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As necessidades deônticas que o direito de família demanda
As necessidades deônticas que o direito de família demanda
Jones Figueirêdo Alves
O Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM - acaba de completar vinte e três anos de sua existência institucional. Celebra suas “bodas de palha” com todas as famílias do país, em união indissolúvel consagrada pela coerência e urgência de suas causas, na doutrina que milita pelo direito que as protege. Boda(s) (“votum”/“vota”) quer dizer promessa(s), consagrando os votos matrimoniais que se sucedem, a cada ano, e a “palha”, significando um material versátil de utilidades múltiplas, implica o relacionamento construtivo que se adapta ao seu curso normal.
E a primeira celebração institucional a ser feita, diante de tais bodas, situa-se consagrada no efetivar, sempre, o axioma: “É inútil dizer estamos a fazer o possível. Precisamos de fazer o que é necessário.” (01)
Daí, o IBDFAM tem sido atitudinal e proativo, diante das necessidades deônticas que o direito de família demanda, revitalizando seus princípios, harmonizando e solucionando posições divergentes no conflito de gerações, disseminando ideias novas em alinhamento dos interesses comuns e/ou específicos da família, protegendo as vulnerabilidades, estimulando o próprio direito familista aos seus melhores caminhos. Nunca se fez tanto em doutrina por uma área do direito privado (ou público), com suas consequentes repercussões na jurisprudência, como tem sido feito, em curto período de tempo, pelo IBDFAM através dos seus juristas de vanguarda e em prontidão permanente. Cada “boda” do Instituto é uma revolução necessária de saberes e de fazeres novos.
Caso possível incursionar, em breve análise, nos mais diversos impactos que o direito de família recepcionou pela atuação do Instituto Brasileiro de Direito de Família, cumpre-nos oferecer, nesse intento, quase um decálogo primordial para as reflexões decisivas. Vejamos:
01. A constitucionalização da família
A constitucionalização da família, incluída pela ordem jurídica em nosso direito desde a Constituição Federal de 1934, a colocando como instituição sob a proteção constitucional, trouxe avanços notáveis. Nessa linha evolutiva, a individualidade dos seus membros; a igualdade na filiação em simetria de tratamento independente de origem (sistema unificado da filiação) (02); a despatrimonialização das relações paterno-filiais (personalismo); os valores existenciais e a relação paritária dos casais, colocaram a estrutura familiar sob o elevado princípio da dignidade humana. A repersonalização das relações de famílias, como destacada na doutrina de Paulo Luiz Netto Lobo, “retoma o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito” (03). Essa funcionalização relacional pela dignidade de todos que realizam as entidades familiares permitiu ao IBDFAM ações no campo do direito que consolidaram humanismo e solidariedade social.
02. A tutela jurídica do afeto
“A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e solidariedade, é a função básica da família de nossa época” (04). Na percepção brechtiana, em suas peças didáticas, e pela palavra do personagem Asdak, o sábio juiz, diante da mãe afetiva Grusche, “as coisas devem pertencer a quem lhes tem amor” (05). Esse axioma de socioafetividade conduz à verdadeira filiação e o afeto tem se apresentado como importante valor jurídico.
Nesse sentido, Jacqueline Filgueiras Nogueira, já produzia, em 2001, a sua obra e no corrente ano, os juristas Christiano Chaves de Farias e Conrado Paulino da Rosa lançam a “Teoria Geral do Afeto”, com a exata compreensão jurídica da afetividade, que se perfaz em regra ética mínima e reciproca, em viés objetivo e racional, “a dizer que a afetividade serve como base estruturante para a interpretação e aplicação das normas disciplinadoras das relações de família”. (06).
Não há negar uma valiosa construção doutrinária consolidada a partir de João Baptista Vilela e de Luiz Edson Fachin, com as suas teorias da “desbiologização da paternidade” e da “socioafetividade”, que ofereceram marcante evolução ao direito de família.
03. O cuidado como valor jurídico
Reiteradas decisões judiciais cuidam de inibir, impedir ou punir a “negligência intolerável” como conduta inaceitável à luz do ordenamento jurídico para a devida proteção da família. A mais significativa delas, resultou da 3ª Turma do STJ, que obrigou um pai a indenizar o filho, na quantia de R$ 200 mil, por abandono moral. A relatora, ministra Fátima Nancy Andrighi, acentuou, então, que "amar é faculdade, cuidar é dever”.
De efeito, retenha-se, que o abandono afetivo se insere como infringência de cuidado devido, que se extrai do dever de assistência moral, em prejuízo do desenvolvimento psicológico e social do menor. A doutrina do abandono afetivo foi construída por Rodrigo Pereira da Cunha, presidente do IBDFAM, e tem servido como advertência veemente para uma paternidade responsável.
04. As famílias em seus modelos construtivos
O pluralismo dos modelos familiares ganha um significado dinâmico na realidade fenomênica das famílias, havidas por eudemonistas, a significar que todas elas buscam a realização plena de seus membros pelo liame determinante de afetos recíprocos. Nessa diretiva inexorável, o direito de família as contempla sob os influxos da doutrina do IBDFAM, fomentando uma legislação responsável.
Famílias pluriparentais, coparentais, múltiplas, simultâneas, neoconfiguradas, expandidas, poliafetivas, todas recebem o respeito do direito familista, para a devida tutela jurídica adequada, por envolver todos seus integrantes como sujeitos de direitos em seus bens jurídicos. Para todos os fins de direito, o IBDFAM tem capacitado uma doutrina à altura dos arranjos familiares, a atender todos os interesses envolvidos. Vínculos parentais ou afetivos, conjugais ou convivenciais, são experenciados pela realidade que provê os sentimentos e uma vida consagrada à sua realização e o direito de direito demanda a proteção adequada.
Anota-se, com forte carga simbólica, a obra de Luciana Brasileiro ‘As famílias simultâneas e seu regime jurídico” (Fórum, 2019), com “as mudanças provocadas a partir da valorização das pessoas em detrimento do patrimônio, especialmente em razão da valorização da dignidade humana”. Nesse sentido, todas as famílias, em seus mais variados arranjos, devem coexistir em dignidade.
05. O divórcio impositivo em dignidade da vida
Imperativo assinalar que a proposta legislativa em curso (PLS nº 3.457/2019) por um divórcio impositivo, célere e invencível, atribuído a quem do casal conjugal pretenda exercê-lo unilateralmente, perante o próprio oficial do Registro Civil, com segurança e rapidez, teve sua gênese por membro do IBDFAM, a partir do Provimento nº 06/2019-CGJ-PE, de nossa iniciativa, o que chamou, pela primeira vez, a atenção nacional quanto ao alcance dos efeitos da Emenda Constitucional nº 66/2010. Esta EC, malgrado um decênio de sua vigência, não tinha ganho efetividade, no tocante a saber (todos) tratar de conferir, sob o viés constitucional, o exercício de um direito potestativo que não admite, em bom rigor, qualquer litígio. Nesse passo, a doutrina imediata de José Fernando Simão, de Mário Luiz Delgado e de Flávio Tartuce, oportunizou a iniciativa legislativa ora em curso.
Aliás, interessante dado de direito histórico avoca o direito romano, extraído dos estudos do jurista português António dos Santos Justo, da Universidade de Coimbra (05) e destacado, recentemente, pelo civilista Mário Godoy, em comento de nossa proposição original em provimento:
“O divórcio impositivo era amplamente aceito no período clássico (pelo menos até a época de Augusto), e recebia o nome de “divortium per litteras”. Nessa época, não se exigiam maiores formalidades para que o casal pudesse se divorciar. Seria mesmo possível o divórcio unilateral através de simples mensageiro (núncio), o divórcio decorrente de um segundo casamento (que automaticamente extinguia o anterior, face à cessação da “affectio maritalis”) e o divórcio “per litteras” (ou “libellum repudii”) que corresponde ao divórcio impositivo: simples aviso redigido por escrito ao outro cônjuge”. Simples assim.
Não custa, então, lembrar que o divórcio unilateral e desjudicializado, vem agora resgatar a dignidade de vida da pessoa que, sob as amarras da pretensa necessidade de propositura de ação, carece dissolver logo o vínculo conjugal em resgate de seu melhor destino, e não logra obter, de imediato, o desejado divórcio. Os romanos que inspiraram a formação do nosso direito, já estavam certos. Lado outro, a doutrina do IBDFAM vem estimulando, dentro do processo judicial, a concessão do divórcio liminar, que em exata medida do direito potestativo, tem sido deferido, agora com maior frequência, pelos juízes brasileiros.
A jurisprudência tem assinalado, em diretriz do pedido invencível: “em se tratando o divórcio de um direito potestativo, que não admite contestação, dependendo da vontade exclusiva de uma das partes, nenhum óbice ao deferimento do pedido. Preliminar desacolhida e apelo desprovido. (TJRS – 7ª Câmara Cível, AC nº 70062532460, Rel. Desa. Sandra Brisolara Medeiros, j. 27/05/2015).
06. A criança como primado do futuro
A regulação da convivência, em disposição do tempo e das atribuições de cada um dos pais com os filhos, tem sido uma das mais importantes avanços do direito de família, que substitui o limitador “direito de visita” pelo efetivo direito de convivência, sempre em beneficio dos menores e atribuindo aos pais o largo espectro de suas responsabilidades parentais no pleno exercício do poder familiar.
A criança é o pai do homem, em visão freudiana, e nessa perspectiva, o IBDFAM tem atuado com estudos interdisciplinares, consagrando-se os trabalhos de doutrina da psicanalista Giselle Groeninga em gestão da plena realização dos direitos de personalidades de crianças e de adolescentes. Designadamente diante dos pais separados (casal parental), que vinculam-se pelas responsabilidades assumidas perante os filhos comuns.
07. O idoso como patrimônio familiar
A nossa Constituição Federal consagra ordem jurídica de tutela máxima de proteção ao idoso (art. 230) e, mais, estabelece na esfera familiar uma responsabilidade parental mútua, no sentido de enquanto os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, “os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (art. 229). Mais precisamente: somos pais dos nossos pais, quando a estes lhes faltem força de trabalho e independência de atos, padecendo de vulnerabilidades, no frágil concerto dos dias outonais.
Representa um sério gravame e determinante de responsabilidades, por omissão ou negligência, o abandono afetivo aos pais idosos. Cuida-se dizer um abandono que mais se perfaz dentro da família; ou seja, nada obstante esteja o idoso na companhia familiar falta-lhe a assistência material e moral dos devidos cuidados, importando o “déficit afetivo” em manifesto comprometimento de vida.
Diz-se “abandono afetivo inverso”, termo por mim impresso (IBDFAM, 16.07.2013), a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família.
08. A mulher como expressão libertadora
A igualdade substancial de gênero acabou o patriarcado vetusto e garantiu à mulher o seu papel social dentro da família, impulsionando políticas públicas em sua proteção, tendo-se como escopo transformador, para além da CF/1988, a Lei Maria da Penha.
Seguem-se outras violências que urgem também ser tratadas, em suas especificidades, no álbum de ocorrências, reclamando as necessidades de vigília e de intervenção do direito de família.
Exemplificam-se: a) a violência da pós-violência intrafamiliar, quando a mulher é revitimizada, a partir de imputações de sua concorrência à sua própria vitimização, ou quando é explorada a violência em prejuízo da imagem da mulher vítima; b) a violência obstétrica, caracterizada por abusos sofridos pela mulher antes, durante e no pós-parto.
09. Uma doutrina de busca da felicidade
A busca da felicidade como realização humana é um direito personalíssimo e existencial fundado na dignidade de cada um. A felicidade é a concretude ideal da pessoa humana em sua existência e ao direito, como ordem jurídica, cabe instrumentalizá-la suficiente à sua obtenção adequada. É da natureza humana, em seu melhor estado de espírito, acreditar podermos ser felizes, à exata medida de nossas circunstâncias e dos nossos sonhos.
A tanto, a felicidade haverá de ser compreendida como um bem jurídico extraído do bem-estar social porquanto tratar-se de um direito social de primeira grandeza. Felicidade como um direito significante e essencial, dotado de sua categorização própria. O mundo moderno está perdendo a sua capacidade de instruir a felicidade a partir dos valores imateriais que melhor a protejam, consabido que “a busca individual pela felicidade pressupõe a observância de uma felicidade coletiva”.
A propósito, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1798, França) preconiza a felicidade coletiva, prevendo que as reivindicações pessoais devem sempre se destinarem à obtenção de uma felicidade geral.
Consagrados juristas como Mário Luiz Delgado, Fabiola Santos Albuquerque e Eduardo Bittar Filho, tem empreendido, com verticalidade, uma doutrina suficiente a orientar e apontar novas políticas públicas à concretude da família hedonista do século XXI.
Quando a jurisdição de família se apresenta em tutela máxima diante do artigo 226 da Constituição Federal (“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”) nessa linha principiológica a doutrina do IBDFAM serve de inspiração transformadora.
O direito é repensado em proteção das famílias.
Referências:
(01) Winston Churchill
(02) “O filho por natureza ama-se porque é filho, o filho por adoção é filho porque se ama” (Pe. Antônio Vieira).
(03) LOBO, Paulo Luiz Netto. Transformações jurídicas da Família no Brasil. Web: http://genjuridico.com.br/2018/02/12/transformacoes-juridicas-familia-brasil/
(04) LOBO, Paulo Luiz Netto. Idem
(05) BRECHT, Bertold (1898-1956). Peça: “O Círculo de giz caucasiano” (1943-1945). Editora Cosac & Naify, 2010;
(06) NOGUEIRA, Jacqueline Figueiras. A filiação que se constrói> o reconhecimento do afeto como valor jurídico. São Paulo: Memória Jurídica, 2001, 302 p.; FARIAS, Christiano Chaves de. DA ROSA, Conrado Paulino. Teoria Geral do Afeto. Salvador: Editora Jus Podivm, 2020, 394 p.
(07) Direito Privado Romano: Direito de Família, vol. IV, Coimbra; Editora Coimbra, nov.2008, ISSN 9789723216295; 240 p.; pp. 90-91.
Jones Figueirêdo Alves é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico, 01.11.2020
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