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Partilha de milhas aéreas por ocasião do divórcio.
Partilha de milhas aéreas por ocasião do divórcio.
Não é de hoje que as grandes administradoras de cartões de crédito se utilizam de diversas estratégias para a captação e fidelização de clientes, oferecendo benefícios variados, tais como: sala VIP em aeroportos, seguros de automóveis locados, seguro-viagem, entre outros.
Mas, sem sobra de dúvidas, o benefício que se tornou o mais atrativo e, em boa parte das vezes, o critério adotado pelo consumidor na escolha de um ou outra modalidade de cartão de crédito, é o acúmulo de PONTOS em programas de fidelização, destinado a troca por MILHAS AÉREAS e outros produtos, idealizados e implementados em parceria com grandes empresas de transporte aéreo.
Grande parte dos usuários dos cartões de crédito tem concentrado o pagamento da maioria de suas compras – e até pagamento de contas ordinárias (energia, água, mensalidade escolar, condomínio, etc.) – por esse meio, com a única finalidade de acumular mais e mais pontos/milhas, seja para viabilizar viagens de lazer, seja para comercializar esse ativo em sites especializados que os adquirem e emitem passagens aéreas vendidas a terceiros.
Outra importante modalidade de acúmulo de milhas é a assinatura de PROGRAMAS DE MILHAS firmados com as próprias companhias aéreas, nos quais o consumidor paga um valor fixo mensal para acumular uma determinada quantidade de milhas, para, repita-se, utilizá-las na aquisição direta de passagens, aquisição de produtos variados, ou mesmo vendê-las a terceiros.
Diante de tal contexto, a despeito de inexistir no Brasil legislação específica que regulamente o programa de milhas aéreas, não se pode negar que as MILHAS AÉREAS apresentam expressivo valor monetário, tanto que há diversos sites especializados (MAXMILHAS, HOTMILHAS, MILHAGEMPRO, etc.)na avaliação desses ativos, apresentando cotação diária, assim como ocorre com o câmbio das mais variadas moedas (DOLAR, EURO, PESO, entre outras).
À título de exemplo, 300.000 (trezentas) mil milhas podem apresentar uma cotação – a depender de vários fatores – entre R$ 6.000,00 (seis mil) e R$ 7.000,00 (sete mil reais).
Não por acaso, segundo a ABEMF – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DOMERCADO DE FIDELIZAÇÃO, em 2019 já havia no Brasil 132 milhões de cadastros nos programas de fidelidade, tendo sido emitidos no mesmo ano cerca de 76,8 BILHÕES de milhas (https://www.abemf.com.br/indicadores-mercado).
Trata-se, portanto, indubitavelmente, de um BEM sob a perspectiva do direito, na medida em que este é definido como coisa ou objeto que apresenta alguma utilidade ao ser humano, podendo ser objeto alvo de uma relação jurídica em razão do seu valor econômico ou interesse despertado.
Na lição de Silvio Rodrigues “(...)nem todas as coisas úteis são consideradas bens, pois, se existirem em grande abundância na natureza, ninguém se dará ao trabalho de armazená-las. Assim, nada mais útil ao homem do que o ar atmosférico, mas, como ele abunda na natureza, não é um bem econômico.” Prosseguindo, elucida que, “Desse modo, poder-se-iam definir bens econômicos como aquelas coisas que, sendo úteis ao homem, existem em quantidade limitada no universo, ou seja, são bens econômicos as coisas úteis e raras, porque só elas são suscetíveis de apropriação.” (RODRIGUES, Silvio (2003), Direito Civil 1 - Parte Geral. Brasil:Saraiva).
Assim sendo, dúvidas não há de que, dada a sua expressão econômica, as MILHAS/PONTOS se apresentam como uma dentre as várias espécies de BEM e que, portanto, integram a esfera de PATRIMÔNIO do seu titular, de forma, assim, a sofrer os efeitos decorrentes da relação matrimonial assumida por este.
Via de consequência, em se tratando de um BEM, dotado que é de manifesta expressão econômica, há de ser partilhado na hipótese de divórcio; obviamente quando assim imponham as previsões contida no Código Civil Brasileiro, a depender do regime de bens adotado pelo casal (SUBTÍTULO I, do TÍTULO II, do Código Civil Brasileiro).
Via de regra, a partilha se dará quando a relação for regida pelo regime da comunhão universal de bens; da comunhão parcial, quando as milhas/pontos forem acumuladas no curo da relação; e, por fim, na separação legal de bens (Súmula 377/STF).
A despeito da popularidade do uso de milhas, na prática, no Brasil poucos são os divórcios que abordam essa temática, seja por deficiência da comunicação entre clientes e Advogados - já que muitas vezes a existência desse ativo não é informada -, seja até por desconhecimento dos profissionais não especializados no segmento, que se arriscam na caminhada pelos campos do Direito de Família.
Os casos mais emblemáticos acerca da partilhas de milhas foram inaugurados nos EUA, merecendo destaque o divórcio de Kris Kardashian e Bruce Jenne, assim como o divórcio da estrela da série americana “Glee”, Jane Lynch, nos quais se travou embate acerca da significativa quantidade de milhas acumuladas.
Contudo, a despeito de juridicamente amparada, a partilha de milhas aéreas enfrenta uma grande questão a ser dirimida: COMO SE DARÁ NA PRÁTICA?
Antes de responder ao questionamento, importa salientar que, à luz do posicionamento jurisprudencial já sedimentado, inclusive no âmbito do STJ, a separação DE FATO por si só já põe fim ao regime de bens, de forma que este é o marco da aferição do patrimônio edificado pelo outrora casal, para fins de partilha.
Irrelevante, portanto, o momento em que virá à tona a sentença de divórcio, ou mesmo a separação e corpos. Para fins de isolamento do patrimônio alvo da partilha, o que importa é quando de fato as partes puseram fim ao relacionamento.
Portanto, por ocasião da partilha, há de se apresentar ao julgador uma espécie de “fotografia” do acervo patrimonial do casal no momento do início da relação e, sobretudo, no momento da separação de fato, a fim de que se debruce sobre a partilha de tais bens, aplicando, obviamente, as regras que permeiam o regime de bens adotado pelas partes (comunhão universal, comunhão parcial de bens, separação de bens e participação final nos aquestos), incluindo eventuais disposições em pacto pré-nupcial.
Assim, tendo como hipótese de análise os regimes que garantem a partilha dos bens acumulados ao longo da relação (já mencionados acima), importa aferir o exato número de milhas acumuladas no momento da separação de fato, acrescidas daquelas que eventualmente venham a ser creditadas posteriormente, desde que, por óbvio, com lastro em evento (compra, transferência de pontos no cartão, viagem aérea realizada, etc.) ocorrido enquanto ainda hígida a relação.
Feita a devida aferição do acervo de milhas, abrem-se 02 (duas) possibilidades para a materialização da partilha:
- Determinação a empresa de PROGRAMA DE MILHAS – quando o regulamento do programa permitir transferência - que transfira a metade ao cônjuge não titular, impondo a este a assunção de 50% dos custos envolvidos em tal operação;
- Condenação do cônjuge titular do programa de milhagem que indenize o não titular em valor equivalente a 50% (cinquenta por cento) do montante, o qual poderá ser apurado mediante avaliação nos mais diversos sites especializados, ou outro meio que o juízo entender como idôneo.
A verdade inarredável é que a dinâmica da vida, cada vez mais vertiginosa, apresenta a cada dia novidades nos mais diversos campos, impondo ao aplicador do direito uma constante reanálise dos cenários que se apresentam no momento, de forma a bem aplicar o direito, conferindo-lhe a efetividade que dele se espera.
Essa constante reanálise dos cenários que se modificam com o passar do tempo é que apontam atualmente para a necessidade de abordagem das milhas aéreas como um bem de expressão econômica e, portanto, passível de partilha por ocasião do divórcio. Contudo, somente o futuro indicará se o destino desse ativo não será o mesmo das antigas linhas telefônicas, outrora extremamente valiosas e hoje sem qualquer significado econômico.
Luis Gustavo Narciso Guimarães
Advogado especialista em Direito de Família e Sucessões
Formado em 2003 pela Universidade Federal do Espírito Santo
Sócio do Escritório NARCISO GUIMARÃES ADVOGADOS
Associado do IBDFAM – INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA
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