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1984, a alienação parental na "visão" de George Orwell
1984, a alienação parental na "visão" de George Orwell.
Fernando Salzer e Silva
O ano é 2020, o Brasil e o mundo foram surpreendidos pela pandemia da COVID-19, que levou grande parte da população a se refugiar em seus lares ou abrigos, buscando o ora recomendado, ora questionado, isolamento social, como uma das formas indicadas pela Organização Mundial de Saúde para conter a propagação do Coronavírus - SARS-CoV-2.
No isolamento social forçado, para preservar a saúde mental e amenizar os efeitos da quarentena imposta, várias pessoas iniciaram, aumentaram ou resgataram o hábito da leitura, descobrindo novos autores, procurando ou revisitando os clássicos e consagrados, como, por exemplo, George Orwell.
Um destes cidadãos que buscou o refúgio na leitura, como uma das válvulas de escape para contornar os efeitos psicológicos negativos causados pelo isolamento social, foi um advogado, Dr. Salazar, que, após ler a obra 1984, de George Orwell, deixou a mente fluir e, usando toda a criatividade gerada pela solidão branda, num exercício de autodiálogo, formulou a seguinte teoria: E se, ao contrário do que todos pensam, o livro não fosse uma crítica a um sistema social e político, mas sim uma crônica metafórica, carregada de profecias tecnológicas, a respeito de um fenômeno familiar que existe há séculos, qual seja, a alienação parental, no seu nível mais grave e hediondo?
Para tentar verificar a procedência da teoria por ele mesmo cogitada, Dr. Salazar, primeiro, buscou fazer um paralelo entre os personagens do livro 1984 e os atores envolvidos nos atos graves de alienação parental, chegando às seguintes conclusões:
O alienador, na obra de ficção, seria representado pelas figuras do Grande Irmão, do Partido e de O'Brien.
Já os cúmplices do alienador principal seriam os membros do Partido, a Polícia das Ideias, os espiões amadores, etc.
No livro, o alienado seria representado pelo personagem principal, Winston Smith.
Por fim, os alvos dos atos de alienação seriam, de forma mais estrita, Júlia, representando, digamos, o ataque à convivência familiar, e, de modo mais abrangente, as demais pessoas que se relacionavam com Winston, seu diminuto círculo de convivência comunitária.
Após efetuar o necessário paralelo, Dr. Salazar investigou se os objetivos buscados pelo Grande Irmão e pelo alienador parental, no estágio mais grave de tal conduta e intento, seriam convergentes, chegando à conclusão que sim, pois ambos, através do uso de violência[1], almejam interferir na formação psicológica de seus alvos[2], no intuito de causar prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos de afeto[3], a fim de que os alienados repudiem alguns ou a totalidade de seus familiares, parte da comunidade na qual estão inseridos e até mesmo suas próprias identidades.
Aferida a coincidência de objetivos, o próximo passo seria aferir se os métodos utilizados para alcançar tais fins seriam similares.
Para espanto do Dr. Salazar, os métodos utilizados pelo Grande Irmão e pelo alienador não eram somente semelhantes, mais idênticos, uma vez que ambos utilizam como ferramenta primordial para alcançar seus intentos, a inversão e alteração deliberada dos fatos, da realidade, através, por exemplo, da implantação de falsas memórias.
Tal inversão e alteração deliberada dos fatos e da realidade é perfeitamente exemplificada através do paradoxo existente entre o nome dado pelo Grande Irmão aos seus quatro Ministérios e a verdadeira função exercida por estes, pois o Ministério da Paz cuidava dos assuntos de guerra, dos confrontos; o Ministério da Verdade produzia as mentiras, as falsas memórias; no Ministério do Amor se praticava a tortura, notadamente a psicológica; e o Ministério da Pujança lidava com a escassez.
Do mesmo modo que o Grande irmão, o alienador se escora na fachada do amor, para, na verdade, realizar e justificar a tortura psicológica à qual o alienado é submetido; fala que almeja a paz, mas se nutre do aumento do confronto; usa o estandarte da verdade e do vitimismo para camuflar a mentira, a distorção dos fatos e acontecimentos, a implantação das falsas memórias; e propaga aos quatro ventos a sua pujança de cuidados em relação ao alienado, para mascarar sua escassez de afeto e empatia para com este.
E os métodos de controle psicológico utilizados pelo Grande irmão e pelo alienador, estes também se equivaleriam? Questionava-se o Dr. Salazar.
O Grande irmão, para ter o controle e domínio dos atos e mentes dos seus alvos utilizava os seguintes meios e ferramentas: teletelas, microfones de vigilância, Polícia das Idéias, espiões amadores, distorção dos fatos passados e do presente, através, entre outros, da implantação das falsas memórias.
Dr. Salazar ficou impressionado com a visão profética de George Orwell, pois a teletela e os microfones utilizados como aparatos de espionagem e monitoramento no obra ficcional se assemelham aos atuais aparelhos de celular, que hoje contam com vários outros recursos de vigilância e controle, como, por exemplo o GPS, com a vantagem de tais Smartphones acompanharem o cotidiano das pessoas praticamente 24 horas por dia, chegando alguns a monitorar até mesmo o sono e o batimento cardíaco de seus possuidores.
Ao estudar os métodos de controle e domínio utilizados pelo alienador parental, no estágio mais grave de tal prática, Dr. Salazar ficou pasmo, pois eram praticamente os mesmos utilizados pelo grande irmão, só que, atualmente, mais eficientes, devido ao avanço tecnológico, sendo usualmente manejadas as seguintes ferramentas e meios: Smartphones (acompanhamento da localização em tempo real, gravação das chamadas telefônicas, chamadas de vídeo, espelhamento de aplicativos de mensagem, etc), vigilância das redes sociais do alienado e dos alvos da alienação, espionagem realizada pelos cúmplices do alienador principal, distorção dos fatos através da implantação de falsas memórias, etc..
Abismado com a consistência da teoria por ele mesmo proposta, Dr. Salazar, ao ler dois trechos específicos do livro 1984, abaixo transcritos, chegou a um terrível entendimento: tanto o Grande Irmão como o alienador parental, no estágio mais grave e hediondo de tal prática, almejam, na verdade, destruir a identidade do alienado, fazendo com que esse atinja a submissão total e completa, tornado alienador e alienado uma só pessoa, uma simbiose eterna; a custódia física do alienado é uma necessidade instrumental, digamos, secundária, mas necessária para consecução do objetivo final, qual seja, o domínio total da mente, do psicológico e da vida do alienado.
"(...). Mas se ele atingir a submissão total e completa, se conseguir abandonar sua própria identidade, se conseguir se fundir com o Partido a ponto de ser o Partido, então será todo-poderoso e imortal. A segunda coisa que você deve entender é que poder é poder sobre os seres humanos. Sobre os corpos - mas, acima de tudo, sobre as mentes."
(...)
(...). "Controlamos a matéria porque controlamos a mente. A realidade está dentro do crânio. (...)"." [4]
""Como um homem pode afirmar seu poder sobre o outro, Winston?
Winston pensou. "Fazendo-o sofrer respondeu."
"Exatamente. Fazendo-o sofrer. Obediência não basta. Se ele não sofrer, como você pode ter certeza de que obedecerá à sua vontade e não à dele próprio? Poder é infligir dor e humilhação. Poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser." [5](pg. 311).
Da mesma forma que o culto, a obediência e a fidelidade ao Grande irmão e às suas idéias deviam ser totais e irrestritas, de igual modo deve se portar o alienado para com o alienador, qualquer pensamento de afeto ou de simpatia relacionado às pessoas objeto da alienação são considerados crime de pensamento, ou, como se diria em novafala, pensamentocrime.
Após ter consolidado sua teoria, Dr. Salazar ficou, de imediato, deveras angustiado ao lembrar que no final do livro 1984 só restou ao alienado, Winston, após descobrir que seu pseudo mentor, protetor, a quem idolatrava e devotava total admiração, subordinação e lealdade era, na verdade, seu algoz, desejar sua própria morte, uma vez que não havia, à época, instrumento hábil para lutar contra os métodos, desejos e objetivos doentios do Grande Irmão.
Entretanto, passados alguns minutos, Dr. Salazar deu um suspiro de alívio, recordando que no Brasil, desde 2010, foi criado um mecanismo legal específico para combater os métodos, desejos e objetivos dos alienadores, buscando jogar luz nos atos destes e proteger as crianças, adolescentes, idosos e vulnerais, tal qual coibir a violência no âmbito das relações familiares e comunitárias, qual seja, a Lei 12.318/2010, que interpretada, aperfeiçoada e aplicada em conjunto com as demais normas preventivas e protetivas do ordenamento jurídico nacional (constitucional, supralegal e legal), acompanhada da necessária e indispensável capacitação constante dos operadores do direito e das equipes multi e interdisciplinares envolvidas, é um poderoso instrumento no combate desta cruel violência psicológica denominada alienação parental.
[1] art. 4°, II, b, Lei 13.431/2017;
[2] art. 2°, caput, Lei 12.318/2010;
[3] art. 3°, Lei 12.318/2010;
[4] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pág. 309;
[5] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pág. 311;
Fernando Salzer e Silva, advogado familiarista, procurador do Estado de MG e membro do IBDFAM.
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