como uma comprovação de que ela sofra algum tipo de abuso físico de seu pai. A partir do dado isolado do teste somente podemos afirmar que existe a representação psíquica em que uma criança é maltratada por um adulto. Este resultado por si só não permite a inferência de um fato real ter acontecido, muito menos identificar o pai como o perpetrador. E portanto, a questão do abuso retorna na própria instância da avaliação psicológica pelo risco do profissional psicólogo extrapolar demais as suas conclusões sem ter em que se apoiar, o que constituiria em uma outra forma de abuso com conseqüências sérias a todos os envolvidos. Estamos trabalhando, enquanto peritos psicólogos, na fronteira entre a realidade psíquica e a ocorrência de um fato real altamente mobilizadora – o que sempre nos remete à dimensão ética deste trabalho e de seus limites.
* Psicanalista, Especialista em Psicologia Clínica e Psicologia Jurídica, Mestre em Psicologia (USP), Psicólogo Perito Judicial
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AWAD, G.A.; McDONOUGH, H. “Therapeutic management of sexual abuse allegations in custody and visitation disputes”. In: American Journal of Psychotherapy, v. 45, n.º 1, p. 113-123, 1991.
COHEN, C.; FIGARO, C.J. “Crimes relativos ao abuso sexual”. In: COHEN, C.; FERRAZ, F.C.; SEGRE, M. (Org.) Saúde Mental, Crime e Justiça. São Paulo, EDUSP, p.149-169, 1996.
FREUD, S. (1896). Caso 4 dos Casos Clínicos. In: FREUD, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, vol. II.
SHINE, S. Abuso sexual de crianças. In: GROENINGA, G. C.; PEREIRA, R. C. (Coord.) Direito de Família e Psicanálise. Rumo a uma Nova Epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, p. 229-251, 2003.
THOENNES, N.; TJADEN, P.G. “The extent, nature, and validity of sexual abuse allegations in custody/visitation disputes”. In: Child Abuse & Neglect, v. 14, p. 151-163, 1990.
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