Artigos
Doação inoficiosa e o prazo para a ação de redução
Doação inoficiosa e o prazo para a ação de redução[1]
Flávio Tartuce[2]
De acordo com o art. 549 do Código Civil, é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Essa liberalidade, que prejudica a legítima ou reserva, quota dos herdeiros necessários, é denominada desde tempos remotos de doação inoficiosa.
Como herdeiros necessários, na literalidade do art. 1.845 do Código Civil estão previstos os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Porém, com a recente e tão comentada decisão do Supremo Tribunal Federal, de reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 e equiparação sucessória da união estável ao casamento, tenho sustentado que ali também deve ser incluído o companheiro (Informativo n. 864 da Corte, com repercussão geral de maio de 2017). Esclareça-se que se trata de consequência sucessória do decisum que, indiretamente, repercute no plano contratual.
Voltando-se à doação inoficiosa, apesar da existência de entendimento em contrário – que sustenta haver nulidade relativa ou anulabilidade nessa situação, o que é sustentado por José Fernando Simão –, entendo que o caso é de nulidade absoluta textual, pois a lei prevê expressamente que o ato é nulo (art. 166, inc. VII, primeira parte, do CC). De todo modo, há uma nulidade parcial, que atinge apenas a parte que excede a tutela da legítima ou reserva.
A título de exemplo, se o doador tem o patrimônio de R$ 100.000,00 e faz uma doação de R$ 70.000,00, o ato será válido até R$ 50.000,00 (parte disponível) e nulo nos R$ 20.000,00 que excederam a proteção da legítima. O que se percebe é que o art. 549 do Código Civil tem como conteúdo o princípio da conservação do negócio jurídico, uma vez que procura preservar, dentro do possível, a autonomia privada manifestada na doação. Julgando dessa forma, entre acórdãos remotos do STJ, destaco o seguinte: "A doação ao descendente é considerada inoficiosa quando ultrapassa a parte que poderia dispor o doador, em testamento, no momento da liberalidade. No caso, o doador possuía 50% dos imóveis, constituindo 25% a parte disponível, ou seja, de livre disposição, e 25% a legítima. Este percentual é que deve ser dividido entre os 6 (seis) herdeiros, tocando a cada um 4,16%. A metade disponível é excluída do cálculo" (REsp 112.254/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 16.11.2004, DJ 06.12.2004, p. 313).
Ainda em sede de Superior Tribunal de Justiça, tem-se entendido que o valor a ser apurado com o fim de se reconhecer a nulidade deve levar em conta o momento da liberalidade. Assim, “para aferir a eventual existência de nulidade em doação pela disposição patrimonial efetuada acima da parte de que o doador poderia dispor em testamento, a teor do art. 1.176 do CC/1916, deve-se considerar o patrimônio existente no momento da liberalidade, isto é, na data da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador. O art. 1.176 do CC/1916 – correspondente ao art. 549 do CC/2002 – não proíbe a doação de bens, apenas a limita à metade disponível. Embora esse sistema legal possa resultar menos favorável para os herdeiros necessários, atende melhor aos interesses da sociedade, pois não deixa inseguras as relações jurídicas, dependentes de um acontecimento futuro e incerto, como o eventual empobrecimento do doador” (STJ, AR 3.493/PE, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 12.12.2012, publicado no seu Informativo n. 512).
Entretanto, tratando-se de doações sucessivas, praticadas por meio de vários atos, tal regra não só pode como deve ser mitigada. Como pontua, entre os clássicos, Pontes de Miranda, “se houve diferentes doações, todas – desde que houve herdeiros necessários – se computam, para saber se há violação da porção disponível. Não se levam em conta as doações que foram feitas ao tempo em que o doador não tinha herdeiros necessários; mas somam-se os valores das que se fizeram em todo o tempo em que o doador tinha herdeiros necessários” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. XLVI, p. 250-251). No mesmo sentido, Agostinho Alvim leciona que, “quando várias doações são feitas, o ponto de partida, para o cálculo da inoficiosidade, é a primeira. Do contrário, o doador iria doando, cada vez metade do que tem atualmente, e todas as doações seriam legais até extinguir a fortuna” (ALVIM, Agostinho. Da doação. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 184-185).
Constata-se, portanto, que parte da doutrina defende que, tratando-se de aferir se houve violação da legítima ou não, devem ser consideradas todas as liberalidades realizadas, e não apenas o valor de cada doação, isoladamente considerada. Sigo, nessa linha, a posição de se considerar, da última doação até a primeira, qual foi a que invadiu a legítima, reconhecendo-se a invalidade de todas aquelas que extrapolaram a quota dos herdeiros necessários. Exatamente neste sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em célebre julgado, verdadeiro precedente estadual sobre o tema, que foi assim ementado: “Doação inoficiosa. Doação feita a netos, desfalcando a legítima das filhas. Laudos comprovando a parte excedente. Interpretação finalística do art. 1.176 do C.C. Procedência” (TJRJ, Apelação Cível 4344/92, 4.ª Câmara Cível, Rel. Des. Semy Glanz, j. 19.02.1993). Observe-se que, além de constar da ementa do acórdão o caráter finalístico da interpretação do art. 1.176 do Código Civil de 1916, correspondente ao atual art. 549 do Código Civil de 2002, o Relator explicitou que a finalidade da nulidade imposta por esses dispositivos não é outra que não o respeito à legítima dos herdeiros necessários. Após citar a doutrina de Agostinho Alvim, ora mencionada, arrematou o julgador: “logo, a finalidade da nulidade é a proteção das legítimas”.
Como a questão envolve ordem pública, entendo que a ação declaratória de nulidade da parte inoficiosa – também denominada de ação de redução –, é não sujeita à prescrição ou à decadência (didaticamente, imprescritível), podendo ser proposta a qualquer tempo, como está expressamente previsto no art. 169 do CC/2002, segundo o qual a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo.
De todo modo, tem prevalecido, especialmente no âmbito do STJ, um outro entendimento, no sentido de que, pelo fato de a questão envolver direitos patrimoniais, e por questão de se proteger a segurança jurídica, a ação de redução está sujeita a prazo prescricional, que é próprio dos direitos subjetivos de cunho patrimonial. Como não há prazo especial previsto, deverá ser aplicado o prazo geral de prescrição, que na vigência do CC/1916 era de vinte anos (art. 177), e na vigência do CC/2002 é de dez anos (art. 205). Concluindo desse modo, vejamos um primeiro aresto superior:
“Civil e processual. Acórdão estadual. Nulidade não configurada. Ação de reconhecimento de simulação cumulada com ação de sonegados. Bens adquiridos pelo pai, em nome dos filhos varões. Inventário. Doação inoficiosa indireta. Prescrição. Prazo vintenário, contado da prática de cada ato. Colação dos próprios imóveis, quando ainda existentes no patrimônio dos réus. Exclusão das benfeitorias por eles realizadas. CC anterior, arts. 177, 1.787 e 1.732. § 2.º Sucumbência recíproca. Redimensionamento. CPC, art. 21. Se a aquisição dos imóveis em nome dos herdeiros varões foi efetuada com recursos do pai, em doação inoficiosa, simulada, em detrimento dos direitos da filha autora, a prescrição da ação de anulação é vintenária, contada da prática de cada ato irregular. Achando-se os herdeiros varões ainda na titularidade dos imóveis, a colação deve se fazer sobre os mesmos e não meramente por seu valor, a teor dos arts. 1.787 e 1.792, § 2.º, do Código Civil anterior. Excluem-se da colação as benfeitorias agregadas aos imóveis realizadas pelos herdeiros que os detinham (art. 1.792, § 2.º). Sucumbência recíproca redimensionada, em face da alteração decorrente do acolhimento parcial das teses dos réus. Recurso especial conhecido em parte e provido” (STJ, REsp 259.406/PR, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, data da decisão: 17.02.2005, DJ 04.04.2005, p. 314).
A aplicação do prazo geral de dez anos foi confirmada em acórdão de 2014, do mesmo Tribunal Superior, segundo o qual “aplica-se às pretensões declaratórias de nulidade de doações inoficiosas o prazo prescricional decenal do CC/2002, ante a inexistência de previsão legal específica. Precedentes” (STJ, REsp 1.321.998/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.08.2014). Todavia, merece destaque o voto vencido do Ministro João Otávio de Noronha, seguindo o mesmo entendimento por mim compartilhado, de que a ação de redução não está sujeita a qualquer prazo, seja ele prescricional ou decadencial. Ponderou o julgador que “discute-se, em ação declaratória de nulidade de partilha e doação, qual o prazo para que a herdeira necessária possa insurgir-se contra a transferência da totalidade dos bens do pai para a ex-esposa e para a filha do casal, sem observância da reserva da legítima, circunstância que caracteriza a doação inoficiosa. Trata-se, portanto, de caso de nulidade expressamente prevista no art. 549 do atual Código Civil, em razão do disposto nos arts. 1.789 e 1.846 do mesmo diploma legal. E, a teor da norma contida no art. 169 do mesmo Código, ‘o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo’, a significar que a nulidade é imprescritível. Essa é a tese que defendo. Não desconheço a discussão existente a respeito dessa norma e que, em nome da paz social, levou ao entendimento jurisprudencial de que tal nulidade não fica imune à ocorrência de prescrição. Reservo-me o direito de, em momento oportuno, trazer a matéria a debate na profundidade que entendo necessária” (REsp. 1.321.998/RS).
A temática voltou a ser debatida no âmbito da Terceira Turma da Corte em 2019, prevalecendo mais uma vez o entendimento pela incidência do prazo geral de prescrição e vencido o argumento pela não sujeição ao prazo. Também foi analisado se o caso seria de nulidade absoluta ou relativa – tendo o Ministro Moura Ribeiro votado pela última solução e pela incidência de prazo decadencial de dois anos, do art. 179 do CC/2002 –, mas vencendo mais uma vez a primeira posição e pela aplicação do prazo prescricional. O aresto traz citações à doutrina contemporânea, inclusive ao meu posicionamento, ao lado de Pablo Stolze e José Fernando Simão, entre outros autores. Como constou da sua ementa, “o Superior Tribunal de Justiça há muito firmou entendimento no sentido de que, no caso de ação anulatória de doação inoficiosa, o prazo prescricional é vintenário e conta-se a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular. Precedentes. Na hipótese, tendo sido proposta a ação mais de vinte anos após o registro da doação, é de ser reconhecida a prescrição da pretensão autoral” (STJ, REsp 1.755.379/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 24.09.2019, DJe 10.10.2019). A menção ao prazo de vinte anos novamente se deu pois os fatos ocorreram na vigência do Código Civil de 1916.
Como se pode perceber, o entendimento pela aplicação do prazo geral de prescrição para a ação de redução de doação inoficiosa tende a se consolidar no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Deve ser considerado, contudo, que há divergência no âmbito da Corte, pois há quem entenda pela incidência da regra do art. 169 do Código Civil, pela não sujeição de prazo; ou pela aplicação de prazo decadencial de dois anos do art. 179 da codificação privada, pela presença de nulidade relativa. Constata-se, portanto, que em matéria de doação inoficiosa, hipótese de nulidade absoluta parcial, o art. 169 não tem sido aplicado na prática, seja pelo argumento da existência de questão patrimonial, seja pela afirmação da segurança jurídica. Trata-se, na verdade, de um dos dispositivos mais ignorados da nossa legislação privada, tema que voltarei a analisar em outro texto.
[1] Coluna do Migalhas do mês de setembro de 2020.
[2] Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor Titular permanente e coordenador do mestrado da Escola Paulista de Direito (EPD). Professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito Privado da EPD. Professor do G7 Jurídico. Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família em São Paulo (IBDFAM/SP). Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM