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Socioafetividade e o direito sucessório
Socioafetividade e o direito sucessório
Liusa Fioravante Almeida¹.
Resumo: Este artigo aborda as características e efeitos da paternidade alicerçada no convívio contínuo e no afeto, sua legitimidade, efeitos e a possibilidade de coexistência com a paternidade consanguínea, à luz da Constituição Federal. Outrossim, analisa sua interferência no âmbito do Direito Sucessório, porquanto fundamenta a multiparentalidade, instituto reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro, dotado de relevante valor jurídico e social, que acarretará em inevitáveis mudanças e transformações do direito de pais e filhos quanto à sucessão. Para tanto, o trabalho demonstra, através de revisão bibliográfica e análise jurisprudencial, a nova concepção de família, estabelecida com base na origem das relações de filiação, não se encontrando mais, a genética e os laços consanguíneos no centro desta questão, mas sim, a valorização e a proteção da dignidade de cada individuo que tem a segurança de suas relações familiares estabelecida como direito fundamental, tutelado pela Constituição Federal. Destarte, o estado de filho, em que pese ser originado pelo afeto e convívio contínuos, garante tanto aos filhos quanto aos pais, todos os direitos inerentes à filiação consanguínea, sejam no tocante às garantias básicas, sociais ou patrimoniais. Com efeito, podendo ser coexistente com a paternidade biológica, a chamada multiparentaliade, muito embora não provoque grandes reflexões quanto à convivência dos filhos com ambos os pais ou mães, desperta preocupações quanto aos critérios para a realização da partilha de bens no caso de sucessão. Desta forma, necessário se faz o conhecimento e o aprofundamento no estudo deste moderno instituto. Diante disso, o trabalho relaciona sua estrutura com as normas que atualmente norteiam o Direito Sucessório Brasileiro, com o escopo de permear os entendimentos doutrinários atuais acerca da habilitação de múltiplos pais na herança de filho que tenha falecido sem deixar descendentes e, de mesma forma, de filhos na herança de mais de um pai ou mãe.
Palavras-chave: Socioafetividade. Multiparentalidade. Efeitos.
Abstract: This article will discuss the characteristics and effects of paternity based on continuous living and affection, its legitimacy, effects and the possibility of coexistence with inbreeding in the light of the Federal Constitution. In addition, it will analyze its interference in the scope of inheritance law, since it allows multiparentality, an institute recognized in the Brazilian legal system, endowed with relevant juridical and social value, which will entail inevitable changes and transformations in the right of parents and children to succession. For this, the new conception of family, based on the origin of the relations of affiliation, will be demonstrated through bibliographical review and jurisprudential analysis. Genetics and the consanguineous ties in the center of this question will no longer be found. Yes, the valorization and protection of the dignity of each individual, who has the security of their family relations established as a fundamental right, protected by the Federal Constitution. Hence, the status of a son or a son-in-law, in spite of being originated by continuous affection and conviviality, guarantees both the children and the parents all the rights inherent to the consanguineous affiliation, whether as regards basic social or property guarantees. In fact, although it may be coexistent with biological parenthood, so-called multi-parenting, although it does not provoke great reflections on the coexistence of children with both parents, raises concerns about the criteria for the sharing of assets in the case and succession In this way, it is necessary to know and deepen the study of the modern institute, object of this article. In view of this, its structure will be related to the norms that currently guide the Brazilian Succession Law, with the scope of permeating current doctrinal understandings about the habilitation of multiple parents in the inheritance of a child who has passed away without leaving descendants and, in the same In the inheritance of more than one father or mother.
Keywords: Socioafetividade. Multiparentality. Effects.
INTRODUÇÃO
Muito embora a socioafetividade seja um instituto ainda moderno em nosso ordenamento jurídico, é carregada de relevância em igual proporção, uma vez que, pode-se assim dizer, revoluciona a concepção de família enquanto instituição social. De mesma forma, vem a reforçar os direitos e garantias dos filhos havidos de outras formas que não a biológica na constância do casamento, e que antes da Carta Magna de 1.988, eram tratados às margens da família que seria seu esteio (RNDFS, 2014, p. 35-37).
Segundo a Revista do Instituto Brasileiro de Direito de Família (2014, p. 11), a família brasileira passou por uma revolução nas últimas décadas do século XX, em virtude dos valores firmados pela Constituição Federal de 1.988, porquanto pais que assumiram voluntariamente o afeto, a convivência e os cuidados para com os filhos através da adoção, passaram a ter assegurada, a igualdade de direitos e deveres.
Neste sentido, apregoa o referido periódico (2014, p. 14):
Nenhum Direito estrangeiro avançou nesta matéria tanto quanto o Direito Brasileiro, inicialmente a doutrina e, depois, na jurisprudência, especialmente a do STJ. Na doutrina estrangeira, um dos trabalhos pioneiros foi a tese Critério Jurídico da paternidade, de Guilherme de Oliveira, em Portugal, mas sem todos os contornos que foram adotados no Brasil; nessa obra, o autor confessa que, quando começou a estudar o direito de filiação, aderiu sem reservas ao mandamento da verdade biológica do parentesco, dele se distanciando à medida que prosseguia seus estudos.
Com efeito, este instituto consolidou-se de tal forma, que pautou a recente decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de coexistência de múltiplos pais, em relação a um único filho (STF, Notícias, 2016):
[...] Ex positis, nego provimento ao Recurso Extraordinário e proponho a fixação da seguinte tese para aplicação a casos semelhantes: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais. [...]
Se há poucos dias os doutrinadores empenhavam-se em analisar a impossibilidade de desconstituição da paternidade socioafetiva para posterior reconhecimento pelo pai consanguíneo, o que se vê hoje são os interesses do filho e a guarda de sua dignidade colocados em lugar de destaque. Outrossim, os pais também tem seus direitos e integridade resguardados, porquanto não mais correm o risco de ver-se desapropriados do convívio e do laço de afetividade construídos com os filhos a partir da convivência, da proteção e do mútuo afeto, duradouros ( STF, Notícias, 2016).
Historicamente, desde os mais remotos tempos, existem as figuras do filho de criação e do pai do coração, contudo, sem jamais ter segurança alguma, estas pessoas seguiam às margens das famílias, sendo na grande maioria dos casos, tratados como “bastardos” ou empregados da casa.
Frente a essa concepção discriminatória, a Constituição Federal de 1.988 atribuiu igualdade aos filhos, havidos ou não na constância do casamento e ao longo do tempo, consolidou-se o instituto da adoção. Contudo, em razão da constante metamorfose da sociedade, impôs-se ao ordenamento jurídico brasileiro o reconhecimento da paternidade socioafetiva e de seus efeitos, não podendo mais o legislador ou a sociedade em geral, dispor da estrutura, tanto psicológica quanto patrimonial, das famílias socioafetivas (RNDFS, 2014, p. 37-39).
Igualmente, a paternidade consanguínea permanece revestida da devida tutela jurídica. Portanto, não se trata de sobreposição do afeto aos laços genéticos, ou da convivência, à paternidade biológica, mas sim, da equiparação de ambas, sempre com o escopo de garantir a dignidade tanto dos filhos, quanto dos pais e de mais integrantes da família.
De outra banda, não se pode negar que em que pese a multiparentalidade tutele os direitos fundamentais de pais e filhos, terá de haver o devido enfrentamento das questões práticas destas relações. Uma vez que os filhos socioafetivos têm assegurados os mesmos direitos inerentes à filiação consanguínea, sejam alimentícios, sociais, protetores ou patrimoniais, inevitavelmente serão necessárias adequações nas áreas do Direito de Família e das Sucessões.
Através de revisão bibliográfica debruçada sobre a doutrina, a jurisprudência e artigos científicos, faz-se possível maior compreensão e aprofundamento no tema, vez que as recentes discussões doutrinárias e decisões do Supremo Tribunal Federal vêm desenhando com firmeza este novo capítulo do ordenamento jurídico brasileiro.
Com efeito, a decisão da Suprema Corte do Direito Brasileiro em reconhecer e legitimar a multiparentalidade nas relações de filiação revestiu-se de repercussão geral, configurando a efetiva mudança do ordenamento jurídico brasileiro em relação a este aspecto.
Neste sentido, a grande relevância do estudo e compreensão do tema, porquanto não se trata apenas de mera inovação ou discussão ideológica, mas sim de mudança nas relações de filiação e, por conseguinte, nas sucessórias.
Mudança esta que já se tornou definitiva, atingindo condição de permanente não só em nossa sociedade, como há muito se vê e é discutido pela doutrina, mas também no âmbito jurídico brasileiro.
Destarte, passa-se em seguida a compreensão da paternidade socioafetiva e entendimento de seus efeitos, que vieram a culminar na legitimação da multiparentalidade no ordenamento jurídico nacional, bem como dos reflexos que estas importantes mudanças trazem para o Direito das Sucessões, vez que filhos e pais são herdeiros legítimos e necessários, o que inevitavelmente acarretará em transformações nas relações familiares seja no tocante à garantia de alimentos, cuidados, amparo, convivência social ou na ceara patrimonial, ambas dotadas de relevante valor para a garantia da dignidade humana.
- MODERNA CONSEPÇÃO DE FAMILIA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Para Plácido e Silva (2014, p.607), “em sentido lato, a família é a instituição formada por pessoas ligadas pelo vínculo de consanguinidade, porém o sentido constitucional de família se confunde com entidade familiar”.
Se o Código Civil de 1.916 limitou-se apenas a conceituar família como uma sociedade conjugal, o texto Constitucional, por sua vez, remete-se à família de forma ampla, trazendo a figura dos Princípios Constitucionais da Dignidade Humana, Solidariedade Familiar, da Função Social da Família e da Proteção das Crianças e Adolescentes, entre outros.
Para Pamplona Filho e Gagliano (2014, p. 62), “a Família, ainda que sendo um instituto de direito Privado, sofreu um real processo de funcionalização, sendo dotada de uma função social”. Por sua vez, Nogueira da Gama afirma (2001, p.50):
As famílias passaram a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada participe. A efetividade das normas constitucionais implica a defesa das instituições sociais que cumprem seu papel maior. A dignidade da pessoa humana colocada no ápice do ordenamento jurídico encontra na família o solo apropriado para seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional ao Estado, no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de sua espécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada participe, com base em ideais pluralistas, solidárias, democráticos e humanistas.
Nota-se, portanto, o abandono da concepção retrograda de família como sendo uma sociedade conjugal, advinda apenas de vínculos de consanguinidade, e adoção efetiva do conceito amplo de família como sendo um ente dotado de função social, independentemente de sua origem ser pautada na consanguinidade ou no afeto (REVISTA IBDFAM, 2014, p.11).
O texto Constitucional nos remete expressamente a este entendimento em seu art. 227, §6° quando estingue qualquer distinção entre filhos havidos na constância ou não do casamento e filhos adotivos, garantindo a estes direitos igualitários, não permitindo quaisquer atos discriminatórios relacionados à filiação (SARAIVA, 2013, p. 74).
Se historicamente apenas a ciência garantia à pessoa a qualidade de filho, através de análises clínicas para comprovação de vinculo biológico, modernamente o Direito Brasileiro tem evoluído, considerando para fins de filiação a situação fática e afetiva entre estes. O reconhecimento de paternidade, através da adoção, por exemplo, é explicitamente consagrado pelo texto Constitucional supracitado, sendo dotado de legitimidade (REVISTA IBDFAM, 2014, p.14).
Plácido e Silva (2014, p.608) traz importante contribuição neste sentido, por quanto conceitua em sua obra os diversos moldes de família, decorrentes desta evolução jurídica, quer sejam “família anaparental, família etena ou ampliada, família monoparental, família mosaico, família natural e família substituta”.
Por fim e não menos importante, nosso ordenamento jurídico adotou a figura da socioafetividade, em que pese ser a existência fática de afeto entre pessoas da família e sua vivência como parentes de fato (REVISTA NACIONAL DE DIREITO DE FAMILIAS E SUCESSÕES, 2014, p. 49).
Por sua vez, o Código Civil de 2002, dispõe no art. 1.593: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (SARAIVA 2013, p. 264)”. Permitindo assim à hermenêutica, a interpretação e disposição de outras formas de estabelecer-se o parentesco.
Neste contexto, segundo a Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões (2014, p.18), ainda que atraídos pela praticidade e rapidez dos exames de DNA, os Tribunais Superiores, tem pautado suas decisões na situação fática de convivência e existência de vínculo afetivo para caracterizar a parentalidade.
Se o assunto parece moderno aos olhos do mundo jurídico, fato é que socialmente existem há muito tempo os chamados filhos de criação, “adoção a brasileira”, o considerar-se pai e sentir-se como filho já são fatos conhecidos historicamente. Ainda que a priori esta concepção possa parecer ir de encontro ao dito “Mundo das Leis”, o que a doutrina tem entendido é que, sendo o Direito pautado pelo social, ou seja, uma resposta aos acontecimentos sociais é necessário que se evolua neste sentido, para garantir além de afeto, segurança jurídica aos vulneráveis. Diante disso, temos agora o afeto e o estado de filho, dotados de valor jurídico (REVISTA IBDFAM, 2014, p.12).
O Instituto Brasileiro de Direito de Família, mostra-se totalmente favorável a este entendimento, como demonstra em suas mais recentes publicações: “A verdadeira paternidade é adotiva, isto é, se não se adotar o filho, mesmo o biológico, já mais haverá paternidade em seu verdadeiro sentido (REVISTA IBDFAM, 2015, p.16)”.
O estado de Filho, por tanto, fundamenta-se não mais apenas em laços biológicos, mas sim, na existência real de afeto, de convivência duradoura na qual as partes, pai e filho, dispõe uma a outra o carinho, a solidariedade, a proteção e o companheirismo próprios de uma família, de tal forma, que fazem transparecer esta vontade absoluta à sociedade na qual estão inseridos (REVISTA IBDFAM, 2014, p. 16).
Não quer este fenômeno, excluir os laços biológicos, na verdade o que se nota são as situações de fato tomando frente ou minimamente, caminhando lado a lado da via científica.
Historicamente, filhos havidos fora da constância do casamento, eram onerados com a inferioridade, em relação aos chamados filhos legítimos, eram os ditos filhos ilegítimos ou de criação, passando uma vida à margem da família que detinham como porto seguro. O que se via, eram crianças, vulneráveis, sendo oneradas por erros ou decisões de adultos capazes.
Neste sentido, apregoa a Revista do Instituto Brasileiro de Direito de Família (2015, p. 15):
Para uma boa estruturação psíquica, o pai biológico não é essencial, ou tem um papel subsidiário ou secundário, pois quem proporcionou toda a estrutura psíquica (ao lado da mãe) e impingi-lhe a “lei do pai”, ou seja, coloca limites, cuida, educa, enfim, é o verdadeiro pai. Se a biologia tivesse importância primeira, não seria possível o milenar instituto da adoção.
Com a consolidação da socioafetividade como Principio Jurídico, os ora prejudicados socialmente, agora detém segurança tal, que seu estado de filho lhes garante todos os direitos e efeitos advindos da filiação, sejam estes direitos ao provimento de alimentos, proteção ou direitos sucessórios em relação a seus pais de fato.
A exemplo da adoção, que tem caráter irreversível, a paternidade, e aqui se leia maternidade também, socioafetiva busca a proteção de pessoa que tenha durante sua vida inteira recebido cuidados e carinho no seio familiar, não permitindo que situação adversa lhe exponha ao desespero de encontrar-se por fim, abandonada e sem estrutura alguma, como afirma a Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões (2014, p. 47):
Certamente, a consequência negativa dessa possibilidade é avassaladora no tocante ao desenvolvimento da personalidade da criança. Ademais, mesmo quem já passou da infância e atingiu a fase adulta da vida, não pode ser atingido desta forma, em respeito ao Princípio da Dignidade Humana e Boa Fé nas Relações de Filiação.
Neste sentido, podemos entender claramente a moderna valorização da entidade familiar, porquanto toda pessoa humana tem assegurado pela Constituição Federal o direito de constituir uma família, sem que esta tenha necessariamente de obedecer a determinados padrões, podendo originar-se tanto da consanguinidade, quanto da informalidade, da uniparentalidade ou do afeto.
- A LEGITIMIDADE DA PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA FRENTE AOS LAÇOS BIOLÓGICOS.
Segundo a Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões (2014, p. 35):
A evolução do instituto da filiação, antes evidenciado pelo aspecto discriminatório, em relação os filhos oriundos das relações não matrimoniais, pode ser comprovada pelos critérios atuais definidores da relação filial: jurídico, biológico e socioafetivo. A filiação socioafetiva, decorrente da posse de estado de filho como consequência do redimensionamento da verdade jurídica da filiação, é pautada pelo princípio da igualdade dos filhos e pelo valor jurídico do afeto.
Destarte, verifica-se que o instituto da filiação sofreu significativas transformações, revestindo-se de novos contornos e sendo pautado em novos parâmetros, em suma, como reflexo da realidade social e contraponto à violência que as próprias leis vinham causando à dignidade dos filhos de qualquer natureza (Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, 2014 p. 36).
Para Maciel, (2015, p. 126):
Nessa esteira, ainda, não se pode deixar de mencionar a importantíssima integração ao direito brasileiro da doutrina da proteção integral, do principio do superior interesse da criança e do adolescente, e, por derradeiro, o reconhecimento o afeto e do cuidado como princípios jurídicos, sem os quais as relações familiares se consumiriam em institutos vazios e fadados a desaparecer, pois são elementos indispensáveis para sua manutenção.
O que se percebe é a dignidade da pessoa humana revestindo-se de tamanha importância que ocasionou significativas transformações nos aspectos existenciais da filiação. Outrossim, vislumbra-se claramente o relevante valor jurídico que vem sendo atribuído ao afeto que tem início no âmbito privado e posteriormente, porquanto duradouro, é externado em sociedade, o que denota estado de filho e permite o seguro reconhecimento da paternidade socioafetiva (RNDFS, 2014, p. 38).
Neste sentido, pode-se dizer que o estado de filho é consubstanciado não apenas na formalidade do registro civil, mas principalmente no afeto que pai e filho dispensam entre si e na imagem que a sociedade em que estão inseridos, tem desta relação (RNDFS, 2014, p. 43).
O que se pode observar é que a antiga concepção da primazia genética está dando espaço à situação fática, como uma forma de proteção das relações filiais. Há alguns anos, o exame pericial adequado (DNA) era fundamento indiscutível para a desconstituição da paternidade socioafetiva, porém, atualmente, tem-se a adoção, seja formal ou socioafetiva, como uma manifestação inequívoca de vontade dos pais, que vincula uma criança em plena formação psicológica, que não pode sofrer de tal forma.
Vale ressaltar que até mesmo casos de indução a erro no reconhecimento de paternidade estão limitados pela dignidade do filho, sendo que, uma vez constituído o estado de filho, nem mesmo o erro dos pais servirá de subsidio e fundamento para que seja este onerado com a desconstituição da paternidade.
Contudo, não se trata da sobreposição de qualquer situação fática aos laços biológicos, mas sim, pode-se dizer de uma efetiva paridade em relação a estes dois aspectos da filiação, com o escopo de pauta-la no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, como podemos vislumbrar no 12° volume da Revista do Nacional Brasileiro de Direito de Família e Sucessões (2015, p. 17):
A legislação brasileira prevê quatro tipos de estados de filiação, decorrentes das seguintes origens: a) por consanguinidade, b) por adoção, c) por inseminação artificial heteróloga, d) por força de posse de estado de filiação. A consanguinidade, a mais ampla de todas, faz presumir o estado de filiação quando os pais são casados ou vivem em união estável, ou ainda na hipótese de família monoparental. O direito brasileiro não permite que os estados de filiação não consanguíneos, referidos nas alíneas b e d, sejam contrariados por investigação de paternidade, com fundamento na ausência de origem biológica, pois são irreversíveis e invioláveis, no interesse do filho.
O referido periódico faz ainda referência à fundamentação trazida pelo Código Civil Brasileiro:
Art. 1.593, para o qual o parentesco é natural ou civil, “conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. A principal, relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade;
Tem-se, portanto, a clara anuência do ordenamento jurídico brasileiro às diferentes formas de consolidação do estado de filiação, sem jamais desqualificar o liame biológico, que é cientificamente a forma precípua de presunção de paternidade, mas elevando o estatus do afeto e da convivência entre pais e filhos de maneira que atingiram igual valor jurídico na busca pela dignidade da família, que desta forma reveste-se de maior segurança.
Assim consagrou-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao negar provimento ao Recurso Extraordinário 898060. Neste caso concreto, o pai biológico recorria contra decisão que estabeleceu sua paternidade e consequente responsabilidade em relação ao filho, ainda que houvesse paternidade socioafetiva diversa já consolidada (STF, Noticias, 2016).
Neste sentido o voto do relator, Ministro Luiz Fux, que fora acompanhado pela maioria dos ministros:
[...] No caso concreto trazido à Corte pelo Recurso Extraordinário, infere-se da leitura da sentença prolatada pelo Juízo da 2ª Vara da Família da Comarca de Florianópolis e dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, a autora, F. G., ora recorrida, é filha biológica de A. N., como ficou demonstrado, inclusive, pelos exames de DNA produzidos no decorrer da marcha processual (fls. 346 e 449-450). Ao mesmo tempo, por ocasião do seu nascimento, em 28/8/1983, a autora foi registrada como filha de I. G., que cuidou dela como se sua filha biológica fosse por mais de vinte anos. Por isso, é de rigor o reconhecimento da dupla parentalidade, devendo ser mantido o acórdão de origem que reconheceu os efeitos jurídicos do vínculo genético relativos ao nome, alimentos e herança. Ex positis, nego provimento ao Recurso Extraordinário e proponho a fixação da seguinte tese para aplicação a casos semelhantes: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais. [...]
A partir do referido acordão, nota-se à Dignidade da Pessoa Humana sendo adotada como pilar central na constituição da entidade familiar, vez que o Direito é que deve curvar-se à sociedade e à evolução de suas relações. Em que pese à busca pela felicidade, apontada como princípio pelo iminente ministro relator, soar aos ouvidos como integrante do âmbito emocional, encontra-se nessa premissa o amplo sentido da Democracia, garantida pela Constituição Federal de 1.988.
Em mais um trecho do voto do Ministro Luiz Fux, torna-se perfeitamente perceptível adoção do aspecto mencionado:
[...] Ante a impossibilidade de engessamento da configuração familiar, esta Egrégia Corte atribuiu a qualidade de entidade familiar às uniões estáveis homoafetivas, em julgamento histórico cujo acórdão estabelece premissa indispensável para o caso ora examinado. Invocando o direito à busca da felicidade, este colegiado declarou a “Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil”, bem como a “Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico” (ADI 4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011). Se o conceito de família não pode ser reduzido a modelos padronizados, nem é lícita a hierarquização entre as diversas formas de filiação, afigura-se necessário contemplar sob o âmbito jurídico todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais (como a 15 fecundação artificial homóloga ou a inseminação artificial heteróloga – art. 1.597, III a V do Código Civil de 2002); (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade.[...]
Segundo seu entendimento, o princípio da paternidade responsável consagrado no texto constitucional, denota que o reconhecimento das relações filiais tanto biológicas quanto socioafetivas, é medida que se impõe, não mais permitindo que haja uma obrigatória decisão entre filiação biológica ou socioafetiva, mas sim, o reconhecimento de ambos os vínculos, desde que seja neste sentido o melhor interesse do descendente.
Assim, a multiparentalidade já há muito discutida pela doutrina brasileira, corrobora-se pela referida decisão do Supremo Tribunal Federal, dotando-se de relevante valor jurídico e passando a pautar as relações familiares em todo o território nacional, não apenas no âmbito afetivo, sociológico e psicológico, mas também, como não poderia deixar de ser com todos os reflexos patrimoniais e sucessórios pertinentes à filiação.
- REFLEXO DA MULTIPARENTALIDADE NO DIREITO DAS SUCESSÕES.
Para Venoza (2003, p. 15) suceder é substituir, tomar o lugar de outrem no campo dos fenômenos jurídicos.
Por sua vez, Goncalves (2007, p. 3) afirma que o direito sucessório, remonta a mais alta antiguidade, sempre ligado à ideia de continuidade da religião e da família.
Nota-se, portanto, no conceito do renomado doutrinador que o âmbito patrimonial é intimamente ligado às relações familiares, podendo depreender-se que a própria transferência de propriedade do patrimônio dá-se em razão dos laços familiares, que com isto, prorrogam-se por gerações.
Neste contesto, podemos verificar atualmente, como um desdobramento dos conceitos de sucessão legítima e testamentária, o taxativo conceito de herdeiros necessários, aqui trazido por Goncalves (2007, p. 28):
Herdeiro necessário, legitimário ou reservatário é o ascendente, descente ou o cônjuge (CC, art. 1.845), ou seja, todo parente em linha reta, não excluído da sucessão por indignidade ou deserdação, bem como o cônjuge, que só passou a desfrutar dessa qualidade no Código Civil de 2002, constituindo tal fato uma importante inovação.
Cabe ressaltar também, o entendimento de Plácido e Silva (2014, p. 1.340) que conceitua:
Suceder por linha significa vir a uma sucessão ou herdar, não por jure próprio nem por jure representations, mas sim em razão de parentesco ascendente, ou de linha ascendente, que coloca a pessoa em posição de herdar, desde que faltem descentes. Assim, semelhante modo de suceder ocorre quando, morrendo alguém sem descendestes, [Cód. Civil /2002, art. 1.836, caput (Cód. Civil /1916, art. 1.606)], que vêm concorrer à herança, sem distinção de linhas.
Desta forma tanto os ascendentes por linha paterna como os por linha materna vêm à sucessão, trazendo direitos iguais desde que sejam do mesmo grau. E o de grau mais próximo exclui o de grau mais remoto [Cód. Civil/2002, art. 1.836 §1° (Cód. Civil/1.916, art. 1.607)].
Neste sentido, temos claramente que o estado de filiação perfaz-se um pilar da sucessão, uma vez que ascendentes e descentes, juntamente com o cônjuge assumem o lugar de herdeiros necessários, excluindo as linhas mais remotas, como disciplina o Código Civil Brasileiro em seu art. 1.829 (SARAIVA, 2013, p.278):
Art. 1829-A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais.
Destarte, os avanços corroborados pela decisão do Supremo Tribunal Federal em conferir legitimidade à multiparentalidade, em que pese serem medidas que se impunham até mesmo pela própria Constituição Federal, trouxeram consigo preocupações acerca da questão patrimonial, vez que tanto os filhos poderão habilitar-se na herança dos múltiplos pais ou mães, quanto estes poderão suceder aos filhos.
Vale ressaltar, que conforme o princípio constitucional previsto expressamente no artigo 227, § 6º da CF “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Com efeito, independente da origem, seja sócio afetiva ou biológica, os filhos de múltiplos pais, terão seus direitos assegurados em relação a ambos, podendo habilitar- se na linha sucessória destes (SANTOS, 2014).
Daí a preocupação em vedar a existência de demandas com escopo meramente patrimonial, ou seja, filhos que buscam o reconhecimento, tanto da paternidade socioafetiva quanto biológica, com intuito unicamente patrimonial, gerando uma banalização das relações familiares, tão valorizadas para a consagração deste instituto.
Neste sentido, foi o parecer exarado pelo Ministério Público Federal no caso concreto que culminou na legitimação da multiparetalidade no Direito Brasileiro (CALDERÓN, 2016):
De todo modo, os riscos de indolência e excesso nas questões alimentícias são controlados pelo binômio necessidade-possibilidade, que obsta o enriquecimento ilícito dos envolvidos na multiparentalidade. (...) Eventuais abusos podem e devem ser controlados no caso concreto. Porém, esperar que a realidade familiar se amolde aos desejos de um ideário familiar não é só ingênuo, é inconstitucional.
Nota-se claramente na manifestação do órgão ministerial que eventual ajuizamento de ação com a finalidade única de obter o reconhecimento de paternidade, tanto socioafetiva quanto biológica, para fins patrimoniais, cairá em desaprovação pelo ordenamento jurídico brasileiro, porquanto este obsta o enriquecimento ilícito.
O Código Civil Brasileiro (SARAIVA, 2013, p. 208) veda expressamente tal situação, como se pode notar nos artigos 884, 885 e 886, in verbis:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.
De mesma forma, depreende-se que estas questões, ainda que dotadas de relevância, não podem servir de justificativa para que se fechem os olhos para a realidade social.
Se não se pode, banalizar de forma nenhuma as relações patrimoniais entre familiares, igualmente não se pode deixar caírem no descaso as relações entre pais e filhos unicamente com este fundamento, cabendo à magistratura a análise de cada caso concreto.
Não obstante, existe também preocupação com os casos em que filhos falacem antes dos pais sem deixar descendentes, vez que, a atual forma de distribuição da herança entre os ascendentes não deverá ser observada em casos concretos de multiparentalidade.
De acordo com o art. 1.836 do Código Civil, ascendentes de mesmo grau e de linhas diferentes herdam quotas iguais, ou seja, ascendentes da linha paterna herdam a metade, cabendo a outra, aos ascendentes da linha materna. (SARAIVA, 2014, P. 279).
A Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões (2014, p. 126), classificou o direito das sucessões brasileiro como inadaptado à multiparentalidade, principalmente no que tange à sucessão dos ascendentes, vez que adota o conceito de sucessão por linhas, admitindo a existência de apenas duas, a linha materna e a linha paterna.
Não haveria, por obvio, problemas quanto à exclusão de ascendente em grau mais remoto pelo de grau mais próximo, porém, existindo a divisão por linhas, em caso de multiparentalidade, não haveria paridade entre estas.
É inevitável a preocupação dos doutrinadores quanto à partilha de bens entre múltiplos pais frente à divisão por linhas, vez que havendo dois pais e uma mãe, por exemplo, esta herdaria metade dos bens enquanto aqueles herdariam conjuntamente a outra metade, acabando cada um por receber quotas inferiores à recebida pela mãe.
Neste sentido, o referido periódico apontou possíveis soluções, porém, destacou que estariam estas às margens da Lei:
Ou se admite uma terceira linha (correspondente aos ascendentes sócioafetivos) e que se pode desdobrar, conforme o caso em quarta, quinta, etc.; ou se inclui o ascendente socioafetivo em uma das linhas existentes, o que parece um arremedo de solução ainda pior. A bem dizer, uma terceira solução embasar-se-ia na assunção de que paternidade ou maternidade socioafetivas são vínculos personalíssimos, então não haveria sucessão dos “avós” por intermediação de socioafetividade.
Contudo, admite-se que as relações afetivas de cada pessoa são imensuráveis e impossíveis de serem classificadas ou medidas unicamente por aspectos práticos, cabendo ao Poder Judiciário apreciar e ponderar cada situação.
Neste diapasão, apregoa Tartuce (2015, p. 399 e 400), que a multiparentaliade denota-se como um caminho sem volta do Direito de Familia contemporâneo, devendo, nos próximos anos, surgirem novas jurisprudências a respeito, dando origem à novas teorias e consolidando os princípios constitucionais nesse sentido.
Não se nega a necessidade de haverem parâmetros acerca da sucessão nas famílias multiparentais, porém seria ingênuo e precipitado almejar que a solução absoluta venha de apenas uma decisão, ainda que esta tenha nascido sobre a égide o Supremo Tribunal Federal, o que se verá nos próximos capítulos da multiparentaliade no Brasil, será a ceara do Direito de Família e das Sucessões adequando-se e transformando-se gradativamente, caso a caso.
Se no atual contexto, pelo ardor inevitável da mudança peculiar ao Direito, vislumbram-se apenas as possibilidades de criação de múltiplas linhas de sucessões por ascendestes ou simplesmente a inclusão dos pais socioafetivos em uma das linhas já existentes, o que acarretaria na necessidade de um padrão de cálculo para a divisão de eventual espólio, seguramente o ordenamento jurídico brasileiro haverá de transformar-se, criando novas soluções legais para estas questões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Decididamente, o estado de filiação e as relações de parentesco, não podem mais ser pautados apenas na consanguinidade, vez que, em razão das metamorfoses sociais, o ordenamento jurídico brasileiro corroborou o afeto, não só como parte das relações familiares, mas como requisito para que estas se desenvolvam e efetivamente se configurem.
O retrogrado enfoque dado pelo direito às famílias fora efetivamente abandonado, porquanto não mais se pauta a proteção da entidade familiar em relação ao patrimônio, mas sim, no afeto e convivência entre as pessoas da família, tutelando não mais os bens da família, mas sim a dignidade das partes.
A praticidade dos exames técnicos, como DNA, deu lugar à subjetividade da convivência e do afeto mútuo entre pais e filhos, subjetividade esta, que jamais deverá ser confundida com incerteza, mas sim, considerada como o respeito à dignidade humana, enquanto direito fundamental e a liberdade que cada pessoa tem de estabelecer suas relações e nortear suas vidas.
Neste sentido, nota-se a garantia de segurança às relações entre pais e filhos socioafetivos, porquanto não mais estão sob à sombra da desconstituição frente à laços biológicos.
Contudo, essa transformação não se trata da desvalorização da paternidade consanguínea, mas sim da valorização da socioafetiva, como igual, equiparada e não menos importante, afinal, o que se pretende precipuamente é a garantia da dignidade dos membros da relação parental, principalmente, dos filhos que não deverão mais ver-se desprovidos da figura paterna ou materna, que outrora lhe transmitira cuidados, afeto e segurança.
Outrossim, este instituto vem a impedir lacunas deixadas na vida de crianças e adolescentes pela ausência da figura dos pais, resultante do simples fato de não terem sido gerados nos padrões sociais impostos.
A multiprentalidade chega ao ordenamento jurídico brasileiro, como instituto defensor dos direitos das crianças, adolescentes e idosos, e por que não dizer dos adultos, vez que, ter seus laços afetivos rompidos causa sofrimento e confusão a pessoas de qualquer idade, além de muitas vezes expor crianças e idosos à situação de vulnerabilidade social, ao verem-se sem o provimento de alimentos e necessidades básicas.
Não se pode negar, que se trata de instituto recém estabelecido e, portanto, dependerá de muitas adequações e definições.
No liame do Direito das Sucessões já surgem questões de suma importância a serem observadas e disciplinadas. Em que pese não haver dúvida quanto ao direito de descendes e ascendestes como herdeiros legítimos e necessários, é a questão prática que coloca doutrinadores e estudiosos em alerta: como será disciplinada a partilha de bens em casos de filhos com mais de um pai ou mãe, poderão estes efetivamente receber alimentos e habilitar-se na herança dos múltiplos pais ou mães ou como serão partilhados os bens para sucessores de mesmo grau e linhas diferentes para que haja paridade, por exemplo.
Fato é que, mudanças no Direito Sucessório serão imprescindíveis, vez que os moldes adotados atualmente não se adequam à multiparentalidade, porém, não há razão para crises ou qualquer ansiedade, uma vez que juízes terão condições de analisar cada caso concreto, evitando a procedência e o prosseguimento de demandas com escopo meramente patrimonial. Outrossim, serão estas demandas, por óbvio, tuteladas pelos Princípios Constitucionais do Devido Processo Legal, Ampla Defesa e Duplo Grau de Jurisdição, o que revestirá tais decisões de segurança jurídica.
Possivelmente teremos nos próximos anos o surgimento de legislações infraconstitucionais, mudanças jurisprudências e até mesmo emendas constitucionais a respeito dos vários aspectos práticos da multiparentalidade em relação ao Direito das Sucessões.
Porém, se não este, qual seria o caminho pra avançarmos enquanto nação democrática?
Vale ressaltar que a garantia constitucional de dignidade, para que seja efetiva, indubitavelmente terá de compreender vários aspectos, como o afeto, o suporte dos familiares, as relações sociais, a imagem que cada pessoa tem de si mesma e transmite à sociedade, bem como os direitos patrimoniais que conferem a essas as condições de sobrevivência e manutenção de suas necessidades.
Neste sentido, em que pesem os ônus trazidos pela mudança, vertiginosamente maiores são os benefícios da socioafetividade e da multiparentalidade para a sociedade e para a individualidade de cada pessoa humana.
Ademais, historicamente, tem sido exatamente esta a forma de se dar a evolução do Direito Brasileiro.
A sociedade caminha constantemente, trilhando novos horizontes e mudando seus rumos, ao Direito resta acompanhar e adequar-se já que a este restou o imprescindível papel de regrar e limitar as relações sociais garantindo a todos a devida prestação jurisdicional.
Se inertes permanecessem as leis, certamente a sociedade cairia em estado de calamidade e confusão frente às inúmeras situações que restariam desamparadas pela tutela da legislação e do Direito.
Sendo assim, a multiparentalidade ainda que geradora de conflitos e questionamentos no âmbito do Direito Sucessório, certamente será responsável por inúmeras outras evoluções, tão necessárias à sociedade.
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