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Em 70 anos de televisão no Brasil, “A Grande Família” retratou temas que ainda ecoam na sociedade e no Direito das Famílias
Em 70 anos de televisão no Brasil, “A Grande Família” retratou temas que ainda ecoam na sociedade e no Direito das Famílias
A televisão brasileira completou setenta anos no último dia 18 de setembro, data em que, no ano de 1950, foi inaugurada a TV Tupi por Assis Chateaubriand. Durante essas sete décadas, não foram poucas as produções artísticas que abordaram temas presentes na realidade de muitas famílias brasileiras.
Como afirma o jurista Rodrigo da Cunha Pereira em sua magistral obra Direito das Famílias, “no campo jurídico, a arte nos ajuda a traduzir e pensar e repensar conceitos, muitas vezes estabilizados. Muitos filmes e em especial a teledramaturgia brasileira tem ajudado às novas estruturas parentais e conjugais a ganharem ‘ares de normalidade’, na medida em que ela representa uma realidade, que por sua vez passa a ser um costume, que como sabemos é uma das principais fontes do Direito” [1].
Nesse contexto, em sua segunda versão para a televisão, a série “A Grande Família”, cujo título já exemplifica a essência do enredo, abordou com grande sucesso vários temas que são recorrentes no Direito das Famílias e das Sucessões – sempre dentro de um viés cômico e, muitas vezes, nas entrelinhas. Trata-se de um exercício muito estimulante para nós, operadores do Direito, observarmos como a arte não somente imita a vida: ela retrata a vida.
Ao longo de quatorze anos de transmissão da sitcom, foram discutidos princípios e matérias como afetividade, paternidade, casamento, divórcio, dificuldades financeiras, machismo, adoção, aborto, preconceito contra o idoso, doação, partilha de bens e solidariedade, dentre tantos outros conceitos com os quais estamos familiarizados (com o perdão do trocadilho) em nossa atuação rotineira, mas que merecem nossa atenção com outro olhar.
Adoção
Nenê (Marieta Severo) e Lineu (Marco Nanini) decidem criar um bebê que surge na vida do casal, a quem dão o nome de Lineuzinho, em uma espécie de “adoção à brasileira”. No entanto, quando é descoberto o paradeiro da verdadeira mãe da criança, Rose (Grazi Massafera), o casal entra em um dilema moral entre contar a verdade para a moça ou seguir adiante na criação do menino, por quem já estão apegados.
Machismo e esterilidade
O malandro Agostinho Carrara (Pedro Cardoso) evolui seu comportamento machista ao longo da série. Inicialmente contra o trabalho de Bebel (Guta Stresser), ele passa a rever seus próprios conceitos após descobrir que é estéril e decide fazer um tratamento para ter um filho com a esposa, que acaba engravidando.
Paternidade socioafetiva
Tuco (Lúcio Mauro Filho) engravida sua namorada Viviane (Leandra Leal), que dá à luz o bebê Nelsinho. Toda a família fica apegada ao garoto, sobretudo os avós. No entanto, depois de alguns anos, Tuco acaba descobrindo que não é o pai biológico, mas já está apegado ao garoto.
Na temporada final, Bebel decide engravidar novamente, mas desta vez, o tratamento de Agostinho não dá certo. Sem contar a verdade para o marido, ela decide realizar uma inseminação artificial através de um doador anônimo, e fica grávida de trigêmeos. Para sua surpresa, Agostinho revela que sempre soube que ela havia feito o procedimento.
Casamento e divórcio
Marilda (Andréa Beltrão), após muitas decepções, acaba se casando com Mendonça (Tonico Pereira), mas como era de se esperar, a relação não dura nada. Bebel e Agostinho também chegam a se divorciar litigiosamente, mas depois acabam reatando o matrimônio.
Até mesmo Nenê e Lineu, ainda que apaixonados, reavaliam o casamento quando chegam aos quarenta anos de relação ao constatarem que a vida a dois – e em família – não é mais a mesma.
Pensão alimentícia
Depois de engravidar Viviane, Tuco precisa se virar nos trinta para pagar alimentos ao filho. Já Agostinho, quando se separa de Bebel, contrata Beiçola (Marcos Oliveira) para ingressar com uma ação visando obter pensão alimentícia da ex-mulher somente para infernizá-la, já que ainda é apaixonado por ela.
Terceira idade e aposentadoria
O divertido Seu Floriano (Rogério Cardoso) quer parecer mais jovem para não ser chamado de velho. Decide pintar o cabelo de preto e ir a um baile funk, o que rende um dos melhores episódios de toda a série, mas a receptividade à ideia não é tão boa.
Já Lineu resolve se aposentar, mas duas crises – a financeira e a existencial – acabam fazendo com que ele decide não mais ficar parado e partir em busca de outras oportunidades e realizações pessoais para a sua vida. O mesmo faz Nenê, quando decide deixar de ser dona de casa em tempo integral e passa a trabalhar em um conceituado restaurante.
Violência doméstica
Em determinado episódio, Nenê comanda um “apitaço” de um grupo de mulheres para protestar contra um marido que agrediu fisicamente a esposa – que o defende justificando que “só faz isso quando bebe”. O movimento desnuda as reações de cada integrante da família, e também dos amigos, a respeito da situação, apresentando discussões sobre como essa temática caracteriza-se de modo distinto na esfera pública e na privada.
Doação e partilha
Lineu e Nenê decidem doar ainda em vida seu patrimônio para os filhos, ou seja, a casa em que a família vive. O que eles não esperavam é que Agostinho e Bebel fossem comprar a parte de Tuco, se transformando nos únicos proprietários do imóvel. Dessa forma, a guerra entre sogro e genro é mais uma vez instalada, gerando novos conflitos nas relações patrimoniais e familiares.
Afetividade e solidariedade
Dois dos princípios que compõem a base de sustentação do Direito das Famílias, e que são protegidos pela Constituição Cidadã de 1988, estão presentes em todos os episódios da série.
Além do afeto evidente que une os integrantes da família – Lineu, Nenê, Tuco, Bebel, Agostinho e Floriano – na casa dos Silva sempre há espaço para mais um. Os agregados – Marilda, Mendonça, Beiçola e tantos outros – são como parte do núcleo familiar, desdobrando a relação ao princípio da fraternidade.
Os temas acima mencionados são apenas alguns, dentre tantos que foram discutidos, com maestria, pela sitcom durante seus anos de exibição. Afinal, a entidade familiar “deve ser tutelada como meio para a busca da felicidade de cada um de seus indivíduos” [2]. Sendo assim, essa produção artística fez com que as famílias, em qualquer uma das suas múltiplas configurações, pudessem se sentir representadas.
Matheus Azevedo Alves
Advogado
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