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A “rede de proteção” e o Sistema de Justiça: a importância de uma autonomia crítica, colaborativa e propositiva
A “rede de proteção” e o Sistema de Justiça: a importância de uma autonomia crítica, colaborativa e propositiva
Murillo José Digiácomo[1]
A Lei Federal nº 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que recentemente completou 30 (trinta) anos de existência, é considerado um marco histórico, tanto no campo jurídico, quanto político, na promoção e defesa dos direitos das pessoas com idade inferior a 18 (dezoito) anos.
Uma das mais importantes inovações trazidas por essa norma, foi a noção de que a efetivação dos direitos infantojuvenis (e, em última análise, a “proteção integral” de todas as crianças e adolescentes[2]) deve ser resultante de um esforço coletivo, não mais podendo ficar a cargo de apenas um órgão ou autoridade, tal qual ocorria sob a égide do “Código de Menores”, quando o desempenho de tal tarefa recaía quase que exclusivamente na figura do antigo “Juiz de Menores”.
Pela sistemática introduzida pela Lei nº 8.069/90, aliás, a “judicialização da proteção” - e, por via de consequência, de todas as intervenções necessárias à prevenção e à reparação de toda e qualquer violação de direitos infantojuvenis[3] - deve ser a exceção, cabendo ao Poder Público, por meio dos mais diversos setores, órgãos e agentes, governamentais e não governamentais, agir de forma espontânea e prioritária quer para evitar que as causas determinantes de tais violações se materializem, quer para impedir que resultem em prejuízos ainda maiores às crianças e adolescentes que todos têm o dever de proteger.
Para tanto, desde sempre a Lei nº 8.069/90 preconiza a necessidade de “articulação de ações” (tal qual previsto no seu art. 86) e de “integração operacional” (nos moldes do contido no seu art. 88, inciso V) entre tais setores, órgãos e agentes, numa ação coletiva, colaborativa e coordenada, que serviu de base àquilo que se convencionou chamar de “rede de proteção à criança e ao adolescente”.
Curiosamente, embora o termo “rede de proteção” já seja há muito empregado pela doutrina, assim como em outras normas, sobretudo infralegais, a Lei nº 8.069/90 em momento algum o utiliza de maneira expressa[4], tendo sido o mesmo consagrado, no plano legislativo, apenas com o advento da Lei nº 13.431/2017, que institui o “Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência”.
E se para a Lei nº 8.069/90 o trabalho em “rede” era apenas um conceito abstrato, idealizado na perspectiva de aperfeiçoar a sistemática de atendimento à criança e ao adolescente vigente à época do revogado “Código de Menores”, para Lei nº 13.431/2017 sua existência passa a ser um verdadeiro pressuposto, sem o que - por verdadeira presunção legal - corre-se o sério risco da prática - por ação ou omissão - da “violência institucional” referida no art. 4º, inciso IV da citada norma[5].
Com efeito, a Lei nº 13.431/2017 não apenas faz expressa referência à “rede de proteção” em diversas de suas passagens, como evidencia a necessidade de que seja ela formalmente instituída, tendo o Decreto nº 9.603/2018 (que regulamenta da Lei nº 13.431/2017) previsto a criação de um “Comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência”[6], ao qual incumbe uma série de tarefas, como “articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição dos fluxos de atendimento”, definindo papéis e instituindo mecanismos de registro, sistematização, controle e compartilhamento de informações entre seus diversos componentes, assim como junto a outros órgãos e autoridades.
A propósito, a Lei nº 13.431/2017 fez uma clara distinção entre a “rede de proteção” e os Sistemas de Justiça[7] e de Segurança Pública[8], prevendo a necessidade de que todos atuem em regime de colaboração, no contexto mais amplo de uma política pública de cunho intersetorial/interinstitucional a ser elaborada no âmbito dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente[9], com a participação de todos aqueles que irão intervir no caso, seja no sentido da proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas e suas respectivas famílias (o que, por sinal, é o objetivo precípuo da norma), seja para responsabilizar os autores da violência - notadamente na esfera penal.
E a falta de uma política de atendimento claramente definida e amplamente divulgada entre os mais diversos integrantes do Sistema de Garantia, além de dar margem a toda sorte de distorções e falhas na sistemática de atendimento dessa complexa e delicada demanda (sendo assim fonte potencial da “revitimização” preconizada pela Lei nº 13.431/2017 e melhor definida pelo art. 5º, inciso II, do Decreto nº 9.603/2018[10]), pode resultar na responsabilização civil e administrativa dos gestores omissos, ex vi do disposto no art. 208, inciso XI c/c 216, da Lei nº 8.069/90[11].
A implementação dessa política, por outro lado, dará clareza acerca dos referidos papéis, fluxos e protocolos de atendimento a serem adotados por todos os integrantes do Sistema de Garantia, evitando a realização de intervenções indevidas, a superposição de ações e/ou a ocorrência de omissões por parte dos agentes corresponsáveis, assim como posturas autoritárias por parte daqueles que querem impor sua vontade aos demais, sem avaliar as alternativas possíveis e/ou as consequências que poderão daí advir.
O autoritarismo, aliás, é absolutamente incompatível com a ideologia que inspira a Lei nº 8.069/90 e normas correlatas, e seguramente não tem lugar no âmbito do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, que preconiza o diálogo permanente entre seus mais diversos integrantes, entre os quais não há que se falar em “hierarquia”, mas sim em parceria.
Partindo dessas premissas elementares, não é difícil concluir que a sistemática idealizada pela Lei nº 8.069/90 e, mais recentemente, reafirmada pela Lei nº 13.431/2017, procura romper, em definitivo, com aquela vigente à época do revogado “Código de Menores”, em que o antigo “Juiz de Menores” era considerado a “autoridade suprema”, que detinha poderes quase que ditatoriais em relação a todos os demais, tomando decisões unilaterais (não raro baseadas unicamente em seu “prudente arbítrio” ou naquilo que, intuitivamente, considerava ser do “melhor interesse do menor”[12]) que, por vezes, acarretavam graves violações de direitos às crianças e adolescentes que se pretendia proteger.
O objetivo, consoante acima ventilado, é justamente o de evitar, o quanto possível, a “judicialização da proteção”, que somente deve ocorrer em situações excepcionais e plenamente justificadas[13], nas hipóteses em que a própria Lei assim o exigir, como nos casos em que é necessário determinar o afastamento da criança - ou, com mais propriedade, do agente responsável pela violação dos direitos daquela - do convívio familiar, ex vi do disposto no art. 130, da Lei nº 8.069/90 e no art. 21, inciso II, da Lei nº 13.431/2017.
Em todos os demais casos, e para todas as demais providências de cunho “protetivo” que se fizerem necessárias, o Poder Público tem o “dever de agir”[14] de forma espontânea e prioritária, independentemente da intervenção judicial, por meio de programas e serviços especializados[15], planejados e executados por profissionais qualificados, que estejam conectados entre si no âmbito da “rede de proteção” anteriormente referida.
E a rigor, na forma da Lei, o que deve determinar a intervenção “protetiva” estatal - que se constitui, em última análise, num direito da criança/adolescente atendida[16] - não é uma “ordem judicial”, mas sim suas necessidades específicas[17], que precisam antes de mais nada ser devidamente apuradas, por meio dos órgãos técnicos da própria “rede de proteção”.
Assim sendo, cabe ao Poder Público, notadamente em âmbito municipal[18], organizar e preparar seus programas e serviços, qualificar seus agentes, definir papéis, instituir fluxos e protocolos de atendimento para fazer frente aos problemas que afligem suas crianças e adolescentes (assim como suas respectivas famílias) de imediato, na medida em que surgirem, intervindo com o máximo de presteza e profissionalismo na apuração de suas causas e em sua efetiva solução, sem prejuízo da realização de ações de cunho preventivo, no contexto mais amplo da supramencionada política de atendimento.
Para tanto, é fundamental a criação de espaços próprios[19], nos moldes do preconizado pelo art. 70-A, inciso VI, da Lei nº 8.069/90, para que representantes dos diversos setores e órgãos da administração corresponsáveis possam se reunir periodicamente, quer para definição e reavaliação da adequação/eficácia dos fluxos e protocolos preestabelecidos, quer para o debate de casos individuais, sobretudo aqueles de maior complexidade, que irão exigir abordagens “alternativas” e intervenções mais “intensivas” e qualificadas, na perspectiva de sua efetiva solução.
Essa readequação institucional (ou interinstitucional), que já era prevista desde o art. 259, par. único, da Lei nº 8.069/90[20], ganhou novo ímpeto com o advento da Lei nº 13.431/2017, que em seus arts. 26 e 27 estabeleceu prazos específicos para sua concretização, que foram posteriormente complementados pelo contido no art. 31, do Decreto nº 9.603/2018, que também previu mecanismos adicionais destinados à adequada implementação e operacionalização da pluricitada “rede de proteção”.
Uma vez que tais prazos já se encontram invariavelmente extrapolados, lógico concluir que a implementação, em caráter “formal” tanto da “rede de proteção” quanto de todos os aspectos a ela relacionados, sobretudo aqueles referidos pela Lei nº 13.431/2017 e pelo Decreto nº 9.603/2018, pode ser desde logo exigida junto aos gestores públicos respectivos[21], inclusive, como já referido, sob pena de responsabilidade pessoal dos mesmos.
E isto importa em fazer com que a “rede” não apenas exista, tanto de fato quanto de direito[22], tendo uma clara definição de seus integrantes e dos papéis de cada um, assim como dos fluxos e protocolos de atendimento intersetorial respectivos, mas que também assuma o protagonismo da proteção das crianças e adolescentes no município, não mais ficando “a reboque” das decisões e determinações judiciais ou de outras autoridades.
O ideal, como já referido, é que passe a atuar de forma preventiva, interagindo com a comunidade[23] e com lideranças locais, sobretudo na busca da conscientização e colaboração de todos, ainda que na identificação precoce e denúncia de possíveis violações de direitos, no apoio às famílias e em outras ações que confiram maior abrangência e “capilaridade” aos mecanismos de prevenção e proteção disponíveis no município.
Em qualquer caso, é fundamental que a “rede de proteção” disponha de “autonomia” para tomada das providências a seu cargo, efetuando as intervenções devidas com o máximo de presteza, diante da simples notícia das mais diversas situações de ameaça ou violação de direitos infantojuvenis, inclusive quando eventualmente praticadas (ainda que involuntariamente) por outros integrantes do Sistema de Garantia.
Assim, diante da notícia de ocorrência de violação de direitos de uma criança ou adolescente[24], independentemente de sua origem, caberá à rede de proteção” - por iniciativa própria - efetuar o “diagnóstico” da situação em que aquela se encontra, o que, sempre que possível, deve compreender sua “escuta especializada” por meio de profissional qualificado previamente referenciado, nos moldes do preconizado pelo art. 7º e seguintes, da Lei nº 13.431/2017[25].
O procedimento deve levar em conta os direitos assegurados pelo art. 5º, da Lei nº 13.431/2017, e as intervenções subsequentes devem observar os princípios relacionados no art. 100, caput e par. único, da Lei nº 8.069/90, inclusive no que diz respeito à coleta da opinião da criança/adolescente acerca das providências a serem tomadas[26], culminando com a elaboração de um “plano individual e familiar de atendimento”[27], que seja definido com a participação de todos os que serão atingidos pela intervenção estatal, levando em conta sua opinião e sua capacidade de cumprir as tarefas e metas que forem estabelecidas.
Vale destacar que, em sendo necessário o encaminhamento da criança, adolescente e/ou seus pais/responsável a algum atendimento ou tratamento específico, isto deve ser providenciado logo após a escuta, com o acionamento do órgão competente diretamente pelo próprio técnico responsável por esta (ou outro integrante da “rede” previamente indicado no respectivo fluxo de atendimento), independentemente da aplicação de qualquer “medida” por parte do Conselho Tutelar ou autoridade judiciária[28].
De igual sorte, o técnico responsável pela escuta (ou outro integrante da “rede” previamente referenciado) deve providenciar - de imediato e diretamente, sem a “intermediação” do Conselho Tutelar - o acionamento dos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, sempre que houver indícios da prática de algum crime e/ou da necessidade de alguma providência que demande a intervenção judicial[29].
Se possível, tanto os encaminhamentos aos demais integrantes da própria “rede de proteção” quanto aqueles endereçados aos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública devem ser efetuados pela via eletrônica, por meio de um sistema informatizado disponibilizado nos moldes do previsto nos arts. 28 a 31, do Decreto nº 9.603/2018 (que por sua vez tem suas origens no art. 14, §1º, inciso III, da Lei nº 13.431/2017).
Enquanto não disponível um sistema informatizado próprio, outros meios de comunicação devem ser ajustados, seja no âmbito da “rede de proteção”, seja junto aos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, buscando-se sempre a forma mais ágil e eficiente quer para o acionamento recíproco, quer para troca de informações que se mostrem relevantes para entender exatamente o que aconteceu, quais as causas determinantes do problema e quais as alternativas cabíveis para sua efetiva solução.
E embora tais acionamentos recíprocos (assim como seus desdobramentos) devam ser sempre registrados e formalizados (por meio de documentos físicos e/ou digitais), é possível usar de outras ferramentas tecnológicas já disponíveis (como ligações telefônicas, grupos de e-mail, Whattsapp ou similares) para permitir sua realização imediata, a qualquer hora do dia ou da noite, sempre que necessário.
A propósito, como a violação de direitos de crianças e adolescentes (especialmente quando envolvem violência[30]) não tem dia ou hora para ocorrer (e é muito mais frequente no período noturno, assim como nos finais de semana e feriados), não apenas a “rede de proteção”[31] deve funcionar, em regime de “plantão” ou “sobreaviso” 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, como esta também precisa manter, em caráter permanente, canais diretos de comunicação com representantes dos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, de modo que possa também acioná-los a qualquer momento, quando sua intervenção por qualquer razão justificada se mostre necessária (e vice-versa).
E em relação ao Sistema de Justiça, importante não perder de vista que esses canais de comunicação devem abranger tanto a Justiça da Infância e da Juventude (para as intervenções de cunho “protetivo” que se fizerem necessárias[32]), quanto a Justiça Criminal (a quem incumbe a responsabilização penal dos autores da violência - assim como a aplicação das “medidas protetivas” referidas no art. 21, incisos I a III, da Lei nº 13.431/2017).
Caso se entenda necessário a tomada de alguma providência específica na esfera judicial (como é o caso dos já referidos afastamento da vítima ou do vitimizador da moradia comum[33]), é importante que os mecanismos de acionamento incluam as informações mais completas e esclarecedoras acerca da medida pretendida, sua eventual urgência e as razões para que seja ela determinada, valendo lembrar que, sem embasamento técnico e/ou jurídico idôneos, o ajuizamento da demanda e/ou a obtenção de uma decisão favorável (sobretudo em caráter de urgência) podem restar prejudicados.
De igual sorte, é importante que a “rede de proteção” tenha a capacidade de apurar e indicar aos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública possíveis falhas na atuação destes (seja por ação, seja por omissão), quer no que diz respeito ao adequado desempenho de seu papel institucional, nos moldes do que foi previamente ajustado com os demais integrantes do Sistema de Garantia[34], quer quanto aos casos individuais por eles atendidos, na perspectiva de evitar ou minimizar os efeitos da “revitimização” e/ou “violência institucional” já referidas.
Desnecessário dizer que o “dever coletivo” de zelar pela plena efetivação de direitos infantojuvenis e, mais especificamente, de coibir a violência contra crianças e adolescente[35], não comporta qualquer exceção, e também engloba possíveis violações praticadas por autoridades ou representantes dos Sistemas de Justiça e de Segurança Pública, que podem ocorrer, inclusive, em razão da inobservância das normas legais e técnicas aplicáveis, assim como dos fluxos e protocolos preestabelecidos[36] e mesmo da demora excessiva em dar ao caso a solução devida.
E os já referidos canais de comunicação e espaços próprios para o diálogo interinstitucional, que como visto são inerentes ao Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente, são importantes ferramentas para que tais possíveis falhas sejam apontadas, debatidas e, se for o caso, solucionadas, seja no plano individual, seja no âmbito coletivo, procurando sempre aperfeiçoar o atendimento prestado e encontrar a solução que, de maneira concreta, contemple os interesses das crianças e adolescentes atendidas.
A partir de um amplo e franco debate interinstitucional, será possível, por exemplo, criar uma sistemática que permita ao órgão responsável pela “escuta especializada” o já referido acionamento direto do Ministério Público, quando necessário o pronto afastamento do vitimizador ou da criança/adolescente vítima da moradia comum[37] e/ou o estabelecimento de alguma outra medida judicial restritiva[38], assim como que a autoridade judiciária acione o órgão competente da “rede” para avaliar a adequação e/ou planejar a execução de certas providências mais “invasivas” e potencialmente traumáticas (como é o caso do cumprimento de um mandado de busca e apreensão expedido em relação a uma criança ou adolescente).
Importante destacar que o fato de um determinado caso envolvendo ameaça ou violação de direitos infantojuvenis estar judicializado não “desobriga” a “rede” de continuar nele atuando, assim como a tomar as providências que se fizerem necessárias para promover a plena efetivação dos direitos da criança/adolescente atendida, pois é seu dever institucional evitar que venha esta a sofrer novas violações de direitos, inclusive por parte do próprio Sistema de Justiça.
E é justamente a continuidade (e mesmo a eventual intensificação) do atendimento prestado pela “rede de proteção” aos casos que venham a ser judicializados (com ênfase para aqueles onde houver o acolhimento institucional), que permitirá a identificação precoce de situações decorrentes da judicialização que possam causar estresse emocional (dentre outros prejuízos) às respectivas crianças e adolescentes, o que não apenas garantirá seu rápido encaminhamento aos atendimentos aos quais, como já mencionado, têm direito, mas também agilizará o fornecimento, à autoridade judiciária, de informações mais atualizadas, completas e qualificadas que se mostrem relevantes à solução do caso na esfera judicial.
E esse fornecimento de informações que sejam de interesse à solução de uma determinada demanda judicial envolvendo uma criança, adolescente ou família que esteja sendo atendida pela “rede de proteção”, vale dizer, deve ser efetuado não apenas mediante solicitação da autoridade judiciária[39], mas sim, inclusive, por iniciativa da própria “rede”, sempre que se entender necessário, ou “a pedido” da criança/adolescente/família, sendo certo que, quanto mais informações houver, e mais qualificadas estas forem, maior a chance de acerto na decisão judicial, o que por certo é desejado por todos.
Semelhante entendimento ganha especial relevância em se tratando de crianças e adolescentes inseridas em programa de acolhimento institucional, na perspectiva de fazer com que este, mesmo quando cabível[40], se estenda pelo menor período de tempo possível, o que importa em dar “voz” aos acolhidos, notadamente por intermédio do dirigente da entidade onde aquelas se encontram, que na forma da Lei[41] é o seu “responsável legal” e, como tal, tem legitimidade não apenas para “enviar relatórios”, mas também para peticionar junto ao Sistema de Justiça na defesa de seus interesses.
Assim sendo, sempre que quando do atendimento de uma criança ou adolescente acolhida, a equipe técnica da entidade ou a “rede de proteção”, entender que a medida, mesmo quando determinada pela autoridade judiciária, é indevida, pode ser substituída por outra (como o acolhimento familiar ou a colocação sob guarda ou tutela) ou pode ser revertida, com a reintegração familiar do acolhido (notadamente quando este assim o deseja), deverá - a qualquer momento e por iniciativa própria[42] - fornecer os subsídios necessários para que o dirigente da entidade peticione em Juízo para obtenção do provimento jurisdicional respectivo, o que poderá ser feito por meio de advogado constituído[43] ou nomeado pelo próprio Juízo, sendo também possível acionar a Defensoria Pública para tanto.
Cabe ao dirigente da entidade de acolhimento, aliás, assumir um papel “ativo” na defesa dos interesses das crianças e adolescentes que estão sob sua responsabilidade[44], seja na esfera judicial, seja junto à “rede de proteção” local (no âmbito da qual a própria entidade encontra-se inserida), encaminhando-os para os atendimentos complementares que se fizerem necessários, debatendo - e propondo (a partir da manifestação de vontade da criança/adolescente e das avaliações técnicas com ela realizadas) - alternativas de abordagem/intervenção também junto às famílias[45], zelando pela adequada elaboração e contínua revisão de planos individuais (e familiares) de atendimento, dada dinâmica inerente ao próprio atendimento prestado.
Em qualquer caso, importante não perder de vista que não existe “relação de subordinação” entre o dirigente da entidade de acolhimento e a autoridade judiciária (o mesmo valendo para os demais integrantes da “rede de proteção” à criança e ao adolescente), sendo que questionamentos quanto a decisões (ou mesmo quanto à demora excessiva para que estas sejam tomadas, quando for o caso), por parte desta, que no entender dos técnicos da entidade (ou da “rede”[46]) causem prejuízo e/ou não correspondam aos interesses concretos - e mesmo manifestos - dos acolhidos, não apenas “podem”, mas devem ser efetuados - como dito, a qualquer momento -, seja através dos já referidos canais diretos de comunicação que devem ser estabelecidos entre os mesmos, seja por meio da interposição dos recursos cabíveis junto aos Tribunais.
O que não se pode permitir, em qualquer circunstância, é a tomada de decisões judiciais que, além de não contemplarem os reais interesses das crianças e adolescentes atendidas pela “rede de proteção”, importem na prática das já referidas “violência institucional” ou “revitimização”, preconizadas pela Lei nº 13.431/2017.
E partindo do princípio elementar que não é do interesse da autoridade judiciária (ou de qualquer um) causar, por ação ou omissão, ainda que involuntariamente, qualquer prejuízo às crianças e adolescentes cuja situação por qualquer razão se encontra judicializada, e que como já mencionado, o acerto na tomada das decisões respectivas depende diretamente da qualidade das informações (sobretudo de ordem técnica) obtidas junto às mais diversas fontes, lógico concluir que esse protagonismo da “rede de proteção” é para todos salutar, representando um passo adiante na busca da tão sonhada - e há tanto prometida - “proteção integral” de toda população infantojuvenil.
Curitiba/PR, julho de 2020.
[1]Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal (murilojd@mppr.mp.br).
[2]Prometida pela citada norma já em seu art. 1º.
[3]E não se está falando aqui em reparação “patrimonial” (embora esta seja também um direito das crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados).
[4]A única vez que emprega o termo “rede”, no sentido dessa intervenção conjunta por parte dos órgãos de proteção, é em seu art. 13, §2º, que foi introduzido ao texto original do ECA pela Lei nº 13.257/2016 (o chamado Marco Legal da Primeira Infância).
[5]Que o art. 5º, inciso I, do Decreto nº 9.603/2018 define como sendo a “violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência”.
[6]Vide art. 9º, inciso I da citada norma.
[7]Composto basicamente pelo Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.
[8]Que engloba as Polícias Civil e Militar, Guarda Municipal e mesmo a Polícia Federal.
[9]Órgão que, na forma do art. 88, inciso II, da Lei nº 8.069/90 (com respaldo nos arts. 227, §7º c/c 203, inciso II da Constituição Federal), detém a competência - e legitimidade - para formulação da política de atendimento à criança e ao adolescente e para exercer o chamado “controle social” sobre sua execução, por parte do Poder Público.
[10]Definida como “discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem”.
[11]Tendo sido o inciso XI incorporado ao art. 208 do ECA justamente pela Lei nº 13.431/2017.
[12]Interessante observar que o “prudente arbítrio do Juiz” era um critério expressamente referido no “Código de Menores”, e que o “princípio do melhor interesse da criança”, embora consagrado pelas normas internacionais, não foi referido - propositalmente - na redação original da Lei nº 8.069/90 (foi incorporado ao seu art. 100, par. único apenas a partir da Lei nº 12.010/2009) justamente para impedir sua utilização como fundamento único para decisões arbitrárias que, a pretexto de “proteger” ou salvaguardar um determinado direito da criança/adolescente atendida, na prática acabavam por violar outros, tal qual fazia o antigo “Juiz de Menores”.
[13]Inclusive sob pena de violação do “princípio da intervenção mínima”, preconizado pelo art. 100, par. único, inciso VII, da Lei nº 8.069/90, segundo o qual: “a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente”.
[14]Tal qual previsto no art. 4º, caput, da Lei nº 8.069/90 e no art. 227, caput, da Constituição Federal,
[15]Que correspondam, dentre outas, às “medidas” relacionadas nos arts. 18-B; 101; 112 (notadamente em seus incisos I a IV) e 129 (notadamente em seus incisos I a IV), da Lei nº 8.069/90.
[16]Assim como dos demais integrantes de sua família, ex vi do disposto no art. 226, caput e §8º, da Constituição Federal: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) §8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
[17]Que o art. 99, da Lei nº 8.069/90 chama genericamente de “necessidades pedagógicas”.
[18]A alusão ao município decorre, antes de mais nada, do contido no art. 88, inciso I, da Lei nº 8.069/90, que com respaldo nos arts. 227, §7º c/c 203, inciso I, da Constituição Federal, estabelece a “municipalização” como uma das diretrizes da política de atendimento, assim como da constatação de que a maior parte dos agentes e equipamentos que integram a “rede de proteção” são municipais.
[19]Embora o termo “rede de proteção” seja utilizado no singular, nada impede que os municípios, sobretudo aqueles de maior porte, criem espaços diversos (ou “redes” descentralizadas), de cunho regional, sobretudo para discussão sobre casos individuais, sem prejuízo da reunião periódica de representantes dos mesmos, para conferir uniformidade nas linhas de ação e nos procedimentos a serem adotados, troca de informações e compartilhamento de dados e outros aspectos destinados a assegurar um atendimento isonômico e de qualidade para todos.
[20]Pelo que deveria ter sido efetuada já durante o período de vacatio legis desta norma, de modo que seus diversos mecanismos estivessem já implementados quando de sua entrada em vigor (que ocorreu no longínquo dia 13/10/1990).
[21]Seja na esfera extrajudicial, seja por intermédio dos remédios jurídicos previstos nos arts. 212 e 213, da Lei nº 8.069/90.
[22]Sendo formalmente instituída por meio de resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local, tendo um regimento interno destinado a regulamentar seu funcionamento, um calendário para realização de reuniões ordinárias etc.
[23]Que, afinal, é também referida - não por acaso - pelo art. 4º, caput, da Lei nº 8.069/90 como corresponsável pela plena efetivação dos direitos infantojuvenis.
[24]Notícia esta que pode ser efetuada por qualquer meio, inclusive através de mecanismos de “notificação obrigatória”, físicos e/ou digitais, instituídos com fundamento dos arts. 13, caput e 56, inciso I, da Lei nº 8.069/90 e 13, caput da Lei nº 13.431/2017.
[25]A rigor, a escuta somente não deve ser realizada quando a criança/adolescente não tiver condições de exprimir sua vontade ou se recusar a falar (conforme art. 5º, inciso VI, da Lei nº 13.431/2017, a criança ou adolescente tem o direito de permanecer em silêncio).
[26]Sendo certo que a coleta da “opinião informada” da criança/adolescente, preconizada pelo art. 100, par. único, incisos XI e XII, da Lei nº 8.069/90, decorre nada menos que do art. 12, da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989.
[27]Terminologia empregada pelo art. 19, inciso I, da Lei nº 13.431/2017, que enfatiza a necessidade das ações a serem desencadeadas abrangerem não apenas a criança/adolescente, mas também outros integrantes de sua família.
[28]A aplicação de alguma “medida”, em caráter formal, assim como acionamento do Conselho Tutelar (salvo para os fins de ciência e acompanhamento do caso), a rigor, somente deve ocorrer quando, por qualquer razão, não for possível a realização do atendimento de maneira espontânea, devendo ser justificado caso a caso, e não realizado de forma indiscriminada.
[29]Valendo neste caso observar o disposto nos arts. 13, caput e 15, par. único, da Lei nº 13.431/2017.
[30]Nas diversas formas previstas pelo art. 4º, da Lei nº 13.431/2017.
[31]Com ênfase para o equipamento encarregado da realização da “escuta especializada”.
[32]Sem jamais perder de vista o já referido caráter excepcional dessa intervenção, que precisa ser devidamente justificada.
[33]Providências que deverão ser requeridas pelo Ministério Público, por meio de procedimento específico, de cunho contencioso (af. arts. 101, §2º e 153, par. único, da Lei nº 8.069/90).
[34]E é importante que o papel de cada um seja definido com antecedência, o mesmo ocorrendo em relação aos fluxos e protocolos de atendimento interinstitucional, que devem ser amplamente divulgados entre todos aqueles que irão atuar no caso.
[35]Ex vi do disposto nos arts. 4º, caput e 70, da Lei nº 8.069/90 e art. 13, caput, da Lei nº 13.431/2017.
[36]Tal qual o art. 13, par. único, da Lei nº 13.431/2017 reconhece de maneira expressa.
[37]Providência extrema e excepcional que, como já referido, somente pode ocorrer por meio de decisão judicial fundamentada.
[38]Como as previstas no art. 21, incisos I e III, da Lei nº 13.431/2017, que também podem ser requeridas pela autoridade policial.
[39]Por meio do envio de “relatórios” periódicos, com no caso previsto no art. 19, §1º, da Lei nº 8.069/90.
[40]E sempre, antes do acolhimento institucional, deve-se avaliar sua real imprescindibilidade, devendo-se sempre procurar soluções alternativas, que podem, inclusive, ser apontadas pela própria criança ou adolescente atendida.
[41]Cf. art. 92, §1º, da Lei nº 8.069/90.
[42]Independentemente de requerimento do Juízo, do Ministério Público e/ou da designação de uma “audiência concentrada” ou similar.
[43]Podendo ser o procurador do município, em se tratando de entidade governamental.
[44]E não a condição de mero “cuidador” ou “fiel depositário” das crianças/adolescentes acolhidas, exercendo seus deveres para com estas em sua plenitude, e zelando - sponte própria - para que seus direitos sejam por todos respeitados.
[45]Que nunca é demais lembrar, na forma da Lei e da Constituição Federal tem direito a “proteção especial por parte do Estado” (lato sensu), “na pessoa de cada um dos que a integram” (art. 226, caput e §8º d CF) e deve ser também destinatária de intervenções de cunho “protetivo” por parte dos diversos órgãos e autoridades competentes (o que inclui o Conselho Tutelar).
[46]Não apenas as entidades de acolhimento naturalmente integram a “rede de proteção” à criança e ao adolescente do município, mas também devem com esta interagir em caráter permanente, compartilhando informações e tarefas na busca da melhor, mais rápida e mais eficaz solução para os casos sob sua responsabilidade.
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