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O perigo das supostas “estatísticas” sobre falsas denúncias de violência doméstica contra a mulher
O perigo das supostas “estatísticas” sobre falsas denúncias de violência doméstica contra a mulher
Wlademir Paes de Lira[1]
Diante da divulgação de algumas supostas “pesquisas” sobre violência doméstica, onde se chega a afirmar que a grande maioria das denúncias de violência contra a mulher são falsas, impõe a todos os atores que estejam direta ou indiretamente ligados ao tema, uma necessária reflexão, para tomada de posições urgentes, diante do perigo de retrocesso, no que vem se conseguindo tanto na prevenção quanto na punição das diversas formas de violência que vem sofrendo a mulher no ambiente familiar.
Esse tema é delicado mas é recorrente no Brasil, que tem uma democracia jovem e um nível ético abaixo do desejado.
Todas as vezes que há uma atuação mais enfática do Estado na proteção de determinados direitos, há uma tentativa de utilização da atuação do Estado para beneficiar pessoas antiéticas, podendo ser citados alguns exemplos.
Veja-se o caso da Justiça do Trabalho, que surgiu para proteção dos direitos dos trabalhadores, com viés protecionista do empregado, que se faz necessário, porém muitos tentavam utilizá-la para conseguir direitos que não tinham.
Outro exemplo é a atuação do Estado na proteção do consumidor, onde alguns têm tentado utilizar essa proteção para fabricar danos indenizáveis.
Da mesma forma, a lei de alienação parental, que virou matéria discutida praticamente em todos os processos de guarda e convivência.
A atuação do Estado no aprimoramento na proteção das mulheres vítimas de violência doméstica está passando por esse fenômeno. Diante da melhoria da eficiência do poder público nas medidas contra esse tipo de violência (embora muito longe ainda esteja do ideal), mulheres têm utilizado desses instrumentos para fazer denúncias falsas, com objetivos vários, desde a simples chantagem para tentar ter melhor sucesso na divisão patrimonial, a tentativa de impedir a convivência do pai com os filhos, até a vingança pela vingança, em função da mágoa pelo fim do relacionamento.
Todavia, assim como, a Justiça do Trabalho não se transformou num espaço de garantia da má-fé, a proteção do consumidor não se transformou numa indústria de danos indevidamente indenizados, como as indevidas acusações de alienação parental, não retirou a importância da aplicação da lei, as falsas denúncias de violência doméstica não podem servir para desestimular os agentes do Estado na atuação incansável contra essa pandemia que é a violência doméstica contra a mulher.
Falsas denúncias sempre acontecerão, porém não pode servir de álibi para relativizar o combate a essa praga. O tempo vai separando o joio do trigo. Quem presta falsa denúncia, deve responder por isso. Quando o Estado começar a mostrar que tem como identificar o que é falso, naturalmente as más intenções serão naturalmente contidas.
Preocupa a divulgação de notícias, com bases em questionáveis estatísticas de falsas denúncias? Claro que sim.
Primeiramente, como determinam os elementares conceitos da sociologia, a pesquisa tem que trazer elementos informativos necessários, como as técnicas utilizadas na pesquisa, até porque, não parece razoável uma pesquisa dessa importância ser feita pela técnica exclusivamente documental, já que diante das singularidades das pessoas envolvidas, para se chegar a estabelecer, com perdão do paradoxo, as verdadeiras denúncias falsas, seria necessário outras técnicas de pesquisa sociológica[2], como a sociomentria (formas complexas que emergem do grupo estudado); História de vida e entrevista, quer dirigida quer não dirigida.
A pesquisa sociológica no Direito, ainda apresenta uma peculiaridade, como ensinam Cláudio Souto e Joaquim Falcão, pois além da escolha do tema, deve o pesquisador estabelecer os limites da área que quer explorar e a proposta de uma resposta para um problema escolhido. A complexidade dos fatos que envolvem a violência doméstica contra a mulher constitui o problema “e os posteriormente recolhidos para precisa-lo sugerem novos fatos, os quais conduzem a novas hipóteses e estas ainda a novos fatos”[3].
O que se pretende dizer com isso, é que não se pode apresentar uma estatística para um problema dessa magnitude, com dados exclusivamente matemáticos, como, por exemplo - já que tudo indica que as pesquisas são feitas assim -, que o percentual de denúncias falsas se apura pela quantidade de denúncias em relação a quantidade de réus que são efetivamente condenados, pois é comezinho para quem labuta com o Direito, que a absolvição nem sempre é em função da inocência do autor, mas muitas vezes pela própria inoperância do Estado em conseguir produzir as provas suficientes para condenação.
No caso da violência doméstica existe ainda outra peculiaridade, que é a possibilidade, em muitos casos, de depois de feita a denúncia, a mulher voltar a trás, quer por pressão da família, quer por medo, quer para garantir o sustento dos filhos, entre muitos outros casos, o que impõe averiguar se essas “estatísticas” estão levando essas questões em consideração.
Por outro lado, quando se divulga uma estatística de que a maioria das denúncias de violência doméstica contra a mulher é falsa, serve muito mais para dar eco às vozes que ainda defendem que a lei Maria da Penha é um instrumento de transformação do homem em bandido e a mulher em vítima, onde o homem já inicia o processo condenado, do que para auxiliar na delimitação das políticas necessárias para essa área, principalmente, quando partem de profissionais que têm como labuta principal, o julgamento dos casos que envolvem essa matéria.
Quando se divulga que existe um certo percentual de denúncias falsas, além das preocupações que deve ter o pesquisador, como visto acima, deve se informar o real número de casos de violência doméstica contra a mulher, que por si só, já exigiria grande preocupação, independentemente da existência de denúncias falsas.
Por outro lado, quando um profissional que milita na área divulga essas estatísticas, deve apresentar o que ocorreu com as mulheres que, comprovadamente, prestaram as falsas denúncias, já tal fato enseja responsabilidade criminal, que além do crime ação privada, injúria, há o de ação pública incondicionada, denunciação caluniosa, além da possibilidade de responsabilização civil.
Essas informações incompletas são perigosas, pois podem levar uma mensagem falsa para a sociedade, de que tudo que se fala acerca da violência doméstica contra a mulher é exagero, que a maioria das denúncias é falsa, e que a mulher que presta denúncia falsa não sofre qualquer consequência.
Contudo, nada disso deverá interromper o avanço das estruturas do Estado, para conter e diminuir essa mácula da nossa sociedade. Esse é um grande desafio civilizatório desta geração, e para tanto tem contado com um grupo cada vez maior de pessoas comprometidas em erradicar esse mal que assola as mulheres em todo o mundo, muitas dessas pessoas unidas em importantes instituições, como é o caso da AMB, da OAB, e do IBDFAM, que através da Comissão de Violência contra a Mulher e de Gênero, tem feito um trabalho de destaque.
[1] Mestre e Doutorando em Direito, Juiz de Direito Titular da 26ª Vara Cível/Família de Maceió, Professor da nicersidade Federal de Alagoas e da Escola Superior da Magistratura do Estado de Alagoas e Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família e Sucessões no Estado de Alagoas.
[2] LAKATOS, Eva Maria. Sociologia Geral, São Palo: Atlas, 1990, p. 37.
[3] SOUTO, Cláudio & FALCÃO, Joaquim. Sociologia e Direito, São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1973, p. 80 e 81.
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