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Reconhecimento de dupla maternidade de criança gerada por inseminação caseira
Reconhecimento de dupla maternidade de criança gerada por inseminação caseira
Delma Silveira Ibias
Nas últimas décadas a família contemporânea sofreu mudanças substanciais na sua formação, resultando em novos arranjos e configurações, onde identificamos, que dentre os responsáveis por essas mudanças, estão a evolução tecnológica e o progresso da engenharia genética, o que têm trazido importantes avanços na formação desses novos modelos de famílias.
Destaca-se aqui a denominada família ectogenética, que é àquela com filhos decorrentes das técnicas de reprodução assistida. Já, a reprodução assistida é a possibilidade, de através dessas novas tecnologias, os casais inférteis ou estéreis e os casais homossexuais, terem filhos do seu patrimônio genético ou não. As formas podem variar entre inseminações artificias homólogas (quando o material genético é do próprio casal), heteróloga (quando o material genético é de um terceiro) e o útero de substituição (que consiste em uma mulher gerar em seu útero filho de outra ou para outra, conhecido popularmente como barriga de aluguel).
Tais questões, por falta de regulamentação jurídica, eis que não existe nenhuma lei no ordenamento brasileiro, que discipline tais procedimentos, têm interferido negativamente no avanço do direito e principalmente em pesquisas que poderiam melhorar a vida e a saúde de muitas pessoas.
Diante dessa lacuna legislativa, temos as resoluções deontológicas do Conselho Federal de Medicina (CFM), sendo a n. 2.168/2017, a última a regulamentar essas questões e os provimentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dentre os quais, o de n. 63/2017 e o de n.83/2019, que estabelecem normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida e procedimentos para a efetivação do registro de nascimento dessas crianças, respectivamente.
No caso de inseminação artificial em casais heterossexuais, independente da técnica utilizada, a possibilidade de o registro da criança ser realizado diretamente, em nome do casal propositor do projeto parental, já está pacifica e não gera mais discussões jurídicas, todavia, com relação aos casais homoafetivos, o desiderato era mais complicado, fato que lhes obrigava a buscar a via judicial para obtenção de autorização para efetivação do registro da criança em nome do casal solicitante. Situação que foi resolvida pelo Provimento 63/2017 do CNJ, que fixou as regras para o registro de filhos de casais homoafetivos nascidos pela técnica de reprodução assistida.
Todavia, resta pendente de regulamentação a dupla maternidade em nascimento de criança gerada por autoinseminação, conhecida popularmente como inseminação caseira, que ocorre quando duas mulheres decidem ter um filho com material genético masculino de um doador anônimo ou não, introduzindo dito material no útero de uma delas, que será a parturiente, cujo nome constará da Declaração de Nascido Vivo (DNV) fornecida pelo hospital, porém, como a inseminação realizou-se de forma caseira, elas não terão a declaração, com firma reconhecida, do médico diretor da clínica onde teria sido realizado o procedimento, documento este, que consta do rol determinado pelo art. 17 do Provimento 63/2017 CNJ. Diante de tal negativa, somente através de uma determinação judicial é possível realizar o registro de nascimento da criança em nome das duas mães, autoras do projeto parental.
Tal solução foi a encontrada recentemente pelo magistrado Rodrigo de Azevedo Bortoli, da vara de família e sucessões da comarca de Lajeado/RS, que reconheceu o direito de um casal de mulheres registrar sua filha recém nascida, através de inseminação caseira, em nome das duas companheiras.
Ambas viviam em união estável desde 14/02/2014, sendo que no decorrer da convivência resolveram ter um filho como realização de um desejo comum, o que concretizaram através da autoinseminação doméstica ou caseira.
Todavia, na Declaração de Nascido Vivo DNV – expedida pelo hospital local, a criança do sexo feminino nasceu em 10/06/2020, constando o nome da recém-nascida e da mãe parturiente, tendo a referida instituição se negado a colocar o nome da companheira da genitora.
Em face do ocorrido, vieram a juízo requerer a expedição de alvará para possibilitar o registro de nascimento da criança em nome de ambas as companheiras.
O representante do Ministério Público, em bem fundamentado parecer, opinou pelo deferimento do pedido.
O magistrado, ao deferir o pedido, em 28/07/2020, afirma que: “Ab initio impõe-se a anotação de que a constituição de família extrapola questões puramente biológicas de conservação da espécie, assim não podendo ser analisadas apenas à luz das propriedades reprodutivas próprias aos gêneros humanos - lógica muitas vezes assumida para assentar ainda mais inadequadas razões, tais como as religiosas, inadmissíveis em um Estado laico como o brasileiro”.
O magistrado, após fazer um cotejo sobre os ditames constitucionais, o Código Civil, os Provimentos do CNJ, as Resoluções do Conselho Federal de Medicina, o Enunciado 608 da VII Jornada de Direito Civil e Enunciado 608 do IBDFAM, afirmou ainda, que: “No caso em foco, as requerentes, conforme escritura pública declaratória acostada aos autos, mantêm união estável desde o dia 14/02/2014, ou seja, há mais de meia década (e muito antes da gestação em voga), sendo que no decorrer da relação resolveram, de comum acordo, ter um filho para consagrar essa união, desejo de ambas, para o que adotaram o procedimento de inseminação não assistida, mais conhecida como "inseminação doméstica", assumindo todos os riscos decorrentes desse método, uma vez que, conforme por elas asseverado, não possuem recursos financeiros para uma inseminação assistida”.
O procedimento restou integralmente exitoso, culminando com o nascimento de uma menina, o que é comprovado pela Declaração de Nascido Vivo acostada à petição inicial, pretendendo o registro de nascimento da menina em nome de ambas as companheiras.
Pontuou, ainda o magistrado sentenciante que as autoras possuíam todos os documentos conforme provimento 63 do CNJ, à exceção da declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, uma vez que realizaram a inseminação utilizando-se de técnica "caseira".
Não há legislação regulamentando a questão das inseminações ditas como "caseiras", o que faz com que não exista óbice à pretensão.
Ressaltou, outrossim, que não há qualquer norma que proíba a inserção de duas mães no registro de nascimento de uma criança, sendo possível tal fato, baseado na socioafetividade e no princípio da igualdade.
Neste contexto, cabe ressaltar que ambas as companheiras e agora mães da recém-nascida, serão responsáveis pela educação e criação da menor, de modo que a elas, solidariamente, compete tais responsabilidades, devendo o registro de nascimento retratar a sua realidade social, de forma a demonstrar que foi desejada, amada e criada por duas mães que idealizaram e planejaram o projeto parental.
Sinale-se, ainda, que no caso em tela, foi observado e assegurado o melhor interesse da criança, que será destinatária do cuidado e afeto de duas mães.
Nesses casos, o que tem se observado é o deferimento do pedido, desde que o juízo não vislumbre qualquer indício de ilegalidade, tendo como a melhor solução, atender e assegurar o superior interesse da criança, que será destinatária do cuidado e afeto de duas mães, ao invés de uma só.
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