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Divórcio impositivo: O divórcio do amanhã
Divórcio impositivo:
O divórcio do amanhã
No Brasil, durante praticamente todo o período colonial e imperial, a celebração de casamentos competia exclusivamente à Igreja Católica.
Foi apenas no ano seguinte à Proclamação da República que o matrimônio veio a perder o seu caráter confessional, por ocasião da instituição do casamento civil, através do Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890, editado pelo Marechal Manoel Deodoro da Fonseca.
O Decreto nº 181, contudo, não previa o divórcio, estabelendo em seu artigo 93 que “O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos conjuges”. A separação de corpos, por seu turno, era permitida sob rígidas condições, quais sejam: adultério, sevícia ou injúria grave, abandono voluntário do domicílio conjugal por dois anos contínuos ou mútuo consentimento dos cônjuges, desde que casados há mais de dois anos.
No século seguinte, com a entrada em vigor do Código Civil Brasileiro de 1916, foi instituída a “ação de desquite”, cuja sentença autorizava a separação dos cônjuges, colocando termo ao regime matrimonial dos bens, porém sem a dissolução do casamento, o que impedia a contração de novas núpcias. A ação de desquite apenas poderia ser proposta na hipótese de adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave, abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos contínuos, ou, ainda, por mútuo consentimento dos cônjuges, se fossem casados por mais de dois anos, manifestado perante o juiz e devidamente homologado.
Como podemos constatar, acaso a opção pelo desquite não fosse consensual, se um dos consortes resistisse ao pedido, o outro, em geral, se tornava refém de um casamento falido, em especial as esposas, sem voz na sociedade patriarcal do início do século XX[1].
Foi apenas no final da década de 70, por meio da Lei 6.515/77, que o Congresso Nacional, apesar da enorme resistência de determinados setores conservadores da sociedade brasileira, revogou a indissolubilidade do vínculo matrimonial até então vigente, por meio da instituição do divórcio, com amparo na Emenda Constitucional nº 9, promulgada naquele mesmo ano.
A decretação do divórcio, entretanto, pressupunha a prévia separação judicial por três anos, a qual, por sua vez, apenas poderia ser requerida por mútuo consentimento dos cônjuges (desde que casados há mais de dois anos), ou mesmo unilateralmente, quando um dos cônjuges imputava ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importasse em grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum.
A separação judicial também era permitida se um dos cônjuges provasse a ruptura da vida em comum há mais de cinco anos consecutivos, ou o acometimento de grave doença mental, manifestada após o casamento, com cura improvável.
A “Lei do Divórcio”, ainda, autorizava a dissolução do matrimônio no caso de separação de fato superior a cinco anos, desde que comprovado o decurso do tempo da separação e a sua causa.
O pedido de divórcio, em qualquer dos seus casos, somente poderia ser formulado uma única vez, limitação essa apenas revogada no ano de 1989 (Lei 7.841/89).
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os requisitos temporais para a obtenção do divórcio foram abrandados, tendo seu artigo 226, §6, positivado que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”.
Após a virada de mais um século, outro abrandamento se deu no mês de janeiro de 2007, com a sanção da Lei 11.441/07, possibilitando a realização do divórcio por escritura pública, desde que consensual e inexistentes filhos menores ou civilmente incapazes.
Passados três anos, pela primeira vez na história do direito pátrio, o legislador finalmente suprimiu o requisito da prévia separação (judicial ou de fato) para a obtenção do divórcio, por meio da Emenda Constitucional 66/2010.
Conforme prelecionam os Professores Mário Luiz Delgado e José Fernando Simão[2], com o advento da EC 66/2010, o divórcio deixou de ser um direito subjetivo comum, para se transformar em um direito potestativo[3], contra o qual o outro cônjuge e o Estado-Juiz não podem se opor. Em síntese, tanto a constituição do matrimônio, como o seu desfazimento, são atos de autonomia privada e, como tal, devem ser respeitados, pois a dissolução do vínculo matrimonial é um direito fundamental.
Compartilhando desse entendimento, diversas Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vêm reconhecendo o caráter potestativo do divórcio, ao decretá-lo liminarmente, por meio de tutela da evidência, como exemplificam os precedentes abaixo colacionados:
Agravo de instrumento. Ação de divórcio. Decisão que indeferiu pedido de tutela da evidência. Inconformismo do autor. Possibilidade. Tutela da evidência liminar é permitida em casos de prova documental combinada com tese de recurso repetitivo ou súmula vinculante (art. 311, II e parágrafo único do CPC). Unânime na doutrina e jurisprudência que o divórcio é direito potestativo. Se nada cabe à parte adversa se opor ao pedido, mais razão ainda há na concessão da tutela buscada pelo autor.
Recurso.provido[4].
AGRAVO DE INSTRUMENTO – DIVÓRCIO LITIGIOSO – Inconformismo contra decisão que indeferiu o pedido liminar de decretação de divórcio direto – Possibilidade de decretação de divórcio em sede liminar – Direito potestativo – Tutela de urgência versus tutela de evidência – Decisão reformada – Recurso provido[5].
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Divórcio – Insurgência do autor contra a decisão que indeferiu o pedido de que a partilha de bens seja discutida em ação própria – Parcial acolhimento – Desnecessário que se aguarde o desfecho da partilha de bens para a decretação do divórcio, pela inteligência do art. 1.581, do Código Civil - Possibilidade de decretação do divórcio em sede de tutela de evidência, prevista no art. 311, inc. IV, do CPC, independentemente de contraditório, em razão da EC nº 66/2010, que deu nova redação ao § 6º do art. 226, da CF, de modo a não mais exigir das partes que comprovem a culpa e o decurso de tempo para a dissolução do vínculo matrimonial – Precedentes desta E. Corte de Justiça - Feito que deve prosseguir para discussão dos demais pedidos, em prestígio à economia processual -RECURSO.PARCIALMENTE.PROVIDO[6].
Diante do caráter potestativo do divórcio, o Poder Judiciário do Estado de Pernambuco, representado por seu então Corregedor-Geral, Desembargador Jones Figueirêdo Alves, editou o Provimento nº 06/2019, para regulamentar “o procedimento de averbação, nos serviços de registro civil de casamentos, do que se denomina de ‘divórcio impositivo’ e que se caracteriza por ato de autonomia de vontade de um dos cônjuges, em pleno exercício do seu direito potestativo”.
O Provimento nº 06/19 permitia que o pedido de divórcio fosse requerido unilateralmente, por meio de requerimento ao Cartório de Registro Civil para averbação do divórcio à margem do respectivo assento, independentemente da presença ou da anuência do outro cônjuge, que seria apenas notificado, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida, desde que ausentes nascituro, filhos menores ou civilmente incapazes.
Na exposição das razões para a edição do Provimento nº 06/19, consignou-se que em face da EC 66/2010, o único requisito para a decretação do divórcio passou a ser a demonstração da vontade do cônjuge requerente, uma vez que inexistente qualquer restrição causal ou temporal para a sua efetivação, sendo, assim, prescindível a judicialização da matéria.
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira, advogado e presidente do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, “Vejo como avanço a possibilidade de qualquer dos cônjuges requerer diretamente no Registro Civil o divórcio, pois preservou o espírito da EC nº 66/2010 cujo o propósito é a simplificação, facilitação, menor intervenção estatal, liberdade e maior autonomia privada, além de não se discutir a culpa, acabando, via de consequência, com prazos para decretação do divórcio”[7].
O nobre colega também pondera que “Antes, quando os casamentos eram arranjados e feitos por diversos tipos de interesse, e a família era muito mais um núcleo econômico e reprodutivo do que o espaço da afetividade, eles não se dissolviam. Aguentava-se até a morte. Amantes e infidelidades tinham que ser suportadas pelas mulheres, cuja resignação histórica é quem os sustentava, à custa da não consideração de seus desejos (...) A importância política e social do divórcio vai além da reafirmação do estado laico. A ele estão atrelados valores básicos que devem sustentar uma democracia: liberdade e autonomia privada”[8].
A iniciativa do TJ-PE, apesar de ser digna de louvores por suas melhores intenções, não chegou a ser implementada, diante da Recomendação nº 36/2019 expedida pelo Corregedor Nacional de Justiça, ponderando que compete privativamente à União, na forma do art. 22, inciso I, da Constituição Federal, legislar sobre direito civil, não havendo possibilidade de se criar outras modalidades de divórcio sem amparo legal.
A nosso sentir, o Provimento nº 06/19, embora não tenha vingado, disseminou uma mensagem de importância incomensurável, ao conferir à autonomia da vontade de qualquer um dos cônjuges, caráter absoluto, no que pertine ao seu estado civil. Quando um não quer, dois não ficam casados.
Exemplo mais notável do reflexo positivo do Provimento nº 06/19, foi a apresentação do Projeto de Lei 3457/19, atualmente em tramitação no Senado Federal, com parecer favorável por sua aprovação na CCJ - Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
O PL 3457/19 acrescenta o artigo 733-A ao Código de Processo Civil, cujo caput ganharia a seguinte redação: “Na falta de anuência de um dos cônjuges, poderá o outro requerer a averbação do divórcio no Cartório do Registro Civil em que lançado o assento de casamento, quando não houver nascituro ou filhos incapazes e observados os demais requisitos legais”.
O senador Rodrigo Pacheco, ao justificar o referido projeto de lei, pondera que “Em um momento em que tanto se critica o Poder Judiciário, em função da demora no andamento dos processos, compelir um cônjuge maior e capaz a proceder ao desenlace civil, tão somente por não haver a anuência do outro, foge completamente ao espírito do CPC/2015”.
E arremata: “A falta de concordância do outro cônjuge não pode constituir óbice ao divórcio administrativo, máxime quando as demais questões passíveis de repercutir na esfera existencial ou patrimonial do outro permanecerão na esfera judicial”.
O parecer favorável da CCJ, por sua vez, destaca que “(...) o divórcio impositivo caminha ‘pari passu’ com a necessidade de se desburocratizarem as relações jurídicas, como também exclui da apreciação do Poder Judiciário questões que poderiam ser facilmente resolvidas fora do âmbito judicial”.
Ansiamos pela aprovação e sanção do PL 3457/19. Em pleno século XXI, ninguém deve ser obrigado a permancer preso em um casamento contra a sua vontade, à mercê do desiderato do respectivo cônjuge.
Entendemos que a competência do Estado-Juiz deva se limitar à apreciação de questões decorrentes do divórcio, tais como aquelas relativas à partilha dos bens, alimentos, guarda dos filhos menores e regime de convivência, mas não ao divórcio em si, por ser imotivado e direto.
Como vimos alhures, a história do divórcio no Brasil é marcada pela ingerência da Igreja e do Estado na vida particular dos cidadãos, aprisionando incontáveis almas em vínculos matrimoniais indesejados e muitas vezes abusivos, motivo pelo qual urge a normatização do divórcio impositivo, o “divórcio do amanhã”, permitindo a dissolução unilateral do casamento, por se tratar de direito constitucionalmente potestativo.
O divórcio do amanhã é para hoje.
Hugo Chusyd é advogado, associado do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família e membro da Comissão de Direito de Família do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo.
[1][1] Vide, por exemplo, os artigos 6º, II, 219, IV, 233, 242, VII, 319, I e II, e 326, §1º e 2º, do Código Civil de 1916:
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
(...)
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
(...)
IV. O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.
Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):
(...)
VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV).
Art. 319. O adultério deixará de ser motivo para desquite:
I. Se o autor houver concorrido para que o réu o cometesse.
II. Se o cônjuge inocente lhe houver perdoado.
Art. 326. Sendo o desquite judicial, ficarão os filhos menores com o conjugue inocente.
§ 1º Se ambos forem culpados, a mãe terá direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a idade de seis anos.
§ 2º Os filhos maiores de seis anos serão entregues à guarda do pai.
[2] https://www.conjur.com.br/2019-mai-19/processo-familiar-barrar-declaracao-unilateral-divorcio-negar-natureza-coisas
[3] Direito que não admite contestações, ou seja, ele é incontroverso, sujeitando a outra parte ao seu exercício.
[4] Agravo de Instrumento 2116972-24.2020.8.26.0000; Relator (a): Piva Rodrigues; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Diadema - 1ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 24/06/2020; Data de Registro: 24/06/2020.
[5] Agravo de Instrumento 2112975-33.2020.8.26.0000; Relator (a): José Carlos Ferreira Alves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Diadema - 2ª Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 23/06/2020; Data de Registro: 23/06/2020.
[6] Agravo de Instrumento 2208152-58.2019.8.26.0000; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 4ª Vara da Família e Sucessões; Data do Julgamento: 22/10/2019; Data de Registro: 22/10/2019.
[7]https://ibdfam.org.br/noticias/6941/TJPE+aprova+provimento+que+possibilita+o+%E2%80%9CDiv%C3%B3rcio+Impositivo%22
[8] https://www.conjur.com.br/2012-jul-24/rodrigo-pereira-divorcio-decorrencia-natural-casamento-amor
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