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Casamento para fins de pensão e o julgamento do STF: existem objetivos pré-constituídos para o casamento?
Casamento para fins de pensão e o julgamento do STF: existem objetivos pré-constituídos para o casamento?
Bruna Barbieri Waquim
Doutora e Mestre em Direito. Assessora Jurídica no TJMA. Professora universitária. Diretora Cultural do IBDFAM/MA. IG: @profabrunabarbieri
Recente notícia do Portal Migalhas[1] nos revela que tramita no STF uma ação sobre concessão de pensão vitalícia a esposa de juiz classista aposentado do TRT da 5ª região, com uma nota muito peculiar: aos 72 anos, o juiz se casou com sua sobrinha, de 25 anos, apenas alguns meses antes de falecer, o que fez com que o TCU, em revisão, julgasse ilegal o ato por meio do qual fora concedida a pensão civil à sobrinha-esposa.
A esposa contestou o julgamento do TCU, aduzindo que somente por uma ação judicial específica poderia ter seu casamento declarado nulo. Em 2010, o Relator da ação, Ministro Marco Aurélio, havia restabelecido a pensão da mulher, porém, em recente manifestação, o relator afirmou que “não se trata aqui de decretar a nulidade do negócio jurídico, e sim, negar validade a ele, quando identificados fortes indícios de fraude, no que tange ao efeito gerador da pensão estatutária” [2].
O caso é, de fato e de direito, de complexa solução, lembrando os dworkianos hard cases que atormentam os julgadores, especialmente “quando a solução encontrada causa extrema estranheza aos costumes e à coletividade”[3]. Esta, porém, não é a primeira vez que a pergunta “quais os motivos legítimos para um casamento” é alvo de elucubração pelas altas Cortes do nosso Judiciário.
Recordo-me do julgamento proferido pelo Desembargador Jamil Gedeon, na Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, na Apelação Cível nº 41.318/2015, em que a filha do de cujus havia ajuizado uma ação para declarar nulo o casamento entre seu falecido pai e a ré, sob a alegação de que o casamento havia infringido impedimento legal: a ré havia tido um relacionamento amoroso com o falecido filho do falecido (a vida real não perde nada para os romances de Nelson Rodrigues), do qual resultaram filhos – netos do (posteriormente) falecido marido.
No julgamento emanado pelo douto Desembargador maranhense, inexistindo prova da constituição de união estável ou sequer de casamento entre a ré e o filho do seu falecido esposo, meras ilações não seriam suficientes para fazer reconhecer um vínculo jurídico de parentesco e, portanto, de impedimento legal entre a ré e o falecido não-sogro (Apelação Cível nº 41.318/2015-TJMA).
Além disso, se verificou que o caso dos autos não incorreu em nenhuma hipótese de simulação de negócio jurídico, já que o ato do casamento foi fundamentado no interesse de ajudar a requerida e seus filhos, e contra isso não há vedação legal, já que um dos deveres ínsitos do casamento é a própria assistência, moral e material (Apelação Cível nº 41.318/2015-TJMA).
Do acórdão maranhense, extrai-se a referência à lição da Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do Recurso Especial nº 1330023 / RN, que trata de matéria equivalente - casamento que foi realizado com o intuito de favorecer um dos nubentes nos efeitos sucessórios decorrentes desse ato:
5. Não existem objetivos pré-constituídos para o casamento, que descumpridos, imporiam sua nulidade, mormente naqueles realizados com evidente possibilidade de óbito de um dos nubentes - casamento nuncupativo -, pois esses se afastam tanto do usual que, salvaguardada as situações constantes dos arts. 166 e 167 do CC-02, que tratam das nulidades do negócio jurídico, devem, independentemente do fim perseguido pelos nubentes, serem ratificados judicialmente.6. E no amplo espectro que se forma com essa assertiva, nada impede que o casamento nuncupativo realizado tenha como motivação central, ou única, a consolidação de meros efeitos sucessórios em favor de um dos nubentes - pois essa circunstância não macula o ato com um dos vícios citados nos arts. 166 e 167 do CC-02: incapacidade; ilicitude do motivo e do objeto; malferimento da forma, fraude ou simulação. Recurso ao qual se nega provimento. (STJ, REsp 1330023 / RN, RECURSO ESPECIAL 2012/0032878-2, Relator(a) Ministra NANCYANDRIGHI (1118) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 05/11/2013 Data da Publicação/Fonte DJe 29/11/2013)
Entendeu, assim, o desembargador maranhense que “dentro do affecto maritalis, não é legítimo ser este resumido aos aspectos românticos ou sexuais de uma relação - afinal, muito mais apropriado à finalidade do casamento é o interesse de assistir o outro, como desejou [...], do que de apenas satisfazer romanticamente um parceiro. Ademais, se [...] contribuiu toda a vida para o regime de previdência, não vejo em que termos se enxergar ‘fraude previdenciária’ se foi escolha do segurado constituir um vínculo para permitir que os frutos de sua contribuição fosse legados a seus legítimos sucessores - na saudade e no cuidado.”
“Como” as pessoas casam, é matéria afeita às limitações do Direito: procedimento, suspeição, impedimento, qual regime de bens. Mas existem outras perguntas, de caráter informal e subjetivo: por que as pessoas casam? Para que as pessoas casam? O relacionamento sexual é determinante para o casamento? E, quanto a tais perguntas, é legítima a inferência judicial sobre as razões determinantes das pessoas, dos particulares envolvidos?
Acompanharei, com grande curiosidade, o julgamento final do Supremo Tribunal Federal sobre o caso, mas, desde já, faço coro à querida e inspiradora Ministra Nancy Andrighi: “Não existem objetivos pré-constituídos para o casamento, que descumpridos, imporiam sua nulidade” (REsp 1330023 / RN).
Muito já se falou sobre o casamento por amor... talvez devamos reconhecer a possibilidade também do casamento pelo simples afeto.
[1] Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/337394/stf-julgara-caso-de-juiz-classista-que-casou-com-sobrinha-antes-de-falecer. Acesso em: 07 dez. 2020.
[2] Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/quentes/337394/stf-julgara-caso-de-juiz-classista-que-casou-com-sobrinha-antes-de-falecer. Acesso em: 07 dez. 2020.
[3] BELTRAMI, Fábio. Princípios como solução dos hard cases. Teoria Dworkiniana. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 92, set 2011. Disponível em: http://www.ambito-jurídico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id= 10222. Acesso em: 07 dez. 2020.
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