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Livre Arbítrio
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 28
Ao descobrir o encoberto da vida mental, Freud formulou a psicanálise, uma teoria e metodologia de compreensão. Ele ocupou-se das leis de formação do psiquismo e, como não poderia deixar de ser, das condições necessárias à manutenção da vida e integridade do ser. Assim, desde sua gênese, a psicanálise tratou de questões atinentes à legitimidade, à lei, ao direito, sob a ótica da subjetividade. Subjetividade esta que se atualiza na objetividade das relações - campo por excelência do Direito.
Em tempos de humanização do Direito, em que a hermenêutica ganha terreno, impõe-se uma maior compreensão dos fenômenos psíquicos, que não são patrimônio da psicanálise. Trago alguns de seus conceitos que creio podem vir a ser de utilidade para estes novos tempos de mudanças de paradigmas.
Centremo-nos no famigerado e “abusado” Complexo de Édipo. Freud utilizou o mito de Édipo Rei, de Sófocles, como modelo para exemplificar a formação e o desenvolvimento do psiquismo humano no tempo, sobretudo da infância. Trata-se de um complexo universal que designa um conjunto de impulsos e suas metas, sentimentos e relacionamentos, medos e identificações. O que é de interesse, é que ele permanece como organizador inconsciente das relações durante toda a vida.
Evolutivamente, na infância, os impulsos de amor e ódio, decorrentes da nossa ambivalência afetiva originária, são dirigidos ao pai e à mãe, e, em fantasia, a criança deseja unir-se a um deles enquanto que o outro é sentido como rival e é alvo de suas fantasias de ódio. Importante frisar que as fantasias são normais e fundamentais para o desenvolvimento psíquico na infância, mas permanecem ativas, embora inconscientes, durante toda a vida.
Esta constelação edípica, com as angústias e os medos que a acompanham, se dá tanto na forma positiva - em que o menino deseja unir-se à mãe e tem no pai um rival, e a menina deseja unir-se ao pai, tendo a mãe como rival , quanto na forma negativa - o menino com o pai e a mãe como rival, a menina com a mãe e o pai como rival.
Por meio desta rede triangular de relações, mãe, pai e criança, esta experiencia sentimentos diversos para com os dois, levando em conta o sexo destes, mas sobretudo a função - materna e paterna. Assim temos vivências subjetivas, que vão além da realidade física do sexo anatômico.
Como produto da combinação das vivências edípicas e da transformação dos impulsos e sentimentos, vai formar-se o psiquismo - a identidade, a identidade sexual e as interdições. Como o psíquico baseia-se, mas transcende a condição biológica, a relação entre sexo e sexualidade é condição necessária mas não essencial para a determinação da preferência sexual. A vivência do complexo de Édipo vai agregar o simbólico das diferenças, o psíquico, ao que é anatômico e físico.
Mas o aprendizado essencial das diferenças vem também da condição humana de dependência do outro, da incompletude, embora o amadurecimento torne evidentes as diferenças em termos sexuais. É muito mais fundamental a diferença entre os adultos e a criança, visto a condição indefesa com que nascemos e que requer, inicialmente até para garantir a própria vida, o cuidado do outro para a satisfação das necessidades e dos desejos que delas surgem. Dependência que continua por toda a vida, de outras formas, inclusive com relação aos desejos sexuais, em que se busca a completude do que é por natureza, complementar.
A combinação das vivências edípicas, que, como se vê, vai muito além da diferença sexual, contribui para a formação, além da identidade e identidade sexual, das interdições internas. Estas, são produto do medo da criança que, em função de sua dependência física e psíquica dos adultos, ao experimentar seus desejos sexuais e desafiar a ordem da diferença entre os adultos e a criança, teme por sua integridade corporal e pela perda do amor de seus pais. A instância psíquica responsável pelas interdições e pelos valores morais e sociais, é o superego, um “juiz” e um sancionador internalizado. É o representante da lei e da autoridade e é, tendo esta estrutura como base, que o indivíduo se relacionará e internalizará as normas sociais.
O tabu do incesto vem a ser a interdição da consumação das fantasias edípicas, realização que é justamente a tragédia que se dá no mito grego. Portanto o complexo de Édipo tem, além do aspecto de desejo e fantasia, um aspecto real e trágico se for realizado, ferindo a lei básica da constituição familiar. O tabu do incesto é o aspecto simbólico do Complexo de Édipo que o torna nuclear para a formação do psiquismo, para as interdições e para a normatização dos relacionamentos sociais. As dificuldades encontradas na família com relação às vivências edípicas poderão redundar em dificuldades na internalização das leis, em dificuldade quanto à autoridade e, como conseqüência, em relações que não discriminam as diferenças entre gerações. As tragédias humanas se dão quando há a violação das leis básicas, e é na proteção à vida e à integridade psíquica que o Direito encontra a legitimidade de sua intervenção e autoridade.
Atualmente fala-se em estrutura edípica, pois com a vivência das crianças é reativado o complexo de Édipo dos pais, como este foi elaborado e que ainda continua a sê-lo no presente. A diferença entre as gerações vai implicar não só na interdição de relações incestuosas como também na compreensão do superior interesse da criança, que, diga-se de passagem, é questão fundamental nos dias atuais. É esta a ética do afeto que deve prevalecer na família, de modo a que esta atenda sua finalidade de construção da personalidade e de proteção e amparo da integridade psíquica dos menores, e possibilidade de realização de todos os seus membros.
Finalmente cabe lembrar que, diversamente do dito que se tornou popular, a psicanálise não explica, e diversamente do uso que, por vezes, se faz dela como psicologia, ela é uma metapsicologia, que igualmente não se confunde com a nosologia psiquiátrica. Ela não prescreve e nem pode ser utilizada para prever, dado seu princípio metodológico da multideterminação dos fenômenos psíquicos e do que é a pedra fundamental de sua teoria e prática - a existência do inconsciente. Devendo seu uso ser restrito à sua finalidade de método de investigação, sendo necessário estarmos alertas para o uso pervertido que possa dela ser feito.
A utilidade da psicanálise encontra-se muito mais em sua metodologia de investigação balizada pela consciência dos limites de nosso saber frente ao desconhecido, que se de um lado nos ameaça, de outro nos protege da arrogância de tudo saber, conduzindo-nos a um maior exercício do livre arbítrio mental.
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