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Gratuidade da justiça e o paradoxo da loteria
Gratuidade da justiça e o paradoxo da loteria
Gabriela Pinheiro Santos[1]
Rodrigo Fernandes Pereira[2]
O programa constitucional desenhado para assegurar o acesso à Justiça em face da hipossuficiência apresenta diversas vertentes. Pode-se mencionar, entre elas, o direito à assistência jurídica integral e gratuita, cristalizado pela instituição da Defensoria Pública.[3]
Por outro lado, sob a máxima constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”[4], também abrigam-se disposições infraconstitucionais importantes. Normativas estas que instituem outras vias para o acesso à justiça, notadamente, o benefício da gratuidade, disciplinado pela Lei n. 1.060/1950 e pelos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil.
A garantia, popularmente conhecida como “justiça gratuita”, refere-se à suspensão da exigibilidade do pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, em razão da insuficiência de recursos de pessoa natural ou jurídica[5]. Abrange, ainda, a hipótese de redução percentual do adiantamento desses valores, assim como seu parcelamento[6].
No tocante ao alcance da gratuidade da justiça, enumeram-se, no parágrafo 1º do art. 98 do CPC, as despesas acobertadas: além das percebidas mais intuitivamente, como taxas ou custas judiciais, estão aquelas referentes aos honorários periciais, à realização de exame de DNA, à elaboração de memória de cálculo em sede de execução, e aos atos notariais necessários à efetivação de decisão judicial, por exemplo. Tudo no sentido de assegurar a uma parcela da população a realização de atos considerados essenciais à perquirição de seus direitos.
Ponto sensível da discussão a respeito dos dispositivos mencionados reside justamente na determinação dos beneficiários da gratuidade da justiça. Afinal, os requisitos para tanto, conforme postos no CPC, são dotados de alto grau de subjetividade, motivo pelo qual permitem ao juízo significativa margem discricionária. Veja-se:
Art. 98. A pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei. [...]
A “insuficiência de recursos”, portanto, é o mais próximo que se chega de um limite legal nesse sentido. Na sequência, dita o art. 99, caput e §3º, do mesmo Código:
Art. 99. [...] § 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
Do acima, destaca-se a importante presunção de veracidade atribuída à declaração de hipossuficiência feita por pessoa natural. O que contrabalanceado pela possibilidade de sua impugnação pela parte contrária[7]. Contudo, nem mesmo o crivo do contraditório tem o condão de resolver o problema da expressão “insuficiência de recursos”, pois aquele situa-se no plano da discussão processual, enquanto esta serve de baliza à própria discussão, e portanto a antecede.
A miscelânea de critérios possíveis dentro dessa mesma definição legal dá causa a insegurança jurídica, resultando na aplicação de exigências desiguais, e nem ao menos equânimes, para o acesso à justiça mediante gratuidade, variadas até mesmo dentro de uma só comarca ou tribunal.
Nesse sentido, curiosa a análise de duas decisões proferidas sob o controle do Tribunal de Justiça de Santa Catarina: uma, em primeiro grau, confirmada em sede de Agravo de Instrumento; já a outra, em sede de Apelação Cível:
- A despeito dos documentos colacionados nos petitórios de evento 18 e 19, mantenho a decisão agravada por seus próprios fundamentos, sobretudo em razão do acordo entabulado pelas partes, onde a requerente ficou com a posse de diversos bens, incluindo carro de luxo (evento 1, doc. 4, fls. 05/06), conforme já salientado no decisum de evento 9, sendo irrelevante a existência ou não de vínculo empregatício formal. (autos de n° 5007988-04.2019.8.24.0090)
- E, conforme consignado pela douta Procuradoria de Justiça "... ao exame dos documentos apresentados pela apelante, percebe-se, efetivamente,ao menos neste momento, a sua condição de hipossuficiência, sobretudo por se encontrar desempregada, não se olvidando que a lei não exige a miserabilidade para a concessão do benefício, senão que o pagamento das despesas processuais possa acarretar prejuízo à própria manutenção do postulante e de sua família, como também não obriga a parte interessada a se desfazer de seus bens para custear as despesas processuais, e assim, ter acesso à Justiça".Por estas razões, entendo que, pairando dúvidas sobre a possibilidade financeira da recorrente, por ora, essa incerteza deve ser interpretada em seu favor, em face do princípio do acesso à justiça insculpido no artigo 5º, LXXIV, da CF/88. (autos de n° 0302460-32.2018.8.24.0091).
Observam-se, do acima, entendimentos bastante distintos sobre qual tipo de hipossuficiência deve ensejar a concessão de gratuidade da justiça: aquela relacionada à renda e ao patrimônio, ou apenas à renda? Afinal, tanto renda quanto patrimônio podem ser classificados como “recursos”.
Face à dúvida legítima, andou bem o segundo acórdão colacionado acima ao buscar fundamentação em valores jurídicos abstratos - princípio do acesso à justiça -, mas também nas consequências práticas da decisão - evitar o desfazimento de patrimônio -, mediante juízo de proporcionalidade, como manda o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)[8].
A primeira decisão, por outro lado, adotou premissa a respeito do que seria hipossuficiência - não ter renda e nem patrimônio - sem ao menos justificá-la com valores abstratos, muito menos ponderar suas consequências para o requerente.
Assim, corrobora-se, pelo cotejo dos casos práticos em comento, a falta de critérios legais objetivos para a concessão do benefício da gratuidade da justiça. Situação esta agravada pela relação direta do tema com os cofres públicos e o patrimônio pessoal dos cidadãos, portanto em detrimento de alocação melhor e mais justa dos recursos estatais, em prol dos necessitados.
Não obstante, fica evidente que existem formas de minimizar os danos causados por essa indeterminação jurídica. Motivar as decisões judiciais com base em valores jurídicos abstratos, em concomitância com a realização de juízo de ponderação a respeito de suas consequências práticas, como manda a LINDB, parece um caminho razoável face à insegurança.
Dentro do mesmo cenário, o Superior Tribunal de Justiça firmou tese no sentido de proibir a utilização de critérios exclusivamente objetivos para o deferimento ou não do benefício de justiça gratuita, reiterando a necessidade de se analisar concretamente a situação econômica da parte postulante[9]. A contrario sensu, tal reforça a praxe forense no sentido de eleger determinados parâmetros, como a faixa de isenção do imposto de renda, porém limitados à análise factual do caso, também no sentido de reduzir a insegurança jurídica.
A partir dos instrumentais acima mencionados, por mais que não se possa resolver a falta de uniformidade que permeia a concessão gratuidade da justiça, evita-se que o deferimento de tal benefício se torne, paradoxalmente, questão de loteria judiciária.
[1] Advogada, OAB/SC n° 59.000.
[2] Advogado, OAB/SC n° 8.328.
[3] Arts. 5º, LXXIV, e 134 da CF/88.
[4] Art. 5º, XXXV, da CF/88.
[5] Art. 98, caput e §§ 2º e 3º, do CPC.
[6] Art. 98, §§ 5ºe 6º, do CPC.
[7] Art. 100 do CPC.
[8] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
[9] 1) É inadequada a utilização de critérios exclusivamente objetivos para a concessão de benefício da gratuidade da justiça, devendo ser efetuada avaliação concreta da possibilidade econômica de a parte postulante arcar com os ônus processuais.
[...]
2) A faixa de isenção do Imposto de Renda não pode ser tomada como único critério para a concessão ou denegação da justiça gratuita.
Disponível em <https://scon.stj.jus.br/docs_internet/jurisprudencia/jurisprudenciaemteses/Jurisprudencia%20em%20Teses%20150%20-%20Gratuidade%20da%20Justica%20-%20III.pdf>. Acesso em 22.06.2020 às 10:50 horas.
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