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Existem mais coisas entre o céu e a terra do que 54 salários mínimos!
Existem mais coisas entre o céu e a terra do que 54 salários mínimos!
Elton Costa[1]
Seu João é um típico cidadão do interior maranhense. Mora numa cidade com pouco mais de 30 mil habitantes, onde o sustento da população vem basicamente de duas fontes de renda: ou se é empregado da prefeitura ou se vive da roça.
No caso do seu João, o analfabetismo funcional – a escrita se limita ao próprio nome feito em garranchos que nem ele consegue entender – o privou da “oportunidade” do emprego arranjado no município e, por isso, toda a sua renda é oriunda do plantio na roça e das criações no seu terreiro. Aqui alguns certamente perguntarão: “criações”? Trata-se de como chamam o criatório de pequeno porte de algumas espécies de animais, normalmente galinhas e porcos. Resumo: seu João é o típico caboclo da roça nordestino.
“Desamigado” de dona Maria – é assim que ele explica a situação – quando perguntado sobre seu estado civil, pois não sabe explicar que conviveu em união estável com ela por cinco anos. Qualquer semelhança com o tempo de casamento de um certo sertanejo famoso não é mera coincidência.
Da conjugalidade finda restaram dois filhos, Joãozinho e Maricota, com 5 e 2 anos respectivamente (olha a coincidência novamente). As crianças foram embora com a mãe para a casa dos avós e seu João ficou na modesta casa do casal. E bote modesta nisso: casebre de taipa, com o telhado de folha de palmeira babaçu; dois pequenos cômodos: um que servia de quarto para toda a família e outro que servia de, bem, servia como todo o resto da casa. Afora isso, uma latada no quintal que abrigava o fogão a lenha.
A separação ocorrera de modo tranquilo, sem maiores confusões. Ninguém sabe até hoje os motivos do fim da união, porém, o que se sabe de fato é que dona Maria chegou na casa dos pais cedo do dia, antes mesmo do galo cantar (prometo que as semelhanças param por aqui).
Passados alguns poucos meses da separação, seu João foi surpreendido com o ronco de uma moto na porta da sua casa, bem na hora do descanso após o almoço. Naquele dia o descanso seria maior, afinal, o “banquete” da vez fora uma pratada de feijão verde colhido no dia, farinha de puba e um toicinho de porco que daria para fazer uns 3 kg de linguiça. Boa tarde, seu João. Gritou o senhor à porta, seguindo a fala do batido de palmas. O senhor pode vir aqui fora um instante?
Quem será a esta hora? Pensou/indagou o intrigado João, afinal, não costumava receber ninguém em sua casa, muito menos naquela hora do dia. No interior as pessoas costumam respeitar determinados horários e evitam ir na “casa alheia”. Após o almoço é um desse momentos.
Pois não, seu moço. Em que posso lhe ser útil? Pularei o restante do diálogo para não ficar enfadonho. Resumo da conversa: era o Oficial de Justiça da comarca levando a citação da ação de reconhecimento e dissolução de união estável c/c partilha de bens, alimentos e guarda. Obviamente o seu João não entendeu bulhufas do que estava escrito naquela folha de papel (analfabetismo funcional, lembram-se), mas, por sorte, o OJ cumpriu o figurino e leu os termos do mandado antes de entregá-lo ao, agora, “requerido” seu João.
Mais óbvio ainda é que o seu João passou o resto do dia matutando sobre aquilo. Primeiro: nunca teve problema com a justiça e agora isso. Segundo: partilha de bens? Que bens são esses que querem que eu partilhe? Por fim, o tal do “requerido”. Isso era o que de fato não saia da cabeça dele. Será que a Maria tá me querendo de volta? Coitado do seu João. Foram longos 30 dias da visita do “seu moço” até a ida à Casa da Justiça - em algumas comarcas menores é assim que o Fórum é intitulado.
No dia certinho lá estava seu João na porta da Casa da Justiça. Calça social emprestada do Compadre José (a única que ele possuía estava rasgada nos fundos de tanto se abaixar para colher feijão na roça), camisa manga comprida xadrez e o único par de botas que compunha sua calcadeira. Chegou tão cedo, que encontrou somente o vigilante. Este, por sua vez, lançou mão do conhecimento jurídico aprendido de tanto escutar as conversas por lá e explicou para o seu João o motivo pelo qual ele estava ali. Finalmente o seu João entendeu que participaria de uma audiência de conciliação, numa ação proposta pela sua ex-companheira – de quem ele havia “desamigado” há alguns meses – e que a intenção na ocasião seria tentar resolver de forma amigável a situação, nas palavras do “jurisvigilante”.
Audiência designada para as 9h00. Como ele chegou um pouco depois das 6h00, foram as quase três horas mais angustiantes da vida do seu João. Enfim chegou o momento. Na sala de audiências, seu João (a perna não parava quieta de tanto nervosismo), dona Maria e o Conciliador da comarca, recém empossado no TJ. Aberta a audiência, o servidor explicou todos os pormenores do processo e o motivo pelo qual estavam ali: tentar resolver consensualmente a demanda, ou seja, para que os envolvidos chegassem a uma solução que melhor atendesse aos seus interesses.
Sobre a partilha dos bens, a conversa foi curta. Seu João não se opôs a Maria ir buscar o armário, a bileira e o pote d’água (bens móveis). Sobre a casa de morada (bem imóvel), a meação que cabia a dona Maria seria paga com 1 barrão, 6 galinhas poedeiras e a mão de obra para a construção de um puxado na casa dos pais dela.
No tocante à guarda e convivência com os filhos, também a questão foi dirimida facilmente. Como os pais da Maria moravam no mesmo interior – as casas não distavam meia légua uma da outra - as crianças ficariam “pra lá e pra cá”, sem muitas restrições e pormenores – aos que não acreditam, olha aí a guarda compartilhada-alternada de fato.
Chegou a hora de tratar da pensão alimentícia dos filhos. A petição inicial falava em 30% do salário mínimo. Seu João que já tremia uma das pernas freneticamente, agora passou a quase sambar com o movimento das duas. Seu conciliador, vai me desculpar o jeito, mas nem sei quanto isso significa em real. Mas eu sei que nunca na vida eu ganhei um salário mínimo. Quem me dera ter estudo para trabalhar na prefeitura e ganhar esse famoso salário mínimo.
Explicadas as formalidades do pleito alimentar (porque o pedido era em porcentagem do salário mínimo), seu João pediu licença para fazer uma oferta de pensão para os filhos. Claro, seu João, fique à vontade – emendou o Conciliador. Já que a gente veio até aqui para resolver a questão de forma amigável, sem briga e pelo tanto que quero o bem dos meus filhos, eu posso garantir todo mês uma saca de arroz pilado para eles.
Quem chegou até aqui deve estar pensando: como assim uma saca de arroz? Só pode ser brincadeira do seu João! Mas, prestemos atenção! É uma saca de arroz pilado. Aqui cabem duas observações: 1. Quem esqueceu o título do artigo volta lá e revisa e 2. O que é arroz pilado. É o arroz passado no pilão e na peneira para retirar a casca. Isso, no interior, tem seu valor. Muito antes do arroz Tio X chegar nas prateleiras dos supermercados, era esse o arroz de valor.
O Conciliador se assustou com a oferta do seu João, é verdade. Creio que alguns por aqui também, mas, esperemos seu João terminar a sua fala. Continue, seu João. Olha só. O arroz pilado ainda tem seu valor lá no povoado e a Maria sabe disso. Eu tenho que pilar duas sacas e deixar uma como pagamento para o seu Noca, dono do pilão, é 2 pra 1. Agora eu vou ter que me virar para colher arroz que dê para pilar 4 sacas. Além do que, os meninos irão comer lá em casa sempre que quiserem e, graças a Deus, pode não ter luxo, mas o arroz, a farinha e o ensopado da galinha não falta na mesa. Tô mentindo, Maria? Nessa hora, dona Maria levantou a cabeça e com os olhos marejados respondeu: não, ele realmente tá falando a verdade.
Após a confirmação da verdade de João, dona Maria aceitou a proposta e os alimentos foram acordados in natura, no importe de 1 saca de arroz pilado por mês.
O Conciliador, que há poucos dias leu sobre os 54 salários mínimos de alimentos provisórios fixados em favor dos filhos do sertanejo famoso, tentava compreender o que estava acontecendo naquela sala. Em vão, ilustre colega de ofício, em vão. Se você não entendeu a dinâmica vivenciada por aquelas pessoas e o Valor (com V maiúsculo mesmo) da saca de arroz pilado, não vai compreender nunca o que de fato aconteceu na sala de audiências da Casa da Justiça de um interior qualquer do estado do Maranhão. Não existe doutrina e/ou jurisprudência que ensine sobre isso!
Por vezes, as questões familiares são tão simples de se resolver, porém, nos falta – aos operadores do direito – observar menos as normas e mais as pessoas e suas relações. Afinal, a vida real vai muito além do que – nas palavras do seu João - “famosos” 54 salários mínimos.
[1] Servidor efetivo do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão. Técnico Judiciário. Conciliador Judicial. Bacharel em Direito. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões. Capacitado em Mediação Familiar. Capacitado em Conciliação e Mediação Extrajudicial. Instagram: @eltoncosta_tjma.
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