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Uniões simultâneas nos tribunais
Uniões simultâneas nos tribunais
Christiane Torres de Azeredo[1]
O casamento brasileiro é essencialmente monogâmico. A monogamia foi erigida à condição de princípio jurídico a teor dos artigos 1.597, 1.598 e 1.600 do Código Civil de 2002, e está ligado à noção de família legítima oriunda do casamento e merecedora de tutela do Estado e família ilegítima, proveniente do concubinato e excluída desse âmbito de proteção.
Além de constituir um princípio básico das relações familiares ocidentais, também se tornou um comportamento natural, criado historicamente e sociologicamente como uma regra do Estado. E é com base na fidelidade ao regime monogâmico das relações conjugais, que o artigo 1.521, inciso VI, do CC impede que se unam pelo matrimônio pessoas que já sejam civilmente casadas, ao menos enquanto não for extinto o vínculo conjugal, pela morte, pelo divórcio ou pela invalidade judicial do matrimônio.
Tanto é assim, que diversos são os precedentes dos nossos Tribunais Superiores quanto a importância da monogamia, e nesse sentido, segue precedente do Supremo Tribunal Federal, verbis:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO COMPANHEIRA E CONCUBINA - DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL - PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO - SERVIDOR PÚBLICO - MULHER - CONCUBINA - DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina (STF, RE 59.0779/ES, Rel. Min. Marco Aurélio, Julgado em 10/02/2009, Publicado em: 27/03/2009).
Além do mais, é digna de menção a posição do Superior Tribunal de Justiça, verbis:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO CONCOMITANTE. DEVER DE FIDELIDADE. INTENÇÃO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. AUSÊNCIA. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1º e 2º da Lei 9.278/96. 1. Ação de reconhecimento de união estável, ajuizada em 20.03.2009. Recurso especial concluso ao Gabinete em 25.04.2012. 2. Discussão relativa ao reconhecimento de união estável quando não observado o dever de fidelidade pelo de cujus, que mantinha outro relacionamento estável com terceira. 3. Embora não seja expressamente referida na legislação pertinente, como requisito para configuração da união estável, a fidelidade está ínsita ao próprio dever de respeito e lealdade entre os companheiros. 4. A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade. 5. Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade - que integra o conceito de lealdade e respeito mútuo - para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. [...] (STJ, REsp 1.348.458/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Julgado em 08/05/2014, Publicado em: 25/06/2014).
Ora, que dois casamentos não podem ser válidos, isso é certo. A bigamia é crime (art. 235, CP), e acarreta a nulidade do segundo casamento (art. 1.548, inciso II c/c art. 1.521, inciso VI, CC). Além disso, como os efeitos jurídicos da união estável são equiparados ao do casamento civil (artigo 226, §3º, CF), então as relações devem ser monogâmicas, não admitindo que à união estável possa ocorrer duas uniões concomitantes (art. 1.723, caput e §1º, CC).
Não é admitida a poligamia em nosso ordenamento jurídico. Deste modo, relações concomitantes são consideradas extraconjugais, ou seja, uma relação concubinária (art. 1.727, CC). Assim, somente diante de separação de fato no casamento ou de dissolução da união estável, é que pode ser constituída outra união estável. Por esta razão é que o Supremo Tribunal Federal distingue a união estável do concubinato:
COMPANHEIRA E CONCUBINA – DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. União estável – proteção do Estado. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato (...) Percebe-se que houve um envolvimento forte, projetado no tempo – 37 anos –, dele surgindo prole numerosa – nove filhos -, mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de haver sido mantido o casamento com quem Valdemar contraíra núpcias e tivera onze filhos (...) No caso, vislumbrou-se união estável, quando, na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no artigo 1.727 do Código Civil. (...) O concubinato não se iguala à união estável referida no texto constitucional, no que esta acaba fazendo as vezes, em termos de consequências, do casamento. Tenho como infringido pela Corte de origem o parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal, razão pela qual conheço e provejo o recurso para restabelecer o entendimento sufragado pelo Juízo na sentença prolatada (STF, RE 397.762/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, Julgado em: 03/06/2008, Publicado em: 12/09/2008).
Também está consolidada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que nega efeito jurídico à relação paralela à união estável, vejamos:
[...] no tocante ao mérito da controvérsia, este Tribunal Superior consagrou o entendimento de ser inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas. Assim, se uma relação afetiva de convivência for caracterizada como união estável, as outras concomitantes, quando muito, poderão ser enquadradas como concubinato [...] (STJ, AgRg no Ag 1.130.816, Rel. Min. Vasco Della Giustina, Julgado em: 19/08/2010, Publicado em: 27/08/2010).
Diante da apresentação desses julgados que formam a jurisprudência consolidada nos tribunais superiores do Brasil, pode-se observar que a união com mais de uma pessoa é legalmente coibida.
A tendência jurisprudencial ainda é muito conservadora, não admitindo a geração de efeitos jurídicos às relações conjugais simultâneas. O STJ e STF não reconhecem as famílias paralelas, tratando-as como concubinato e excluindo qualquer direito. Contudo, as uniões paralelas suscitam um constante duelo pela possibilidade de seu reconhecimento, trazendo à tona uma realidade que é a existência não de concubinatos, mas sim, de famílias paralelas.
Assim, alguns julgados, mormente oriundos do TJRS, têm reconhecido e tutelado situações de simultaneidade conjugal, voltando os olhos para o novo e conferindo efeitos familiares às relações concubinárias. Podemos citar, a título de ilustração, as seguintes ementas:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO PARALELO AO CASAMENTO. Se mesmo não estando separado de fato da esposa, vivia o falecido em união estável com a autora/companheira, entidade familiar perfeitamente caracterizada nos autos, deve ser mantida a procedência da ação que reconheceu a sua existência, paralela ao casamento. A esposa, contudo, tem direito sobre parcela dos bens adquiridos durante a vigência da união estável. [...] (TJRS, Apelação Cível nº 70015693476, Rel. Des. José S. Trindade, Julgado em 20/07/2006).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE AUTORIZA O RECONHECIMENTO. SENTENÇA QUE MERECE MANTIDA. AGRAVO RETIDO DESPROVIDO. PEDIDO DA AUTORA PARA SER NOMEADA COMO ADMINISTRADORA DOS BENS DO ESPÓLIO. DESCABIMENTO NO CASO CONCRETO. O PEDIDO DA AUTORA ENVOLVE QUESTÕES QUE DEVEM SER LEVANTADAS, DISCUTIDAS E DECIDIDAS NOS AUTOS DO INVENTÁRIO DOS BENS DEIXADOS PELO FALECIDO. Demonstrado que, mesmo não estando separado de fato da esposa, o falecido viveu por mais de cinqüenta anos em união afetiva com a autora, resta configurada a união estável paralela ao matrimônio, com todos os requisitos legais pertinentes. Agravo retido e Recurso de apelação desprovidos. (TJRS, Apelação Cível nº 70028251171, Rel Des. Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 14/10/2009).
PARALELA AO CASAMENTO E OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE. PARTILHA DE BENS. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO”. ALIMENTOS. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união estável entre a autora e o réu em período concomitante ao seu casamento e, posteriormente, concomitante a uma segunda união estável que se iniciou após o término do casamento. Caso em que se reconhece a união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o réu. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. O mesmo se verificando em relação aos bens adquiridos na constância da segunda união estável. Eventual período em que o réu tiver se relacionado somente com a apelante, o patrimônio adquirido nesse período será partilhado à metade. Assentado o vínculo familiar e comprovado nos autos que durante a união o varão sustentava a apelante, resta demonstrado os pressupostos da obrigação alimentar, quais sejam, as necessidades de quem postula o pensionamento e as possibilidades de quem o supre. Caso em que se determina o pagamento de alimentos em favor da ex-companheira. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (TJRS. Apelação Cível nº 70022775605. Rel. Des. Rui Portanova – DJ. 19.08.2008).
Em decisão da 4ª Turma do STJ, em 2003, o ministro Aldir Passarinho Júnior, relator de um recurso (REsp 303.604), ao analisar a existência de dupla vida em comum de um homem com uma mulher legítima e a concubina por 36 anos, destacou que é pacífica a orientação das Turmas da 2ª Seção do STJ no sentido de indenizar os serviços domésticos prestados pela concubina ao companheiro durante o período da relação, direito que não é esvaziado pela circunstância de o morto ter sido casado.
A doutrina majoritária reconhece as uniões paralelas somente na área do direito obrigacional para não gerar um enriquecimento ilícito do cônjuge infiel, mas admite as uniões estáveis putativas desde que a segunda companheira esteja movida pela boa-fé.
Notadamente, na maioria dos casos além da concomitância familiar, há apoio material do companheiro em comum às duas famílias, ou seja, a segunda companheira também depende financeiramente do parceiro, mais uma característica da configuração de uma entidade familiar e não mero envolvimento eventual.
O mais recentíssimo caso foi julgado em plenário virtual realizado nesta última segunda-feira (14/12/2020) RE 1.045.273, no qual o STF negou o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas para divisão de pensão por morte. Por 6 votos a 5, a maioria da Corte foi contrária ao reconhecimento de duas uniões estáveis simultâneas para rateio de pensão, fixando a seguinte tese: "A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro".
Devemos deixar bem claro que aqui não estamos tratando de concubinado, e sim de vínculos de uniões concomitantes. Este vínculo é tão profundo, e tão linear é a sua constância, que a(o) tido como “amante” passa a colaborar na formação do patrimônio da(o) companheira(o) casada(o). Logo, reconhecer a união paralela como união estável, é declarar o direito da(o) companheira(o) na partilha dos bens, perdendo a característica de concubinato.
O direito não pode estar alheio à realidade humana, às mudanças sociais devem ser observadas pelos Poderes e coadunar com a realidade das situações existentes. Por essa razão, é digno de menção os entendimentos adotados pelos tribunais. O direito muda conforme o tempo, ocorre que muitas vezes atrasado às novas demandas sociais. Ignorar uma realidade latente é coadunar com injustiças, e o Direito não pode deixar anseios sociais à margem.
[1] Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Assessora de Juiz no Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES) E-mail: christianetazeredo@gmail.com
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