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Ética da vida: um pouco de filosofia
Ética da vida: um pouco de filosofia
Christiane Torres de Azeredo[1]
A consciência dos direitos humanos é uma conquista da humanidade. A vida é o bem supremo por excelência, e antes de ser um direito, também é pressuposto e fundamento de todos os outros direitos – condiciona os demais direitos da personalidade.
O controle sobre a mulher pode ser dividido em três momentos históricos: na Antiguidade, permeado pelo pensamento de Aristóteles, para quem a diferença entre os sexos estava relacionada às diferenças de calor que homem e mulher tinham em seus corpos, e desse modo, o responsável pela geração do feto era o pai, pois somente ele tinha o calor vital necessário à formação da vida; o segundo momento histórico tem início com os estudos de Galeno, e sua fundamentação sobre a identidade dos dois sexos. Para ele, os órgãos genitais do homem e da mulher não eram essencialmente diferentes, e seguindo a tradição aristotélica, fazendo referencia ao calor corporal de homens e mulheres, para ele, a mulher era mais fria do que o homem, portanto, o homem era mais perfeito; o último momento histórico, imerso em grandes transformações sociais, políticas e econômicas em que o feminino passa a ser exaustivamente estudado e reinterpretado, a fim de se criar uma nova hierarquia entre o masculino e o feminino, foi influenciado, principalmente pelo pensamento de Rousseau. Surge a necessidade de justificar a hierarquia de gênero e a exclusão da mulher do espaço público e restringi-la ao espaço privado, doméstico. Nessa perspectiva, o fundamento utilizado foi a diferença biológica natural entre os sexos, e de acordo com essas diferenças, propor funções diferenciadas conforme a morfologia sexual, decorrendo daí a ideologia da diferença e da complementaridade dos sexos (EMMERICK, 2008, p. 50-51).
Rousseau não enxergava a mulher como inferior ou imperfeita, ao contrário, ele a entendia como perfeita para sua especificidade, dadas as suas características biológicas e morais. E foi essa ideologia que legitimou a associação das mulheres aos afazeres domésticos e à maternidade (EMMERICK, 2008, p. 52).
A modernidade teve como grande fundamento na construção do feminino a figura da mulher associada à maternidade ou ao matrimônio, logo, o direito brasileiro não poderia surgir de modo diferente, pois desde a época da colonização do Brasil, há hierarquia entre os sexos.
Por essa razão é que as questões que envolvem corpo, sexualidade e reprodução, por carregarem não apenas uma discussão moral e ética sobre a vida são objetos de controle ao longo da história humana. Em seus exímios estudos, Foucault (1988, p. 98) assevera que:
Nas relações de poder, a sexualidade não é o elemento mais rígido, mas um dos dotados de maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias. Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações de sexo: a ideia, por exemplo, de muitas vezes se haver tentado, por diferentes meios, reduzir todo o sexo à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não se explica, sem a menor dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ação nas políticas sexuais concernentes aos dois sexos, as diferentes idades e classes sociais.
Além do mais, acrescenta que:
[...] Se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constituídas de sua organização. […] O poder está em toda parte; não porque engloba tudo, e sim porque provém de todos os lugares (FOUCAULT, 1988, p. 88-89).
A mulher sempre esteve em condição de mera reprodutora, cabendo a ela gestar, parir e amamentar. Ocorre que, o Estado Democrático de Direito garante a igualdade e plena liberdade, bem como a autonomia privada e o direito à saúde como direito personalíssimo tutelado pelo Estado.
Sabemos que os direitos humanos são direitos históricos, constituindo verdadeiro parâmetro ético universalista, e o mais importante aspecto da definição dos direitos reprodutivos é que são direitos humanos, e a filosofia é a área de saber que se propõe questionar o sentido da ética e do aperfeiçoamento moral da humanidade, assim, é preciso aprofundar o significado e a prática ética de ações morais.
A moralidade corresponde à conduta ou valoração da ação humana, e daí podemos afirmar que o problema do discurso moral deriva exatamente da valoração da conduta humana.
Como a existência do homem é guiada por aquilo que ele faz e acredita, dando então sentido a vida, a ciência seria incapaz de compreendê-lo em sua plenitude de modo a resolver os problemas humanos, por isso que o discurso da ética da vida se torna tão impactante para a sociedade.
Ao distinguir moral e ética, Krohling (2011, p. 18-19), afirma que moral é um sistema de condutas, costumes, regras e valores, que regulamentam as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade e ética está relacionada a questão do caráter das pessoas e à moradia do ser, sendo imprescindível distinguir etimologicamente entre duas palavras gregas êthos e éthos é costume, hábito ou o conjunto de valores culturais socializados de geração em geração através da tradição cultural, em geral traduzidos no latim por mos (costumes) ou mores (costumes, ou moralis (o adjetivo moral, ou moralitas (moralidade). éthos (com é pequeno) significa a morada, o abrigo permanente dos animais, ou dos seres humanos, que necessita fisicamente de um topos (lugar). Torna-se o éthos um modo de ser, o caráter da pessoa, uma marca ou sigilo firmado pela razão (logos) que distingue o homem dos animais e em busca do viver bem, morar bem, sendo o princípio originário de manter-se vivo e sempre cuidando do seu corpo e da natureza que é parte do próprio homem. Éthos ou ética na sua tradução literal tem relação com princípios fundadores das práxis humana como preservação da vida e do cosmos circundante. Daí a relação de éthos e óikos (casa) e tópos (lugar) e no latim arcaico com a palavra coera, depois cura (cuidado), que significa preocupação, amizade e amor. A ética está relacionada com a prática da virtude e está no campo da filosofia segunda que é a práxis.
Daí a relação com a ética da vida de todos os seres sencientes e cósmicos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos marca um novo ciclo na história da humanidade, pois, qualquer que seja a intervenção sobre a pessoa humana, esta deve se subordinar a preceitos éticos.
O paradigma universal deve ser o respeito à dignidade da pessoa humana, que constitui fundamento do Estado Democrático de Direito, e este é o valor que sempre deverá prevalecer.
REFERÊNCIAS
EMMERICK, RULIAN. Aborto: (des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade do saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
KROHLING, Aloisio. A Ética da Alteridade e da Responsabilidade. Curitiba: Juruá, 2011.
[1] Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Assessora de Juiz no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES). E-mail: christianetazeredo@gmail.com
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