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Somos estelionatários
Somos estelionatários
Há cerca de 27 ano na lida com a lei nº 8.069/90, mais conhecida como ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, me vejo como uma grande estelionatária jurídica. Alguns, até, me concedem o título de a maior estelionatária do mundo da adoção. E, pasmem, eu deveria sentir um enorme orgulho desse título.
Estelionato, segundo o Oxford Language, é o termo jurídico que identifica a fraude praticada em contratos ou convenções, que induz alguém a uma falsa concepção de algo com o intuito de obter vantagem ilícita para si ou para outros; burla.
Já o famoso artigo 171 do Código Penal assim determina:
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. (grifos nossos)
Descobri-me estelionatária aos 60 anos, pertinho dos 61, exatos 16 dias faltam para isso, talvez seja essa fase do inferno zodiacal que me colocou no caminho do crime, ou da contravenção.
Lembro-me, como se hoje fosse, que no dia 28 de janeiro de 1994 inseri-me pela primeira vez no mundo da adoção, ainda não como especialista na área, mas como pessoa que acreditava no instituto como uma forma de exercício real da parentalidade. Essa inserção propiciou-me um afilhado que, no próximo dia 7 de março, completará 27 anos.
A partir daí comecei a pensar a adoção, a estudar, a aprofundar-me no tema, pois, até então, era uma advogada, graduada em 1983, com especialização em direito societário por prática e econômico por formação, com atuação em grandes empresas da área química e petroquímica do país. Meu mundo girava entre acordos de acionistas, emissão de ações, dividendos, bonificações, debentures, editais de convocações, avisos a acionistas com base no artigo 133 da Lei nº 6404/76, assembleias gerais ordinárias e extraordinárias, reuniões no BNDES, BNB, etc. Posteriormente assumi a gerência de administração e de recursos humanos de uma sociedade de economia mista passando a lidar não apenas com o governo federal, mas, também, com a chamada besta do apocalipse, a lei nº 8.666/93. Anualmente esperava o DOU com a aprovação das minhas contas, só assim tinha a certeza de continuaria dona dos meus próprios bens e, sempre foram aprovadas.
Assim, saí incólume da administração pública, sem uma mácula sequer na minha carreira para, do nada, trabalhando com a alma e com o coração, sendo voluntária, exercendo em grande parte trabalho pro bono, ver me transformada em estelionatária.
Sou coordenadora de 3 grupos de apoio à adoção, grupos esses que contam com respaldo legal na forma do artigo 197 C do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 197-C. Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios desta Lei.
§ 1 o É obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos grupos de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da Infância e da Juventude, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos.
§ 2 o Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da preparação referida no § 1 o deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional, a ser realizado sob orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude e dos grupos de apoio à adoção, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento familiar e institucional e pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.
§ 3 o É recomendável que as crianças e os adolescentes acolhidos institucionalmente ou por família acolhedora sejam preparados por equipe interprofissional antes da inclusão em família adotiva.
Foi, inclusive, através dos trabalhos desempenhados à frente dos grupos de apoio á adoção que me fiz conhecida pelo IBDFAM e cheguei á Comissão de Adoção do Instituto, que agarrou a pauta com um afinco memorável criando, inclusive, o projeto Crianças Invisíveis e tratando crianças e adolescentes como sujeitos de direitos com a prioridade absoluta que nunca tiveram em nosso país.
Mas, voltando ao estelionato, aviso que todos nós do IBDFAM somos, de igual forma, em maior ou menor profundidade, igualmente estelionatários ao garantirmos aos pretendentes à adoção que terão segurança jurídica quando acionarem o judiciário e pontuo:
- Ninguém devidamente habilitado que recebe uma criança ou adolescente em guarda provisória para fins de adoção terá garantia jurídica de que o processo de adoção transcorrerá sem problemas;
- Em 14/01/2021 são 30.293 crianças/adolescentes acolhidos, sendo 5.061 já destituídos do poder familiar, assim você terá uma enorme chance de ser convocado para uma criança não destituída do poder familiar e, portanto, com possibilidade de enfrentar litígio com a família de origem;
- A lei nº 13.509/2017 determinou que um processo de adoção tem duração de 120 dias, podendo ser prorrogado por uma única vez por igual período. Sim, está previsto no artigo 47, parágrafo 10 do ECA, mas ninguém cumpre e, antes que você pergunte, não há qualquer sanção pelo descumprimento;
- A ação de destituição do poder familiar tem duração igualmente prevista de 120 dias e, nesse caso específico, sequer há prorrogação. É o que determina o artigo 163 do ECA, mas o prazo médio real é de 7 anos e meio, é o que consta do Relatório da Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria e devidamente inserida no site do CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Mais uma vez, não há qualquer sanção pelo descumprimento dos prazos e nada, absolutamente nada foi feito para equacionar tamanha morosidade.
Sou estelionatária, mas junto comigo caminham todos os magistrados, promotores de justiça, defensores públicos, equipes interdisciplinares, rede de apoio às crianças e aos adolescentes, executivo, legislativo, judiciário e sociedade civil. Atentamos diariamente contra a vida de cada criança existente no Brasil com nossa inércia e incapacidade de vê-las como sujeitos de direitos.
Cometemos, diariamente, crimes hediondos contra essa parcela vulnerável da população ao mantê-la invisível e ao não cobrarmos providências, ao não exigirmos punições ao que têm por obrigação vê-las, acolhê-las, dar-lhes condições de vida e de exercício pleno da cidadania.
Pela voz dos cidadãos o Provimento nº 36 da Corregedoria Nacional de Justiça foi editado em 2014 em atendimento ao clamor causado pela decisão teratológica do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no caso da Menina Duda. Agora, 6 anos depois, o mesmo Tribunal de Justiça adota decisão de igual teratologia, ou, quiçá, ainda mais absurda, com a menina Vivi, e pergunto até quando teremos que gritar para que absurdos não sejam cometidos? Até quando teremos que exigir que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja incluído como matéria obrigatória do curso de direito? Em 2013 fizemos isso, batemos em todas as portas em Brasília, realizamos audiências públicas e, fora o Provimento nº 36 do CNJ – até hoje não cumprido – nada, absolutamente nada foi feito.
Então, sou estelionatária confessa ao dizer a você, que está se habilitando hoje, que existe isonomia entre todas as formas de parentalidades, que existe prioridade absoluta para o sujeito de direitos criança e adolescente, que o instituto da adoção é algo sério e prestigiado pelo judiciário.
Que minto ao dizer que o parágrafo 6º do artigo 227 da Constituição da República Cidadã é verdade, e que seus filhos e filhas, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, pois serão discriminados pelo próprio poder judiciário ao negar-lhes o direito ao nome afetivo ou ao considerar que a amamentação a um filho por adoção constitui-se em distúrbio psicológico.
Minto, ainda, ao dizer insistentemente a vocês, nas inúmeras reuniões em que participo, que a adoção é um ato de amor, pois é um ato de coragem. Para adotar você tem que tirar forças das entranhas para lidar como a omissão, com o pouco caso, com a desconsideração para com a criança e para com você.
Sim, nós somos o resto, a última parte, o que sobra do desafeto, do abandono, do abuso, do desejo, pois, é no seio de sua família natural que a criança e o adolescente devem ser criadose, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. Não importa se esse seio tenha o cheiro da morte de seus ancestrais, não importa que nesse seio conviva aquele que lhe usou como isca para o assassinato torpe de seu próprio ancestral de sangue e não importa se esse sangue não signifique absolutamente nada. Afinal, o que importa e para quem importa para quem veste toga se sou eu a estelionatária?
Conclamo estelionatários e estelionatárias do Brasil a se unirem por esses e essas que não têm voz, que não votam, que não são economicamente ativos, que estão jogados nos calabouços do que têm a desfaçatez de chamar acolhimento, jogados para debaixo do tapeta da sociedade, invisíveis ou invisibilizados, e pior, desaparecidos durante a pandemia, a escancararem que nada foi feito do dia 5 de maio de 2014 – data da publicação do Provimento nº 36 do CNJ -, que nada foi feito depois do dia 29 de maio de 2014 – data da Audiência Pública nº 0768/14 da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal – e nada será feito se nos acomodarmos a nossa passividade e conivência com o genocídio da infância brasileira. Não são apenas Dudas, Vivis, João Marcelo, Nicholas, Danilo, Monte Santo, Belo Horizonte, Contagem, Coronel Fabriciano, são muitos Brasil de total invisibilidade daqueles e daquelas que têm a prioridade absoluta desrespeitada a cada segundo, todos os dias.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Silvana do Monte Moreira
Presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM
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