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Pensando o impensável: anencefalia
A anencefalia é um tema cuja abordagem requer um constante balancear da emoção, do sentimento, da ideologia, da religiosidade, da racionalidade e mesmo das racionalizações , ao irmos delimitando a intenção de nossa argumentação.
Utilizo, como fio condutor de idéias, as notícias a respeito do tema, disparadoras de questões a serem pensadas e que trazem, de modo genérico, os conhecimentos específicos das lentes especializadas em questões médicas, legais, religiosas, e outras. A pretensão é, apenas, de adiantar ponderações e questionamentos a partir de uma outra ótica de interpretação, com ênfase na visão daqueles que estão sujeitos à Lei e também às leis de outra ordem, que não estão ao nosso alcance compreender ou controlar, mas frente às quais devemos nos responsabilizar.
Em assunto assim tão delicado, acredito ser mister falar também em nome próprio, para com isto enfrentar a dificuldade do tema e o desafio à capacidade de nos colocar no lugar do Outro, imperativo da moral universal, e pensar quem é este Outro, seja uma mulher, uma mãe, um pai, os profissionais de saúde que se defrontam com a questão, que foram buscar a Justiça com a propositura da ação, e mesmo os juízes que devem julgar. Fundamental nos perguntarmos o que representa para nós este Outro, que ideologias ele estaria “encarnando” e o quanto ele estaria sendo alvo de nossa projeções .
Por características de nosso psiquismo e de nossa história, a mulher e a mãe são figuras que remetem ao desconhecido, aos mistérios da vida, e pela mesma razão são alvos privilegiados de nossas projeções, tanto nos aspectos mais sublimes quanto nos mais negativos. Como geradoras e gestadoras, são também objeto de nossos infindáveis desejos, e mesmo cobranças, a que muitas buscam, de um modo que nos é incompreensível, responder.
Desde os tempos imemoriais, as perguntas são as mesmas: o que é a vida e quando começa, de onde viemos, para onde vamos. Perguntas relativas à vida e à morte, centrais na filosofia, que os vários campos e especialidades têm procurado, cada uma à sua maneira, enfrentar. Já quanto a respondê-las de forma cabal.... envolvem mistérios que não creio estejam a nosso alcance. Pertencem inclusive àqueles abordados pela religião, mas obviamente não resolvidos pelo homem, dada sua própria natureza.
Inúmeros são os exemplos das injustiças cometidas ao longo da história quando nos arvoramos a enfrentar estas questões, que se concretizam na existência terrena, falando em nome de um conhecimento superior que, enfatizo, por natureza não podemos alcançar.
A história nos mostra que, em nome da Justiça - que o Direito busca, e que o fazem várias formas de conhecimento e ideologias, incluindo-se também a religião, outros interesses foram defendidos de modo que o conhecimento passou a ser utilizado como um desconhecimento. Em nome de ideologias, foram e são cometidas injustiças, inomináveis e impensáveis; não tão recente é o tempo da Inquisição, do Malleus Maleficarum e, mais recentes, são a guerra religiosa que fundamenta o terrorismo e os argumentos em prol da eugenia e aqueles relativos aos progressos científicos.
Na gênese de tais comportamentos encontramos, em comum, a projeção maciça, o preconceito e a intolerância advindos da dificuldade em conhecer e em lidar com as diferenças, colocando-se no lugar do Outro, sobretudo quando este Outro é a figura da mulher e da mãe que, como apontado, remetem ao desconhecido e ao misterioso.
Uma das questões que este artigo adianta diz respeito à possibilidade em diferenciar o direito à capacidade, liberdade e autonomia de decisão da mulher, do direito à liberdade de decisão baseada em argumentos formais e/ou em uma opinião e crença individual e/ou grupal. Ambos não necessariamente se opõem mas, na maioria das vezes, tratam-se de sujeitos cujas vontades são distintas.
De um lado, a mulher grávida, o respeito à dignidade que merece todo ser humano, tendo-se em vista tratar-se de um ser íntegro psiquicamente, que mantém o direito à preservação de sua integridade, com o peso do estado de gravidez. De outro lado, aqueles que, contra ou a favor da interrupção da gravidez, não menos dignos ou merecedores de respeito, mas que trazem outras fontes de conhecimento em seus argumentos. Muitas vezes são desconhecimentos e até negações que precisam ser esclarecidos.
Em questão tão difícil, creio inevitável recorrer ao que é o princípio maior – o da Dignidade da Pessoa Humana e sua contextualização trazida com o inegável avanço que são os Direitos da Personalidade. Aponte-se que estes são invocados tanto por aqueles que são a favor da interrupção da gravidez como os que são pelo seu prosseguimento sem intervenção.
Creio que às questões a respeito da vida, impõe-se fundamentalmente a qualificação do que é que nos faz humanos. Não estaria justamente na nossa capacidade de interação, sentimento e pensamento, de amor à vida e de fazer vida, que traz a dimensão de um tempo passado, presente e futuro?
Salvo engano, se aponta um conflito gestante/feto , em que discute-se de um lado o direito das mulheres em decidir versus o que seria o direito do embrião, feto, do que viria a ser um filho. Mas para que esta relação se dê na realidade, e não na virtualidade do vir a ser, é essencial a capacidade de interação intra-e inter-pessoal. Possibilidade inexistente na realidade da anencefalia, mas não na virtualidade dos sonhos, projetos e esperanças das mulheres gestantes.
Em situações-limite, há uma tendência natural ao uso do mecanismo psíquico de defesa, da negação da realidade , em que pode haver a manutenção de uma vã esperança a despeito dos fatos. Negação que pode ser exacerbada com a exigência da manutenção do estado de gravidez até sua interrupção “natural”, seja por morte fetal ou parto, em que em detrimento de uma escolha consciente, esta pode ser delegada inconscientemente às forças da natureza, por exemplo.
Diferente é quando a mulher decide conscientemente por este caminho, tendo inclusive a possibilidade de optar pela doação de órgãos. Já do lado do feto, não creio seja possível falar em personalidade, essencial à Dignidade da Pessoa Humana. A qualificação Humana ganha, nesta esteira, elevada dimensão. Trata-se de uma pessoa humana versus uma vida em que se impõe a dura realidade de que jamais terá condição de interação para o desenvolvimento da personalidade. Uma vez que o diagnóstico é claro, será que não estaríamos incorrendo em um erro de avaliação, antropomorfizando o feto anencefálico?
Nesta situação, a mulher abriga dentro de si uma vida que não se mantém de forma autônoma (como é característica da gravidez), e que se contrapõe à própria gravidez, uma vez que, em pelo menos metade dos casos, esta não continua, podendo pôr em risco a saúde, no mínimo física, da mãe. O nascimento que marca o início de uma autonomia – busca de sentido inerente à vida, será seguido de morte. Mas não a morte como considerada nos parâmetros médicos, uma vez que a falta de atividade cerebral a define - caso que não se coloca no caso da anencefalia.
Qual o fundamento de postergar o sofrimento da mãe, e mesmo o fetal? Nesta situação tão penosa, ainda lhe restaria uma escolha – a de antecipar e diminuir o sofrimento, tanto seu quando do feto. Não creio possamos imputar-lhe a culpa em exercer uma escolha, em situação de tamanha impotência, seja qual for. É ela quem sofre e sofrerá as conseqüências da escolha, que aliás poderia optar por exercer, transferindo ao destino, à uma ideologia, para fins de doação, ou religião (que tem sua autonomia, e exerce poder sobre seus fiéis). Escolha não menos digna.
Em situação tão difícil, por mais distante da realidade fática da maioria, o sofrimento e os questionamentos morais sempre, em certa medida, fazem eco. Por vezes, buscamos transferir o peso da decisão para um terceiro, que funcionaria como a consciência moral, aparentemente evitando o sofrimento e a elaboração do sentimento de culpa com que invariavelmente nos defrontamos em tais situações.
A culpa é um sentimento que se encontra no limiar do consciente e do inconsciente, um sentimento que tem suas raízes em motivações sempre em parte desconhecidas. Uma das formas que temos de fugir à responsabilidade em pensar algumas questões, é recorrer a um terceiro que decida, que se posicione, a uma ideologia que possa nos abrigar das dificuldades em nos responsabilizar por uma opinião. A responsabilidade individual encontraria assim, guarida no coletivo. Cabe enfatizar – a culpa é um sentimento que, em certa medida, independe dos atos cometidos. Por isto é mais da ordem do subjetivo e do inconsciente.
A gravidez é situação subjetiva por excelência, em que a expectativas e os sonhos são acompanhados de medos e incertezas. É vivência psíquica que acompanha as mulheres, mesmo que as modernas tecnologias auxiliem aplacando, em parte, as fantasias, ao trazer à luz as imagens da realidade do que ocorre no interior do corpo. É alto o componente emocional em uma gravidez; afinal gerar e gestar é ato de amor, o que absolutamente não torna as mulheres menos capazes de decidir, embora haja uma certa ideologia neste sentido.
A despeito dos avanços da medicina preventiva, o emocional impõe sua força, como o fenômeno da depressão puerperal, evidente em algumas mulheres, indicando a dificuldade da necessária adaptação do filho sonhado à realidade da criança nascida. É necessária uma interação entre a mãe e o filho para a construção de um real vínculo materno-filial de amor .
O poder que sente a mulher em ser mãe tem também seu lado de impotência, frustração e culpa – independentemente de sua real contribuição, sobretudo quando ocorrem situações como a da anencefalia. O sentimento pode ser comparado ao que se tem quando se perde um ente querido e que, transitoriamente, nos perguntamos o que poderíamos fazer para tentar evitar. Salutar no processo de elaboração do luto, sentir raiva, desespero, alívio, culpa, tristeza. Mas se paira ainda uma censura externa com relação aos sentimentos, o resultado poderá ser um aumento da culpa e revolta.
Lembremos que no caso em questão, diversamente do luto de pessoa do relacionamento, não se pode lançar mão do recurso utilizado no processo de elaboração do luto que resulta em conformar-se com o inevitável, investindo em lembranças boas que se tem daquele que se perdeu.
Cabe questionar qual o peso que estaríamos colocando nestas mulheres ao impedir-lhes a decisão, e ainda, considerando um crime a interrupção da gravidez. Não devemos menosprezar o poder simbólico que tem a sociedade, os grupos religiosos e a palavra do juiz.
De um ponto de vista leigo relativo à técnica jurídica, a concessão da liminar, sua cassação, adiamento do julgamento e mesmo a paradigmática consulta que o STF pretende realizar com a sociedade, não funcionando como sua consciência moral, dão mostras do valor altamente simbólico que a questão envolve.
Utilizando da liberdade de interpretação, este é um indicativo sintomático que denota a dificuldade em avaliar o “mérito” da questão, que, no sentido simbólico, me parece não esteja mesmo a nosso alcance julgar. Fazendo uma associação por semelhança, há um desencadear de pedidos de auxílio, dada a impotência que a questão nos traz. Apesar da luta de forças que vemos travada entre os diversos grupos, ideologias etc. a solução será a possível, posto que esta será sempre uma questão injusta, que nunca gostaríamos que fosse colocada, para nossos parâmetros humanos.
Na esteira das discussões a respeito da anencefalia surgem outras que cabe mencionar para diferenciar. Uma é o destino dos embriões utilizados nas clínicas de fertilização. Uma diferença essencial com o caso em tela, é que estes trazem, no mínimo, uma promessa de vida.
Outra questão que se afigura é o receio de que se abram precedentes com relação ao aborto. Receio legítimo por parte de alguns que têm esta pré-ocupação, mas que não justifica não se ocupar dos casos específicos da anencefalia, nos quais as justificativas e motivações, objetivas e subjetivas, para a escolha em interromper, ou não, a gravidez estão claras. Destas gestantes deve sim o Estado ocupar-se, oferecendo a possibilidade de atendimento psicológico para auxiliar nesta decisão, sem fomentar a ilusão de que uma chancela legal e médica, de um lado, ou o sacrifício em levar adiante uma gravidez assim, poderiam evitar o trauma, o luto, a dor psíquica.
Por semelhança – o aborto é autorizado nos casos de estupro ou de risco para a mãe. O peso colocado em questões psíquicas e físicas. No caso da anencefalia, a decisão de interrupção da gravidez encontra bases na preservação da integridade psíquica quanto física, uma vez que os riscos existem nos dois planos de realidade. Impõe-se uma injustiça impensável ao legitimar-se a escolha por um aborto por estupro e não a interrupção da gravidez pela anencefalia do feto, em que somam-se motivos médicos de preservação da saúde, e psíquicos do respeito à capacidade de escolha da mãe e preservação de sua integridade psíquica.
Há ainda os que argumentam com base na possibilidade de erro de diagnóstico, o que a meu ver, não nos exime da responsabilidade em melhorar o acesso da população ao pré-natal. O erro de diagnóstico, nestes casos, é não haver diagnóstico e se existe ele é claro – quando a gravidez vai a termo não há interação possível, não há resposta alguma ao que poderia ser o carinho dos pais, não há cérebro para decodificar nenhum tipo de comunicação humana; mesmo a comunicação intra-uterina, cujas existência e importância não podem ser negligenciadas, como tem demonstrado à exaustão os estudos mais recentes.
O que pode o Estado fazer senão devolver à sociedade a questão? E o que pode a sociedade fazer se não devolver à gestante a questão e escutar o apelo legítimo de auxílio em ser considerada em sua responsabilidade – não há como endossar a um outro o cheque da responsabilidade pelas decisões.
Mas há sim como contribuir para não aumentar o sofrimento das gestantes impondo-lhes a ameaça da condenação que, subjetivamente já sentem e necessitarão elaborar, pela injustiça que a biologia lhes impôs. Tortura que pode ser abreviada, mas que em nome de ideais de vida que não se cumprirão, se ousa postergar numa negação da realidade e grande dose de projeção.
Se é certo que a vida traz sofrimento, também é certo que este deve ser evitado, na medida do possível. Creio ser nosso o compromisso com a vida, com a promessa de vida e com a preservação da vida que nos é dada conhecer. Não creio possamos nos omitir em socorrer alguém em sofrimento. O corpo é abrigo da mente e da personalidade, mesmo que apresente anomalias. A nossa capacidade mental implica também em tolerar o sofrimento, dando-lhe um sentido que dignifique a vida, responsabilizando-nos por seu cuidado, e não nos tornando vítimas culpadas de uma responsabilidade que não podemos assumir. Creio que muito temos que aprender com as mães em sua função tão digna de cuidado da vida.
Por que a dúvida em relação a seu poder de decisão em interromper a gravidez em caso de anencefalia? Quem melhor que elas para decidir? Não creio possamos, com base em nossas projeções e medos, dar peso menor a um verdadeiro “voto de confiança” à vida que é feito pela mulheres gestantes, responsabilidade que têm assumido ao longo da existência humana, duvidando de seu poder de decisão em favor da preservação da vida física e da integridade psíquica, inclusive para poder gerar vida.
Utilizo, como fio condutor de idéias, as notícias a respeito do tema, disparadoras de questões a serem pensadas e que trazem, de modo genérico, os conhecimentos específicos das lentes especializadas em questões médicas, legais, religiosas, e outras. A pretensão é, apenas, de adiantar ponderações e questionamentos a partir de uma outra ótica de interpretação, com ênfase na visão daqueles que estão sujeitos à Lei e também às leis de outra ordem, que não estão ao nosso alcance compreender ou controlar, mas frente às quais devemos nos responsabilizar.
Em assunto assim tão delicado, acredito ser mister falar também em nome próprio, para com isto enfrentar a dificuldade do tema e o desafio à capacidade de nos colocar no lugar do Outro, imperativo da moral universal, e pensar quem é este Outro, seja uma mulher, uma mãe, um pai, os profissionais de saúde que se defrontam com a questão, que foram buscar a Justiça com a propositura da ação, e mesmo os juízes que devem julgar. Fundamental nos perguntarmos o que representa para nós este Outro, que ideologias ele estaria “encarnando” e o quanto ele estaria sendo alvo de nossa projeções .
Por características de nosso psiquismo e de nossa história, a mulher e a mãe são figuras que remetem ao desconhecido, aos mistérios da vida, e pela mesma razão são alvos privilegiados de nossas projeções, tanto nos aspectos mais sublimes quanto nos mais negativos. Como geradoras e gestadoras, são também objeto de nossos infindáveis desejos, e mesmo cobranças, a que muitas buscam, de um modo que nos é incompreensível, responder.
Desde os tempos imemoriais, as perguntas são as mesmas: o que é a vida e quando começa, de onde viemos, para onde vamos. Perguntas relativas à vida e à morte, centrais na filosofia, que os vários campos e especialidades têm procurado, cada uma à sua maneira, enfrentar. Já quanto a respondê-las de forma cabal.... envolvem mistérios que não creio estejam a nosso alcance. Pertencem inclusive àqueles abordados pela religião, mas obviamente não resolvidos pelo homem, dada sua própria natureza.
Inúmeros são os exemplos das injustiças cometidas ao longo da história quando nos arvoramos a enfrentar estas questões, que se concretizam na existência terrena, falando em nome de um conhecimento superior que, enfatizo, por natureza não podemos alcançar.
A história nos mostra que, em nome da Justiça - que o Direito busca, e que o fazem várias formas de conhecimento e ideologias, incluindo-se também a religião, outros interesses foram defendidos de modo que o conhecimento passou a ser utilizado como um desconhecimento. Em nome de ideologias, foram e são cometidas injustiças, inomináveis e impensáveis; não tão recente é o tempo da Inquisição, do Malleus Maleficarum e, mais recentes, são a guerra religiosa que fundamenta o terrorismo e os argumentos em prol da eugenia e aqueles relativos aos progressos científicos.
Na gênese de tais comportamentos encontramos, em comum, a projeção maciça, o preconceito e a intolerância advindos da dificuldade em conhecer e em lidar com as diferenças, colocando-se no lugar do Outro, sobretudo quando este Outro é a figura da mulher e da mãe que, como apontado, remetem ao desconhecido e ao misterioso.
Uma das questões que este artigo adianta diz respeito à possibilidade em diferenciar o direito à capacidade, liberdade e autonomia de decisão da mulher, do direito à liberdade de decisão baseada em argumentos formais e/ou em uma opinião e crença individual e/ou grupal. Ambos não necessariamente se opõem mas, na maioria das vezes, tratam-se de sujeitos cujas vontades são distintas.
De um lado, a mulher grávida, o respeito à dignidade que merece todo ser humano, tendo-se em vista tratar-se de um ser íntegro psiquicamente, que mantém o direito à preservação de sua integridade, com o peso do estado de gravidez. De outro lado, aqueles que, contra ou a favor da interrupção da gravidez, não menos dignos ou merecedores de respeito, mas que trazem outras fontes de conhecimento em seus argumentos. Muitas vezes são desconhecimentos e até negações que precisam ser esclarecidos.
Em questão tão difícil, creio inevitável recorrer ao que é o princípio maior – o da Dignidade da Pessoa Humana e sua contextualização trazida com o inegável avanço que são os Direitos da Personalidade. Aponte-se que estes são invocados tanto por aqueles que são a favor da interrupção da gravidez como os que são pelo seu prosseguimento sem intervenção.
Creio que às questões a respeito da vida, impõe-se fundamentalmente a qualificação do que é que nos faz humanos. Não estaria justamente na nossa capacidade de interação, sentimento e pensamento, de amor à vida e de fazer vida, que traz a dimensão de um tempo passado, presente e futuro?
Salvo engano, se aponta um conflito gestante/feto , em que discute-se de um lado o direito das mulheres em decidir versus o que seria o direito do embrião, feto, do que viria a ser um filho. Mas para que esta relação se dê na realidade, e não na virtualidade do vir a ser, é essencial a capacidade de interação intra-e inter-pessoal. Possibilidade inexistente na realidade da anencefalia, mas não na virtualidade dos sonhos, projetos e esperanças das mulheres gestantes.
Em situações-limite, há uma tendência natural ao uso do mecanismo psíquico de defesa, da negação da realidade , em que pode haver a manutenção de uma vã esperança a despeito dos fatos. Negação que pode ser exacerbada com a exigência da manutenção do estado de gravidez até sua interrupção “natural”, seja por morte fetal ou parto, em que em detrimento de uma escolha consciente, esta pode ser delegada inconscientemente às forças da natureza, por exemplo.
Diferente é quando a mulher decide conscientemente por este caminho, tendo inclusive a possibilidade de optar pela doação de órgãos. Já do lado do feto, não creio seja possível falar em personalidade, essencial à Dignidade da Pessoa Humana. A qualificação Humana ganha, nesta esteira, elevada dimensão. Trata-se de uma pessoa humana versus uma vida em que se impõe a dura realidade de que jamais terá condição de interação para o desenvolvimento da personalidade. Uma vez que o diagnóstico é claro, será que não estaríamos incorrendo em um erro de avaliação, antropomorfizando o feto anencefálico?
Nesta situação, a mulher abriga dentro de si uma vida que não se mantém de forma autônoma (como é característica da gravidez), e que se contrapõe à própria gravidez, uma vez que, em pelo menos metade dos casos, esta não continua, podendo pôr em risco a saúde, no mínimo física, da mãe. O nascimento que marca o início de uma autonomia – busca de sentido inerente à vida, será seguido de morte. Mas não a morte como considerada nos parâmetros médicos, uma vez que a falta de atividade cerebral a define - caso que não se coloca no caso da anencefalia.
Qual o fundamento de postergar o sofrimento da mãe, e mesmo o fetal? Nesta situação tão penosa, ainda lhe restaria uma escolha – a de antecipar e diminuir o sofrimento, tanto seu quando do feto. Não creio possamos imputar-lhe a culpa em exercer uma escolha, em situação de tamanha impotência, seja qual for. É ela quem sofre e sofrerá as conseqüências da escolha, que aliás poderia optar por exercer, transferindo ao destino, à uma ideologia, para fins de doação, ou religião (que tem sua autonomia, e exerce poder sobre seus fiéis). Escolha não menos digna.
Em situação tão difícil, por mais distante da realidade fática da maioria, o sofrimento e os questionamentos morais sempre, em certa medida, fazem eco. Por vezes, buscamos transferir o peso da decisão para um terceiro, que funcionaria como a consciência moral, aparentemente evitando o sofrimento e a elaboração do sentimento de culpa com que invariavelmente nos defrontamos em tais situações.
A culpa é um sentimento que se encontra no limiar do consciente e do inconsciente, um sentimento que tem suas raízes em motivações sempre em parte desconhecidas. Uma das formas que temos de fugir à responsabilidade em pensar algumas questões, é recorrer a um terceiro que decida, que se posicione, a uma ideologia que possa nos abrigar das dificuldades em nos responsabilizar por uma opinião. A responsabilidade individual encontraria assim, guarida no coletivo. Cabe enfatizar – a culpa é um sentimento que, em certa medida, independe dos atos cometidos. Por isto é mais da ordem do subjetivo e do inconsciente.
A gravidez é situação subjetiva por excelência, em que a expectativas e os sonhos são acompanhados de medos e incertezas. É vivência psíquica que acompanha as mulheres, mesmo que as modernas tecnologias auxiliem aplacando, em parte, as fantasias, ao trazer à luz as imagens da realidade do que ocorre no interior do corpo. É alto o componente emocional em uma gravidez; afinal gerar e gestar é ato de amor, o que absolutamente não torna as mulheres menos capazes de decidir, embora haja uma certa ideologia neste sentido.
A despeito dos avanços da medicina preventiva, o emocional impõe sua força, como o fenômeno da depressão puerperal, evidente em algumas mulheres, indicando a dificuldade da necessária adaptação do filho sonhado à realidade da criança nascida. É necessária uma interação entre a mãe e o filho para a construção de um real vínculo materno-filial de amor .
O poder que sente a mulher em ser mãe tem também seu lado de impotência, frustração e culpa – independentemente de sua real contribuição, sobretudo quando ocorrem situações como a da anencefalia. O sentimento pode ser comparado ao que se tem quando se perde um ente querido e que, transitoriamente, nos perguntamos o que poderíamos fazer para tentar evitar. Salutar no processo de elaboração do luto, sentir raiva, desespero, alívio, culpa, tristeza. Mas se paira ainda uma censura externa com relação aos sentimentos, o resultado poderá ser um aumento da culpa e revolta.
Lembremos que no caso em questão, diversamente do luto de pessoa do relacionamento, não se pode lançar mão do recurso utilizado no processo de elaboração do luto que resulta em conformar-se com o inevitável, investindo em lembranças boas que se tem daquele que se perdeu.
Cabe questionar qual o peso que estaríamos colocando nestas mulheres ao impedir-lhes a decisão, e ainda, considerando um crime a interrupção da gravidez. Não devemos menosprezar o poder simbólico que tem a sociedade, os grupos religiosos e a palavra do juiz.
De um ponto de vista leigo relativo à técnica jurídica, a concessão da liminar, sua cassação, adiamento do julgamento e mesmo a paradigmática consulta que o STF pretende realizar com a sociedade, não funcionando como sua consciência moral, dão mostras do valor altamente simbólico que a questão envolve.
Utilizando da liberdade de interpretação, este é um indicativo sintomático que denota a dificuldade em avaliar o “mérito” da questão, que, no sentido simbólico, me parece não esteja mesmo a nosso alcance julgar. Fazendo uma associação por semelhança, há um desencadear de pedidos de auxílio, dada a impotência que a questão nos traz. Apesar da luta de forças que vemos travada entre os diversos grupos, ideologias etc. a solução será a possível, posto que esta será sempre uma questão injusta, que nunca gostaríamos que fosse colocada, para nossos parâmetros humanos.
Na esteira das discussões a respeito da anencefalia surgem outras que cabe mencionar para diferenciar. Uma é o destino dos embriões utilizados nas clínicas de fertilização. Uma diferença essencial com o caso em tela, é que estes trazem, no mínimo, uma promessa de vida.
Outra questão que se afigura é o receio de que se abram precedentes com relação ao aborto. Receio legítimo por parte de alguns que têm esta pré-ocupação, mas que não justifica não se ocupar dos casos específicos da anencefalia, nos quais as justificativas e motivações, objetivas e subjetivas, para a escolha em interromper, ou não, a gravidez estão claras. Destas gestantes deve sim o Estado ocupar-se, oferecendo a possibilidade de atendimento psicológico para auxiliar nesta decisão, sem fomentar a ilusão de que uma chancela legal e médica, de um lado, ou o sacrifício em levar adiante uma gravidez assim, poderiam evitar o trauma, o luto, a dor psíquica.
Por semelhança – o aborto é autorizado nos casos de estupro ou de risco para a mãe. O peso colocado em questões psíquicas e físicas. No caso da anencefalia, a decisão de interrupção da gravidez encontra bases na preservação da integridade psíquica quanto física, uma vez que os riscos existem nos dois planos de realidade. Impõe-se uma injustiça impensável ao legitimar-se a escolha por um aborto por estupro e não a interrupção da gravidez pela anencefalia do feto, em que somam-se motivos médicos de preservação da saúde, e psíquicos do respeito à capacidade de escolha da mãe e preservação de sua integridade psíquica.
Há ainda os que argumentam com base na possibilidade de erro de diagnóstico, o que a meu ver, não nos exime da responsabilidade em melhorar o acesso da população ao pré-natal. O erro de diagnóstico, nestes casos, é não haver diagnóstico e se existe ele é claro – quando a gravidez vai a termo não há interação possível, não há resposta alguma ao que poderia ser o carinho dos pais, não há cérebro para decodificar nenhum tipo de comunicação humana; mesmo a comunicação intra-uterina, cujas existência e importância não podem ser negligenciadas, como tem demonstrado à exaustão os estudos mais recentes.
O que pode o Estado fazer senão devolver à sociedade a questão? E o que pode a sociedade fazer se não devolver à gestante a questão e escutar o apelo legítimo de auxílio em ser considerada em sua responsabilidade – não há como endossar a um outro o cheque da responsabilidade pelas decisões.
Mas há sim como contribuir para não aumentar o sofrimento das gestantes impondo-lhes a ameaça da condenação que, subjetivamente já sentem e necessitarão elaborar, pela injustiça que a biologia lhes impôs. Tortura que pode ser abreviada, mas que em nome de ideais de vida que não se cumprirão, se ousa postergar numa negação da realidade e grande dose de projeção.
Se é certo que a vida traz sofrimento, também é certo que este deve ser evitado, na medida do possível. Creio ser nosso o compromisso com a vida, com a promessa de vida e com a preservação da vida que nos é dada conhecer. Não creio possamos nos omitir em socorrer alguém em sofrimento. O corpo é abrigo da mente e da personalidade, mesmo que apresente anomalias. A nossa capacidade mental implica também em tolerar o sofrimento, dando-lhe um sentido que dignifique a vida, responsabilizando-nos por seu cuidado, e não nos tornando vítimas culpadas de uma responsabilidade que não podemos assumir. Creio que muito temos que aprender com as mães em sua função tão digna de cuidado da vida.
Por que a dúvida em relação a seu poder de decisão em interromper a gravidez em caso de anencefalia? Quem melhor que elas para decidir? Não creio possamos, com base em nossas projeções e medos, dar peso menor a um verdadeiro “voto de confiança” à vida que é feito pela mulheres gestantes, responsabilidade que têm assumido ao longo da existência humana, duvidando de seu poder de decisão em favor da preservação da vida física e da integridade psíquica, inclusive para poder gerar vida.
Giselle Câmara Groeninga é psicóloga, psicanalista, terapeuta de família e de casal, mediadora, presidente da Comissão de Relações Interdisciplinares do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e coordenadora do núcleo de mediação do IBDFAM-SP. É também membro da International Society of Family Law. |
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