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Joãozinho é o c@#$%&*; meu nome agora é João Pequeno, p§%*#
Joãozinho é o c@#$%&*; meu nome agora é João Pequeno, p§%*#
Elton Costa[1]
O pequeno João é aquele típico garoto da periferia brasileira. Fruto de uma relação casual, desconhece sua origem paterna; na verdade, dona Maria, sua mãe, também tem lá suas dúvidas acerca de quem seja o seu papai.
O ano é 2015. O local é o salão paroquial da igreja do bairro. A ocasião? Para tristeza de alguns poucos e, contrário senso, alegria de muitos, trata-se do velório do João Pequeno, um perigoso e temido adolescente em conflito com a lei, que um dia foi o pequeno João.
Agora, o ano é 2014 (Quem curte Tarantino vai entender o enredo)
Joãozinho tinha uma vida bastante modesta. Vivia numa casa de projeto alugada com sua mãe e seus seis irmãos. José, o mais velho, tinha 15 anos e, por conta do privilégio de ser o primogênito era incumbido do cuidado da casa e dos irmãos mais novos enquanto a mamãe Maria passava dia trabalhando como faxineira. Mateus contava 14 anos e era um garoto bem tranquilo e muito estudioso. Segundo os vizinhos: talvez desse para alguma coisa na vida. Logo após vinha a Maria José, com 13, seguida do nosso protagonista, o João. Completavam “a escalação” - assim era chamada por muitos dos vizinhos a prole da dona Maria – o Lucas (11 anos), o Jacó com 10 e o pequeno Marcos, o caçulinha, com tenros 4 aninhos. Perceberam alguma coisa em relação aos nomes dos 7?
Joãozinho como era conhecido por todos contava 12 anos e era o irmão do meio de uma prole de 7 filhos, cada um de um pai diferente, ou não, afinal, dona Maria nunca se preocupou com “esse tipo de detalhe”.
João nunca foi muito afeto aos estudos. Achava perda de tempo ir à escola enquanto via alguns de seus colegas de bairro curtindo a vida, andando de bike nova e alguns deles, mesmo da sua idade, já tomando suas cervejinhas no final de semana.
A vida sempre lhe foi dura, é fato. O pouco que dona Maria apurava com as faxinas era dividido com muito sacrifício entre o aluguel da casa, as contas de água e luz e, o que sobrava, com a comida para todos os 8. Privação sempre fez parte do cotiando daquela “escalação”.
O pequeno João não entendia os motivos pelos quais a vida lhe era tão desfavorável, tampouco, quais as razões de tamanha privação. Mas nada azucrinava mais o juízo dele do que não saber quem era seu pai. Toda vez que tocava no assunto com dona Maria a resposta era a mesma: deixa isso para lá, Joãozim. Se ele nunca quis saber de você, para que querer saber dele. Sempre a mesma resposta dela e sempre a mesma indignação dele. Um dia ainda descubro quem é meu pai.
A vida do intrépido João seguia na mesma marcha de sempre. Fingir que vai para escola, ajudar seus irmãos maiores nos afazeres da casa – isso incluía tomar conta do pequeno Marcos e o João adorava isso. Dizia que era um dos poucos prazeres que a vida lhe deu – passar fome na maior parte dos dias e, quase sempre, jogar bola no campinho do bairro no final da tarde.
E foi num desses dias de pelada (assim que se chama o jogo de futebol nos bairros) que a vida do Joãozinho teve uma guinada. Final da tarde, quase na última partida do dia, e chegou por lá um garoto desconhecido dos peladeiros locais. Aquele nome nunca saiu da cabeça do little João: Jeremias era o nome do garoto novo no pedaço. Nunca se soube a idade e a origem dele, mas pela compleição física tinha por volta dos seus 15, 16 anos.
Jeremias andava bem vestido. Bermuda e camisa de marca. No pulso um relógio mais dourado que o sol de meio dia e na cintura um celular de última geração, que fez os olhos do João brilharem mais que o relógio e o sol das 12h00 juntos. Naquele dia o Joãozinho não dormiu. A imagem do Jerê (era assim que ele gostava de ser chamado) não saia da sua cabeça. Como pode um cara tão novo já ter tudo aquilo. Como pode alguém ter tudo (para ele o que o Jerê tinha significava tudo) e eu não ter nem o que comer direito. Isso não tá certo.
Passados alguns dias de fome, de enganação escolar e de peladas no final da tarde, o Jeremias voltou a aparecer no campinho. Hoje eu falo com ele. Dito e feito. No final da pelada o João colou no Jerê. Como você conseguiu tudo isso, cara? E o que eu preciso fazer para ter também? Mais curto e grosso, impossível. Jeremias sorriu de canto de boca, baixou o ray-ban espelhado (esqueci de falar dele né?) e com toda a autoridade de quem falava para uma plateia ávida por conhecimento disse com uma voz mansa: se quer mesmo saber, pequeno, me encontra mais tarde na praça matriz que te conto.
Conforme o combinado, no local e hora acertados lá estava o João. Mais nervoso que um noivo enquanto a noiva não entra na igreja, mas segurou firme a ansiedade, o que lhe custou o resto das unhas que tinha. Quando Jerê chegou a conversa foi curta. Sobe ai na garupa. Pasmem! O Cara chegou bancando de Bross com kadron (aquele escapamento mais barulhento que a turma do bar depois das 12 cervejas cantando moda sertaneja). Pobre Joãozinho. Aquele “rolê” o levaria da infância à vida adulta mais rápido que o DeLorean levou o Marty McFly de volta para o futuro.
Só naquela noite foram 5 assaltos. As vítimas preferidas eram aquelas adolescentes saindo da escola, com o celular na mão e o cuidado esquecido na bolsa. Tudo aconteceu tão rápido que o João não conseguia entender ao certo o que havia acontecido. Final “do expediente” e o Jerê manda: E aí pequeno, curtiu o rolê? Joãozinho tremia da cabeça aos pés. Jeremias puxou um cigarro estranho do bolso, acendeu, deu uma tragada forte, virou para o João e disse: Se liga. Fuma aí que já tua tremedeira passa. João hesitou, hesitou mais ainda, mas, diante da insistência do novo brother acabou fumando o que depois descobriu ser um cigarro de maconha. O mundo girou, a náusea foi impossível de segurar e o desmaio foi inevitável. Acordou com uns tapas no rosto e muitas risadas do Jeremias.
A vida seguiu e os rolês persistiram por algumas noites. Joãozinho era só empolgação. “As paradas” já haviam lhe rendido duas bermudas de marca e, segundo o Jerê, muito em breve, quem sabe, rolaria o primeiro celular do Joãozinho. Alguns podem estar se perguntando: ninguém na casa dele percebeu isso tudo. Saídas à noite, bermudas novas, o cheiro de maconha, enfim, como tudo isso passou desapercebido? A única resposta plausível que vejo é que todos estavam ocupados demais cuidando da sua própria miserável vida que não tinham tempo para dar conta da vida do outro. Fica a pergunta aberta para suas reflexões!
Quando tudo parecia caminhar bem demais, a casa caiu. Numa dessas noites de rolê, a polícia conseguiu botar as mãos na dupla que aterrorizava a região leste da cidade. Joãozinho por ser menor, fora encaminhado para casa após a lavratura do BOC (boletim de ocorrência circunstanciado). O Jerê, para surpresa do João, apesar do aspecto de adolescente, já atingira a maioridade e ficara detido na DEPOL. Segundo consta da apuração policial, adivinha quem empunhava a arma e ameaçava as vítimas dos assaltos? “o de menor, é claro”. Onde tem menor envolvido, adulto não empunha arma.
Trinta dias após, lá estava Joãozinho na vara de infância e juventude para uma audiência com o juiz. Acompanhado de dona Maria, coitada, muito triste pelo caminho que o filho escolheu, mas também pelo dia sem faxina, que certamente faria uma falta imensa no orçamento no final do mês. Iniciada a audiência, o magistrado começa a leitura do BOC. Narrativa dos fatos e envolvidos: Jeremia da Silva, vulgo Jerê e João de Sousa, vulgo - olha só, até vulgo ele já ganhara – João Pequeno. Segundo relato policial, ele assim se intitulou quando da apreensão. Não sei vocês, mas só quero crer que a alcunha de João Pequeno vem da junção do seu nome com o modo como era chamado pelo Jeremias, lembram: Fala ai, pequeno!
Audiência finda, Joãozinho, opa, João Pequeno, pegou 40 dias de internação por conta do grau de periculosidade narrado pelas vítimas. Olha só. Até perigoso ele se tornou. Dessa audiência em diante e cumprida a internação, vieram outras várias noites de rolê – não mais com o Jerê - agora era o João Pequeno quem dava as cartas, bem assim algumas outras audiências na vara da infância e juventude e outras várias internações.
João Pequeno agora era um menor institucionalizado e “cliente” do sistema de justiça. O problema deste estilo de vida é que se tem muitos inimigos e foi num (des)encontro com um dos seus desafetos que a jornada do João Pequeno chegou ao fim.
O ano é, de novo, 2015 (we come back). O local é o salão paroquial da igreja do bairro (...). A quem diga que o João Pequeno, pouco antes de cortinar seus olhos, chorou bastante, pediu perdão ao seu irmão caçula – Marquinhos – e sussurrou como últimas palavras: papai, onde você esteve este tempo todo?
Assim como o pequeno João, milhares de crianças passam por essa situação no Brasil. Vítimas da ausência do Estado? Ou, quem sabe, por serem filhos do abandono paterno/materno? e/ou frutos da irresponsabilidade de quem nunca pensou nas consequências de pôr um filho no mundo? São muitos questionamentos e poucas respostas. Vale a reflexão?
Joãozinho era um irmão de seis e um filho sem pai, mas tudo que queria na vida - e à beira da morte - era ser um Zé Ninguém FILHO!
[1] Servidor efetivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Técnico Judiciário. Conciliador Judicial. Bacharel em Direito. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Capacitado em Mediação Familiar. Capacitado em Conciliação e Mediação Extrajudicial. Instagram: @eltoncosta_tjma.
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