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A conquista ao direito de ser cuidado – 10 Anos da Lei 12.318 - 2010
A conquista ao direito de ser cuidado – 10 Anos da Lei 12.318/2010
Melissa Teles Barufi. Advogada. Presidente da Comissão Nacional da Infância e Juventude do IBDFAM e Conselheira da OAB/RS.
Laura Affonso da Costa Levy. Mestre em Bioética. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões e Professora de cursos de pós-graduação em Direito de Família e Sucessões.
Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução da Compreensão dos Direitos Fundamentais Constitucionais. 3. O Cuidado como valor jurídico. 4. A criança, o adolescente e o cuidado. 5. As conquistas legislativas no Direito da criança e a Lei 12.318/2010. 6. Conclusão. 7. Referências.
Resumo
As ciências jurídicas e sociais evoluem a partir da transformação da sociedade, uma vez que imbricada na historicidade humana. A dinâmica valorativa e conceitualização jurídica reformulam-se através das multifacetadas vivências humanas. Nesse sentido, a intenção é demonstrar a evolução da conceitualização dos princípios fundamentais, culminando no ingresso do cuidado como valor jurídico e a interface com os direitos da criança e adolescentes, através da análise legislativa, em especial a Lei 12.318/2010.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais – Direito ao Cuidado – Lei 12.318/2010
1. Introdução
A civilização humana, desde os seus primórdios, até o período atual, passou por inúmeras fases, cada uma com suas peculiaridades, pontos negativos e positivos, de modo que as evoluções científicas, tecnológicas, políticas, econômicas, sociais e jurídicas acompanham esse movimento, por muitas vezes, lento e gradual.
De igual modo, a evolução histórica dos direitos inerentes à pessoa também é lenta e gradual. Não são reconhecidos ou construídos todos de uma vez, mas conforme a própria experiência da vida humana em sociedade, somado às transformações sociais que permeiam a construção jurídica.
Nesse passo, tanto a conquista, como a compreensão dos Direitos Fundamentais Constitucionais, passaram por transformações ao longo da história e da evolução legislativa[1].
A partir do novo olhar, tanto ao homem, quanto à lei, permearam-se valores jurídicos ao ordenamento brasileiro atrelados à garantir, fundamentalmente, a dignidade.
Assim, o afeto[2], a felicidade[3] e o cuidado[4] estão no cerne da proteção jurídica contemporânea, como reflexo de uma visão valorativa mais humana, do que patrimonial.
Nessa mudança de paradigma e abertura valorativa os direitos atinentes à criança e adolescentes sofreram grande impacto, que vai desde a nova concepção de pessoa em desenvolvimento até a proteção integral preconizada na Constituição Federal e legislações infraconstitucionais.
Nesse passo, cabe avaliar como o cuidado veio a atender as crianças e adolescentes, na seara legislativa, em especial com a promulgação da Lei 12.318/2010, que introjetou, em última razão, a proteção ao desenvolvimento, ao afeto, à felicidade, à convivência e à ancestralidade, garantindo o direito a circular, permear e transitar no seio familiar.
2. Evolução da Compreensão dos Direitos Fundamentais Constitucionais.
Os princípios constitucionais, na contemporaneidade, assumiram papel relevante na identificação de novos valores que compõem os direitos fundamentais do cidadão. Assim, além daqueles estabelecidos no art. 5º e incisos da Constituição Federal, já se incorporou ao nosso sistema jurídico o reconhecimento dos “Direitos Fundamentais Dispersos”, preconizados por J.J. Canotilho[5].
Nesse aspecto, o conceito de direitos fundamentais da Constituição Federal não se limita a um conceito formal, caracterizando-se por uma dimensão material.
Uma das faces de tal dimensão material é precisamente representada pela chamada abertura material do catálogo de direitos fundamentais, consagrada expressamente pelo artigo 5º, § 2º, da CF, dispondo que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Assim, devidamente batizado de uma cláusula inclusiva, que afasta a ideia de exaustividade (ou taxatividade) do catálogo constitucional de direitos.
Ainda, percebe-se que, na perspectiva da mencionada cláusula de abertura, existem dois grandes “blocos” de direitos fundamentais na ordem constitucional interna brasileira: os direitos expressamente positivados e os direitos implicitamente positivados, como tais considerados os que não encontram referência direta no texto constitucional, de tal sorte que também o conceito material de direitos fundamentais é um conceito de direito constitucional positivo[6].
Vale esclarecer, sem aprofundar na temática, que há distinção, na seara dos direitos “expressamente positivados”, sobrevindo três situações: a) os direitos previstos no Título II da CF, em relação aos quais o constituinte desde logo assegurou a condição de direitos fundamentais; b) os direitos dispersos ao longo do texto constitucional; c) os direitos expressamente enunciados nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Já os direitos implícitos ou implicitamente positivados abrangem todas as posições jurídicas fundamentais não direta e explicitamente consagradas pelo texto constitucional, mas que podem ser deduzidos de um ou mais direitos (e mesmo princípios) expressamente consagrados, em geral mediante a reconstrução (ampliação) hermenêutica do âmbito de proteção de um determinado direito.
Tais direitos são, portanto, de uma riqueza e complexidade significativas e demanda uma análise detida.
Por outro lado, é que se percebe o quanto a reconstrução permanente do catálogo constitucional de direitos evidencia o caráter histórico-relativo dos direitos fundamentais[7], além de determinar um processo de diálogo e fortalecer a ideia de uma sociedade aberta aos intérpretes da constituição.
Nessa linha, ressalta-se o pensamento de Norberto Bobbio sobre direitos fundamentais
Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (...) o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras cultuas.[8]
Essa reconstrução é, por certo, materialização das exigências da sociedade em face das condições da vida e das prioridades determinadas socialmente. Essa multiplicação histórica processou-se, no dizer de Bobbio, por três razões:
a) aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) estendeu-se a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) o homem não é mais concebido como ser genérico, abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente.[9]
Examinando a evolução histórica dos direitos dos homens, que a posteriori influenciaram a consagração dos direitos fundamentais, podemos situá-los, segundo alguns doutrinadores, em dimensões, a saber: a primeira dimensão, a qual corresponde os direitos civis e políticos, essencialmente ligados às liberdades individuais; a segunda dimensão, que abrange os direitos sociais, culturais e econômicos, assentados sobre a igualdade; a terceira dimensão, consubstanciada nos direitos metaindividuais, coletivos e difusos, vinculados à solidariedade[10].
A par disso, considera-se a existência da quarta dimensão, que diz respeito aos direitos referentes à biotecnologia, bioética e engenharia genética, conectados diretamente à questão da vida humana; e, a quinta dimensão, relativa aos direitos advindos da tecnologia da informação, ciberespaço e realidade virtual.
Dito isso, percebe-se, com clareza, a caminhada evolutiva dos direitos do cidadão, que vem buscando a proteção, ou consagração, máxima da dignidade humana, pormenorizada nas distintas facetas que compõem a complexidade humana, inclusive atentando-se para a especificidade social e etária[11].
Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes:
Nas últimas décadas, o Direito Civil vem sofrendo profundas transformações, afastando-se cada vez mais da perspectiva patrimonialista-individualista do Código Civil de 1916 para buscar novos paradigmas sempre iluminados pelo conjunto de princípios e valores constantes da Constituição Federal de 1988, em especial o axioma da dignidade da pessoa humana e da incidência das normas dos direitos e garantias fundamentais. Pode-se dizer que o Direito Civil brasileiro foi reformado mediante a articulação entre a eficácia normativa dos princípios e a abertura democrática do sistema jurídico através da aplicação dos princípios constitucionais, cujo papel foi reconhecido nas relações do Direito Privado.[12]
Assegurando-se, assim, a proteção de novas dimensões de direitos, denota-se o caráter transformador e evolutivo dos direitos fundamentais e, somado a isso, o ingresso de novos valores jurídicos, que integram a personalidade, a dignidade, a autonomia e a liberdade da pessoa, garantindo a sobreposição do afeto, da felicidade e do cuidado à materialidade e ao formalismo jurídico.
Tal reformulação sobrevém não só na seara constitucional, como adentra na esfera infraconstitucional, modificando a funcionalidade das legislações, que abrangem esse espírito evolutivo dos direitos do cidadão.
3. O Cuidado como valor jurídico.
Cabe apontar a dificuldade para definir “cuidado”. Neste sentido, uma definição ampla de cuidado incluiria toda forma de atenção centrada na pessoa.
Dessa atenção podemos ramificar para a proteção, que deve acompanhar o ser humano desde a sua vulnerabilidade de recém-nascido, até ao extremo oposto, da vulnerabilidade do idoso[13].
De igual modo, pode-se englobar a educação[14], que é fonte primordial para inserção social, bem como autoafirmação pessoal.
Nesse sentido, o cuidado exige tanto de amor, carinho e afeto, quanto de trabalho ou tarefa, no sentido de dedicar-se ao outro[15].
O cuidado como ‘expressão humanizadora, preconizado por Vera Regina Waldow, também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família de origem(...). A autora afirma: ‘o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e dificuldades da vida humana’.[16]
O ordenamento jurídico brasileiro insere a questão do cuidado em diversos dispositivos legais, desde a Constituição Federal de 1988 até legislações infralegais. Deste modo, o dever de cuidar encontra-se implícito em diversas normas de proteção[17].
Na Constituição Federal de 1988, o dever de cuidar tem como fundamento primordial o princípio da dignidade da pessoa humana, positivada em seu artigo primeiro, sendo este um dos pilares da República[18].
Assim, onde estiver a pessoa humana, será sempre ela alvo dos cuidados da ciência jurídica.[19]
Estaríamos, ainda, perante um valor jurídico estreitamente relacionado com a solidariedade e, especialmente no seu aspecto familiar, também muito conexo com a ideia de afetividade[20].
Neste viés, percebe-se a relevância para a guinada de eixo no desenvolvimento dos seres humanos e, por consequência, sua influência nas relações familiares. Ana Carolina Brochado Teixeira demonstra em suas lições que a dignidade alterou a posição das crianças e adolescentes no ordenamento jurídico pátrio, salvaguardando seus direitos e preservando seus interesses:
A dignidade da pessoa humana foi sedimentada em novos pilares, os quais se acredita serem mais próprios ao novo papel da criança e do adolescente. Para melhor embasar a interpretação crítica e construtiva do poder parental, é necessário encontrar o novo “lugar” ocupado pela criança e adolescente na ordem civil-constitucional, bem como analisar como a dignidade foi para eles vertida [...] uma das maiores demonstrações do fenômeno da personalização foi o tratamento prioritário dado à criança e ao adolescente, como pessoas em desenvolvimento, e alvo da proteção integral da família, da sociedade e do Estado, cujo melhor interesse deve ser preservado a qualquer custo. Este também constitui uma verdadeira mudança epistemológica no Direito de Família [...]. Os menores além de serem dotados de dignidade, como qualquer pessoa, são também sujeitos de Direito.[21]
Vale referir que, na perspectiva constitucional, o cuidado trata-se de um dever conjunto, atribuído à família, à sociedade e ao Estado, consoante se extrai do art. 227 da CF[22].
De igual modo, a norma constitucional reconhece a existência recíproca do dever de cuidado entre pais e filhos em seu art. 229, ao determinar que os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
A consciência desta relação de interdependência entre os sujeitos é inerente ao advento do Estado Social e à superação do individualismo exarcebado que pautou a era liberal[23].
Daí o surgimento de diretrizes gerais de conduta que se baseiam em deveres recíprocos de solidariedade entre as pessoas (sem olvidar o Estado). Pode-se dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade caminham lado a lado.
A solidariedade no núcleo familiar compreende a solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros ou conviventes, principalmente quanto à assistência moral e material. O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado; em outras palavras, de solidariedade. O casamento, por exemplo, transformou-se de instituição autoritária e rígida em pacto solidário. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o nosso ECA ressaltam a solidariedade entre os princípios a serem observados.[24]
Desta forma, o direito vem cada vez mais aceitando esse novo contexto em que a sociedade se encontra. Principalmente após a vigência da Constituição Federal de 1988 percebe-se a adequação da legislação pátria, reconhecendo o cuidado como valor jurídico e dando a este instituto uma qualidade de interesse público, uma vez que se fundamenta no princípio da dignidade da pessoa humana.
Como bem preleciona Heloísa Helena Barboza:
Reconhecido como valor implícito do ordenamento jurídico, o cuidado vincula as relações de afeto, de solidariedade e de responsabilidade não só familiar, pois é preciso identificar o cuidado dentre as responsabilidades do ser humano como pessoa e cidadão. Nesse sentido, o cuidado conduz a compromissos efetivos e ao envolvimento necessário com o outro, como norma ética da convivência. Entendido como valor informador da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva nas situações existenciais, tem importante papel na interpretação e aplicação das normas jurídicas.[25]
4. A criança, o adolescente e o cuidado.
Avaliar a interface da criança, do adolescente e do cuidado é fazer um giro ao longo do século XX, na tratativa da criança para a sua compreensão como vulnerável.
Do Código de Menores de 1927 à Constituição da República de 1988, prevaleceu a Doutrina da Situação Irregular como norteadora da atuação estatal sobre as vivências destes sujeitos.
Atualmente, prevalece a narrativa da Doutrina da Proteção Integral, a qual destaca a circunstância de toda e qualquer criança ser digna de resguardo especial no ordenamento. Neste discurso, o seu melhor interesse é celebrado como norteador da análise e se irradia para a reinvenção destas personagens no âmbito do direito das famílias.
O contexto em que as pessoas estão concretamente inseridas é, portanto, primordial para a formulação de um conceito político dos direitos da infância e, consequentemente, de vulnerabilidade. Não significa só afirmar que todas nascem vulneráveis, mas, sim, que todas necessitam de cuidado cotidiano e diário para a sobrevivência digna.
Neste aspecto, fica desvelada a importância do cuidado como nova chave para se anunciar a tratativa das vulnerabilidades infantis pela narrativa jurídica.
Assim, a questão do cuidado como valor jurídico é a base de inúmeras decisões judiciais, especialmente nas questões controvertidas, em que se procura priorizar noções como afetividade, solidariedade familiar e proteção às pessoas dos filhos, considerando, dentre outros, desenvolvimento, convivência, alimentos e pertencimento familiar.
Vale registrar, de igual modo, a definição trazida por Leonardo Boff sobre cuidado como algo “com dupla função: de prevenção dos danos futuros e de regeneração de danos passados”[26]. Assim, os atores jurídicos são chamados para atuarem em situações em que crianças e adolescentes estão sujeitos a terem seus direitos violados, prevenindo danos futuros, mas, muitas vezes, são acionados quando a violação já ocorreu, cabendo promover a regeneração dos danos do passado.
De forma paralela e, sem menos importância, a reformulação da estrutura familiar, ocorrida com o advento da Constituição de 1988, surgindo o conceito de família eudemonista, excluindo a família baseada exclusivamente pelo vínculo matrimonial e priorizando a organização familiar baseada no afeto, com a busca da realização plena de todos os membros que a integram, foi de extrema relevância nas relações paterno-filiais, interferindo diretamente na proteção infantil.
No que diz respeito aos titulares do dever de cuidado, deve-se realçar que primordialmente, compete aos pais e/ou responsáveis legais, a partir do exercício do poder familiar, a importante tarefa de zelar pela existência digna da criança. São eles, assim, os responsáveis diretos pelo cumprimento desse dever.[27]
Atualmente trabalha-se com o princípio da paternidade responsável (art. 226, §7º da CF), que determina aos pais os deveres de “sustento, guarda e educação dos filhos menores” (art. 22 do ECA), o que não pode ser feito de forma dissociada ao dever de cuidado.
E, tanto no âmbito familiar, como no âmbito institucional, tem sido inserida, gradativamente, nas diversas áreas do conhecimento, a ideia de que o afeto exerce papel fundamental na observância do dever de cuidado. Assim, no campo da pedagogia:
A ações relativas ao cuidar (...) são apresentadas de forma a ressaltar o desenvolvimento integral da criança, envolvendo aspectos afetivos, relacionais, biológicos, alimentares e concernentes à saúde. O contexto sociocultural aparece como determinante nas construções humanas e nas necessidades básicas de sobrevivência, diferentes em cada cultura, com isso, fica claro, no papel designado ao cuidar, a necessidade de envolvimento e comprometimento do professor com a criança em todos s seus aspectos, e a compreensão sobre o que ela sente e pensa, o que traz consigo, a sua história e seus desejos. Para cuidar é preciso um comprometimento com o outro, com sua singularidade, ser solidário com suas necessidades, confiando em suas capacidades. Disso depende a construção de um vínculo entre quem cuida e quem é cuidado. É preciso que o professor possa ajudar a criança a identificar suas necessidades e priorizá-las, assim como atendê-las de forma adequada. Deve-se cuidar da criança como pessoa que está num contínuo crescimento e desenvolvimento, compreendendo sua singularidade, identificando e respondendo às suas necessidades. Isso inclui interessar-se sobre o que a criança sente, pensa, o que ela sabe sobre si e sobre o mundo, visando à ampliação desse conhecimento e de suas habilidades, que, aos poucos, a tornarão mais independentes e mais autônomas.[28]
Sob a ótica do direito, a ausência de cuidado já foi identificada pela jurisprudência com o abandono afetivo dos pais, apesar da controversa e difícil tarefa de se estipular em que consiste a mencionada falta de afeto e até que ponto pode-se, ou deve-se, ser sancionada pelo direito.
Vale referir que, a dificuldade de se detectar quando e sob que circunstâncias o dever de cuidado deve ser considerado negligenciado não é exclusiva do direito. E assim ocorre porque, embora as demais áreas do conhecimento atribuam extrema importância a este dever – bem como à questão da afetividade – há distintos fatores que interferem na árdua tarefa de diferenciar, por um lado, a criação com afeto da proteção excessiva e incapacitante, e, de outro lado, a ausência de cuidado do estímulo ou confiança nas aptidões da criança.
Somado a isso, o desenvolvimento de novas tecnologias, o superconsumismo, o crescimento demográfico e desenvolvimento abrupto dos centros urbanos, com o aumento significante da violência, estabeleceram novos limites e, de igual modo, novas possibilidades para as crianças da atualidade[29].
Assim, nitidamente, estamos em uma fase de transição e, de certa forma, de insegurança quanto ao exercício das atividades parentais, haja vista que a própria dimensão de cuidado transmudou-se. Diante desse quadro, as escolas oscilam quanto aos comportamentos considerados adequados aos educadores e educandos, o que torna ainda mais complicada a questão da definição dos limites do cuidado.
Embora imprecisa, a delimitação do dever de cuidado com a infância, no âmbito jurídico ou fora dele, leva em conta diretrizes estabelecidas a partir de princípios constitucionais da dignidade e da solidariedade.
Diante disso, a observância de tal dever, em que pese prioritária dos pais ou responsáveis legais da criança, não se restringe a eles, mas é papel que deve ser desempenhado pelo Estado e por toda a sociedade.
5. As conquistas legislativas no Direito da criança e a Lei 12.318/2010.
Não se pode olvidar a debilidade histórica tanto do Estado quanto da sociedade em reconhecer e fazer valer os direitos da criança e do adolescente reconhecendo-os em sua completude como sujeitos detentores de garantias fundamentais.
Porém, a partir da segunda guerra mundial (1939- 1945) tornou-se imprescindível a formalização de determinados princípios e a garantia de sua inviolabilidade para preservação dos direitos do indivíduo. Daí a criança e o adolescente passaram gradativamente a receber, ainda que de forma incompleta, alguma proteção do Estado.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro de 1948), a dignidade passa a ser reconhecida em seu preâmbulo como elemento intrínseco a todos os membros da família humana, assegurando para todos os integrantes desta, direitos iguais e inalienáveis, além de irradiar a liberdade, a justiça e a paz no mundo.
A Declaração resguarda a capacidade indistinta de todos os indivíduos para fruir dos direitos e liberdades nela previstos; a igualdade de tratamento perante a lei, assim como a proteção contra qualquer forma de discriminação; a liberdade de pensamento, consciência e crença religiosa; a liberdade em poder opinar e se expressar; os cuidados necessários à infância e o tratamento igualitário aos filhos concebidos dentro ou fora do casamento; dentre outros direitos e garantias nela previstos.
Assim, houve o fortalecimento do respeito e da dignidade do indivíduo nas relações sociais e, principalmente, dentro das relações familiares, passando ao tratamento igualitário e, por conseguinte, garantindo à criança e ao adolescente a importância, proteção e cuidado que realmente necessitam e merecem.
Paulatinamente a criança e o adolescente passam a ser considerados pela sociedade e pelo legislador como indivíduos carecedores e detentores de direitos e garantias fundamentais.
Com o advento da Carta Magna de 1988 e, logo em seguida, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), o país passou a aplicar o princípio da proteção integral, afastando por completo o termo “menor” e objetivando proteger a criança e o adolescente, independente da situação em que se encontram.
Concretizou-se a ideia de que as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e titulares de garantias fundamentais, conferindo-lhes, indistintamente, proteção prioritária, vedando qualquer forma de discriminação.
De lá pra cá, houve uma crescente no que se refere à proteção das crianças e adolescentes no Brasil, principalmente fortalecendo os encargos, os múnus e responsabilidades da família para o pleno desenvolvimento da prole, com a noção de parentalidade[30] e, principalmente, em igualdade de condições.
O Código Civil de 2002 eliminou qualquer resquício de privilégio a qualquer um dos genitores. Abrangeu equivalência de prerrogativa e de responsabilidades parentais, formando-se, assim, o conjunto de direitos e obrigações conferidos aos pais e em favor de seus filhos menores e incapazes (art. 1634 Código Civil), permanecendo obrigados a prover todas as necessidades da prole, educá-los e prepará-los para a vida, dever este que não se extinguirá sequer com a dissolução da sociedade conjugal.
Nessa esteira, em 2008 foi sancionada a Lei 11.698 que instituiu e disciplinou, preliminarmente, a guarda compartilhada, que visa priorizar o bem-estar da criança, garantindo que ambos os genitores exerçam verdadeiramente a custódia, gerindo e administrando a vida dos filhos em igualdade de condições, proporcionando um crescimento e amadurecimento sadio aos menores e assegurando-lhes o exercício do poder familiar.
O instituto do poder familiar, vale ressaltar, é protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro e se baseia no princípio da igualdade de direitos e deveres entre os genitores em razão dos filhos, o que significa que mesmo após a ruptura conjugal, os filhos não podem ser privados do convívio paternal ou maternal, pois seus direitos fundamentais devem ser resguardados em qualquer hipótese em virtude da responsabilidade parental[31].
Sobreveio, então, a Lei da Alienação Parental – 12.318/2010 – que abarca normas a serem aplicadas em conjunto com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com a Constituição Federal, bem como o Código Civil traçando diretrizes relacionadas à Alienação Parental, cujo objetivo é a proteção do menor e a preservação de seus direitos fundamentais e, em especial a convivência familiar e o cuidado, mental e moral.
Assim, quando o genitor guardião negligencia no seu dever de cuidar obstruindo o direito da criança do convívio com o outro genitor, estará ferindo o direito e garantia fundamental das crianças e adolescentes, descrito na Magna Carta.
Nesse particular a Lei nº 12.318/2010, foi criada com o objetivo de tutelar e coibir os atos de alienação parental, praticados pelo genitor alienante em face do genitor não detentor da guarda através da utilização da prole, como se esta fosse um instrumento de vingança.
De outro modo, visa assegurar a criança ou adolescente uma convivência familiar pacífica entre pais e filhos, preservando assim sua integridade física e psicológica almejando sempre o melhor interesse da criança, a proteção ao desenvolvimento, ao afeto, à felicidade e à ancestralidade, garantindo o direito a circular, permear e transitar no seio familiar.
Firme nessa premissa consagra o direito ao relacionamento familiar, que compreende a convivência, a companhia, as visitas, o contato permanente e as garantias de efetividade.
Assim, representa um avanço no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no que se refere ao Direito de Família, por conferir meios ao constituinte para possibilitar ou resguardar o direito da criança ou adolescente ao convívio familiar mesmo após o término do relacionamento de seus genitores, tendo em vista a igualdade de direitos e deveres dos pais para com os filhos em virtude da responsabilidade parental.
O alcance protetivo da Lei e das medidas de proteção que podem ser aplicadas nos casos de alienação parental, dependem principalmente da educação e conscientização da sociedade e dos profissionais envolvidos no combate de tal problemática, que pode gerar consequências irreversíveis para a prole.
Através da análise dos princípios constitucionais, das medidas protetivas e dos novos valores jurídicos emergentes que podem ser aplicados ao tema, percebe-se que o objetivo principal não é punir o genitor alienante, mas sim restaurar o convívio familiar como forma de cuidado e resguardo dos direitos da criança e do adolescente.
A criança, para crescer de forma equilibrada e completa, necessita de um círculo familiar sólido e harmonioso, que a crie e lhe dê afeto, pois os laços afetivos são fruto de um processo ativo. Nesse aspecto, Sampaio refere que “a família não é, assim, uma cédula indestrutível, mas um espaço emocional onde cada um procura crescer e individualizar-se”[32].
Assim, a criança e o adolescente têm direito a sua história pessoal, bem como desenvolver sua personalidade e formar sua identidade pessoal, o que vem sendo protegido pelas legislações brasileiras, que trazem na sua essência a proteção e o cuidado, como valor supremo a ser perseguido.
6. Conclusão.
Os princípios constitucionais e, acima de tudo, a compreensão contemporânea, através da hermenêutica jurídica, garantem a proteção máxima da pessoa humana, esculpida na sua dignidade.
Pode-se a partir disso, verificar a existência de novos valores jurídicos emergentes, que buscam ramificar as estruturas de proteção, para garantir o pleno desenvolvimento, através da felicidade, do afeto e do cuidado.
Assim, o avanço legislativo, Constitucional e infraconstitucional, está consubstanciado numa estrutura mais humana e menos patrimonialista, na medida em que põe a salvo o aspecto mais intrínseco do ser humano - seu desenvolvimento.
Na seara do Direito das Famílias e Direito de Filiação temos que ter a clareza de que os princípios constitucionais, esses de caráter fundamentais, se imbricaram nas legislações que visam à proteção e ao cuidado na infância e adolescência.
Dessa maneira, sem sombra de dúvida, a Lei 12.318/2010 é um esboço desse olhar, eis que consagra o direito à convivência familiar, ao contato permanente, ao afeto, às manutenções e fortificações de vínculos, somado ao cumprimento do preceito da isonomia entre os genitores e responsabilidades parentais.
Consagrou-se, enfim, o direito de ser cuidado.
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ZANETTI, Sandra Aparecida Serra; GOMES, Isabel Cristina. A “fragilização das funções parentais” na família contemporânea: determinantes e consequências. Temas em psicologia. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413389X2011000200012&1ng=pt&nrm=iso. Acesso em 14.02.2020.
[1] Vale referir, como mera referência, que, com relação ao surgimento dos direitos fundamentais, eles não possuem, efetivamente, uma origem determinada. Tem-se que as principais correntes jusfilosóficas deram sua contribuição na tentativa de apontar o momento em que tais direitos teriam surgido. A concepção jusnaturalista é de que esses direitos são anteriores a qualquer lei ou ordenamento, inerentes a própria humanidade.Os juspositivistas, entretanto, consideram que esses direitos resultam da legislação. Dessa forma, seriam consequência da positivação das normas. Assim, as leis são produto da ação humana e os direitos fundamentais são frutos dessas leis.
[2] O direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um indivíduo a outro. O afeto ou afeição constitui, pois, um direito individual: uma liberdade que o Estado deve assegurar a cada indivíduo, sem discriminações, senão as mínimas necessárias ao bem comum de todos. In: BARROS, Sérgio Rezende de. O Direito ao Afeto. Revista Especial Del Rey IBDFAM - Maio 2002. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/artigos/50/O+direito+ao+afeto. Acesso em 10.02.2020.
[3] Quanto ao tema, Marcelo Souza Aguiar explana que “a compreensão do direito à felicidade alberga exatamente o senso de limite, a noção de que, da mesma forma que o desenvolvimento moral da Humanidade é bastante lento – ao contrário do célere progresso científico-tecnológico –, o alcance da felicidade é um processo árduo, de luta e conquista, avanços e recuos, como o próprio curso da História”. In: AGUIAR, Marcelo Souza. O Direito à Felicidade como Direito Humano Fundamental. Revista de Direito Social n31, jul./set. 2008, p. 110-11.
[4] Leonardo Boff considera que Justiça e cuidado são as pilastras sobre as quais se sustenta a morada humana (ethos em grego) e que produzem a possível felicidade e o suficiente bem-estar para todos. BOFF, Leonardo. Justiça e Cuidado: opostos ou complementares?. In: PEREIRA, Tânia da Silva e Oliveira, Guilherme de. (Coord.). O Cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 11.
[5] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Lisboa: Almedina, 1999, p. 380.
[6] Sobre o tema: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 13ª ed., Livraria do Advogado Editora.
[7] Nessa temática, vale referir a historicidade do ser humano que, com sua cultura, situa-se dentro da história e encontra-se envolvido em uma rede de situações e relações que lhe são prévias e que moldam sua própria constituição, bem como os valores e as próprias regras ao seu redor. Assim, seu país, sua cultura, sua língua, sua história política e social formam estruturas que edificam e influenciam as ações e penetram nos modelos políticos sociais.
[8] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 5/19.
[9] Idem, ibdem.
[10] Para Cláudio Lembo, tal panorama reforça o consenso de que a afirmação dogmática dos direitos fundamentais se deu em momentos diferenciados, à vista da inegável mutação histórica dos direitos fundamentais, sendo que, de início e conforme vem sendo discutido, foram formalmente consolidados os direitos de liberdade, passando em seguida aos direitos de igualdade e, logo após, os direitos ligados à noção de solidariedade, sequência essa que reflete o lema dos idealistas franceses que viveram no século XVIII: liberdade, igualdade e fraternidade. In: LEMBO, Cláudio. A pessoa: seus direitos. São Paulo: Manole, 2007.
[11] Nesse sentido: As normas constitucionais estão localizadas no topo do sistema jurídico brasileiro, desempenhando funções de interpretação, integração e de construção das demais normas do ordenamento. Pode-se dizer, portanto, que a Carta Magna alavancou uma autêntica reestruturação da dogmática jurídica, a partir da afirmação da cidadania como elemento propulsor. In: ROSENVALD, Nelson. FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: parte Geral e LINDB. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 61.
[12] MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho do Direito Civil Constitucional. Revista de Direito Civil. São Paulo: RT, n. 65, jul/set. 1993, p. 24.
[13] Vale ressaltar que a legislação põe a salvo os direitos do nascituro. Assim, a lei e a jurisprudência têm reconhecido seus direitos, o que já seria suficiente para reconhecer sua condição de ser, de personalidade, necessitando dos cuidados especiais do Direito. Em que pese o CCB só reconhecer a personalidade do ser humano ao nascer com vida (art. 2º do CCB), ressalva seus direitos, por sua capacidade de direito e de adquirir direitos. Sua proteção, assim, tem admitido sua capacidade processual, seu direito de receber reparação de danos morais, pela perda do pai atropelado por composição férrea (STJ, 4ª Turma, REsp 399028, Rel. Min. Sávio de Figueiredo Teixeira, julg. 26.02.2002), bem como seu direito de pleitear alimentos e de ingressar com ação investigatória de paternidade, sendo representado por sua mãe. Some-se a isso, seu direito a alimentos por sua mãe grávida, através da Lei n. 11.804/2008 – Alimentos gravídicos. Também, vale lembrar que o CCB reconhece direitos de receber doação, se aceita por seu representante legal (art. 542), bem como a legitimidade de suceder (art. 1798).
[14] A psicóloga e pesquisadora Lídia Weber, em sua obra Eduque com carinho, voltada para pais e filhos, traz o que há de mais recente em pesquisas científicas sobre educação de filhos em uma abordagem que se chama disciplina positiva, onde lembra que a resiliência tem sido uma das palavras-chave da atualidade, cujo conceito “indica que uma pessoa é capaz de enfrentar e superar adversidade. Resiliência pode ser vista como uma série de habilidades que podem ser apreendidas e aplicadas no decorrer da vida. Uma criança que possui resiliência é aquela que consegue lidar mais efetivamente com o estresse, com os desafios de cada dia, recuperar-se das frustrações, resolver problemas e ter expectativas realistas”. Ainda, pesquisadores tem mostrado que essa capacidade de ser resiliente tem as suas raízes mais profundas na interação com os pais que incorporam no seu manejo doses de empatia, otimismo, amor incondicional, capacidade de comunicação ativa e paciência. Crianças adquirem resiliência também quando tem os pais comprometidos com elas.
[15] Vale lembrar que o Superior Tribunal de Justiça - STJ proferiu decisão no sentido de que amar é faculdade, cuidar é dever. Logo, o que pode ser exigido entre os membros da entidade familiar é o dever de cuidado. A Relatora, Ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça arbitrou em um caso de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais. O fundamento foi o de que “amar é faculdade, cuidar é dever”. Na visão da Ministra, existem relações que trazem vínculos objetivos para os quais há previsões legais e constitucionais de obrigações mínimas, como acontece com a paternidade. “Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos”, declarou a Ministra. Segundo ela, o amor estaria alheio ao campo legal, situando-se no metajurídico, filosófico, psicológico ou religioso. Para a relatora, o cuidado é um valor jurídico apreciável e com repercussão no âmbito da responsabilidade civil, porque constitui fator essencial — e não acessório — no desenvolvimento da personalidade da criança. “Nessa linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamada necessarium vitae”. Para a Ministra, “não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família”. E mais: a interpretação técnica e sistemática do Código Civil e da Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive “os intrincados meandros das relações familiares”. REsp 1159242/SP, jul. 24.04.2012..
[16] PEREIRA, Tânia da Silva. Abrigo e alternativas de acolhimento familiar. In: PEREIRA, Tânia da Silva e OLIVEIRA, Guilherme de (Coord.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309.
[17] O dever de cuidar, segundo alguns autores, está enraizado na natureza humana. Sobre o tema: WALDOW, Vera Regina. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 27; BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2012).
[18] Nas palavras de Paulo Nader, “A pessoa humana é o ponto de partida e o alvo, direto ou indireto, de todas as construções jurídicas, sendo a Ciência Jurídica elaborada pelo homem e para ohomem”. In: NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 181.
[19] Nesse sentido, temos a lição de Álvaro Villaça Azevedotrazendo que: “Encimando a principiologia dos cuidados do Direito e da Lei, ao ser humano é a sua própria vida que desponta, base da existência e do respeito que integra o conceito de Direito, como vida humana em que se objetivam os interesses antes do ser humano, depois da sociedade, com a circunstâncias que ela cria e que merecem proteção jurídica, solução e cuidados”. In: Ensaio sobre o cuidado e o direito de ser. Cuidado e o direito de ser: respeito e compromisso. PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (coord.), 1 ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, p. 24.
[20] Quanto ao ponto, Paulo Luiz Netto Lobo explica que “A Constituição e o direito de família brasileiros são integrados pela onipresença desses dois princípios fundamentais e estruturantes: a dignidade da pessoa humana e a solidariedade. A solidariedade e a dignidade da pessoa humana são hemisférios indissociável do núcleo essencial irredutível da organização social, política e cultural e do ordenamento jurídico brasileiro. De um lado, o valor da pessoa humana enquanto tal, e os deveres de todos para com sua relação existencial, nomeadamente do grupo familiar; de outro lado, os deveres de cada pessoa humana com as demais, na construção harmônica de suas dignidades”. In: LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em HTTPS://jus.com.br/artigos/25364/principio-da-solidariedade-familiar. Acesso em 13.02.2020.
[21] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 74-75.
[22] “Art. 227 CF: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (Redação dada pela Emenda Constitucional n º 65, de 2010).
[23] Arruda Alvim, nesse ponto destaca “Num primeiro momento – surgimento dos direitos sociais, sobretudo os de cunho individual – o princípio da solidariedade não abandona completamente a ótica individualista, apenas. Os direitos surgidos no Estado Social são direitos individuais, de cunho socializante, porque referentes a sujeitos que se encontram em situações diferenciadas e que, por isso, necessitam de tutela especial do Estado. Marcam, por isso, uma mudança de enfoque acerca do princípio da isonomia, até então visto pela perspectiva meramente formal, que passa a ser encarado sob a ótica substancial, no sentido de se compensarem as diferenças existentes no plano fático (social, econômico, etc) mediante tratamento diferenciado da lei. O equilíbrio social é, pois, a tônica do Estado Social de Direito. Se, no período liberal, partiu-se de uma visão do indivíduo isolado, alheio à sociedade, para conceber os direitos de primeira dimensão, já no Estado Social tem-se em mira o homem inserido na sociedade, do que florescem os direitos de segunda dimensão. Estes direitos, embora já se revistam de cunho social, são ainda, em sua maioria, direitos de natureza individual, eis que somente com a emergência dos direitos de terceira dimensão é que se verão bem definidos os direitos coletivos num sentido amplo e, bem assim, as possibilidades da respectiva tutela pelo Estado”. In: ALVIM, Arruda. Direitos Sociais: qual é o futuro? Revista Forense. Vol. 403, ano 105, mai-jun 2009, p 3-30).
[24] LOBO, Paulo Luiz Netto. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: HTTPS://jus.com.br/artigos/25364/principio-da-solidariedade-familiar. Acesso em 14.02.2020.
[25] BARBOZA, Heloísa Helena. O Cuidado como Valor Jurídico. In: A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 237.
[26] BOFF, Leonardo. Ética e moral, a busca do fundamento. Petrópolis: Vozes, 2004, p.37.
[27] Veja-se, nesse sentido, a redação do art. 229, CF: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
[28] FOREST, Nilza Aparecida; WEISS, Silvio Luiz Indrusiak. Cuidar e educar: Perspectivas para a prática pedagógica na educação infantil. Disponível em https://docplayer.com.br/2215211-Cuidar-e-educar-perspectivas-para-a-pratica-pedagogica-na-educacao-infantil.html. Acesso em 14.02.2020.
[29] Sobre o tema: Hoje a criança já nasce em meio a um contexto que lhe reserva um lugar de maior liberdade para exploração e conhecimento do mundo e ambiente familiar, já que os valores de democracia, liberdade e igualdade promoveram a abertura deste novo universo à criança. Ao mesmo tempo, esses valores proporcionam uma maior convivência com a diversidade, o que pode trazer contribuições muito ricas para a formação das subjetividades e identidades na família e, consequentemente, para a sociedade. In: ZANETTI, Sandra Aparecida Serra; GOMES, Isabel Cristina. A “fragilização das funções parentais” na família contemporânea: determinantes e consequências. Temas em psicologia. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413389X2011000200012&1ng=pt&nrm=iso. Acesso em 14.02.2020.
[30] A noção de parentalidade está relacionada a tarefas, encargos, múnus, responsabilidades que recaem primariamente aos pais, mas se espraiam sobre toda família e que devem ser exercitadas de modo suficiente à formação e ao desenvolvimento da prole, ao nível físico, psicológico e social. Por se uma missão das mais complexas e desafiadoras do ser humano, a parentalidade compreende vários e relevante aspectos que foram pontuados por Barroso e Machado em sua definição multidisciplinar como o ‘conjunto de atividades propositadas no sentido de assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento da criança, num ambiente seguro de modo a socializar a criança e atingir o objetivo de torná-la progressivamente mais autônoma’. BARROSO, Ricardo G.; MACHADO, Carla. Definições, dimensões e determinantes da parentalidade. apud MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Reflexões sobre a paternidade e maternidade socioafetiva. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Cuidado e o direito de ser: respeito e compromisso. 1 ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, p. 259-60.
[31] Nesse aspecto, vale ressaltar que a CF venceu a ideia clássica da família formada verticalmente pela dominação do homem, ao consagrar o princípio da isonomia, que direitos e deveres da sociedade conjugal seriam exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. No mesmo sentido, a ECA impõe o exercício igualitário do poder familiar entre os pais.
[32] SAMPAIO, Daniel. Inventem-se novos pais. Construindo uma relação mais soída e confiável entre pais e filhos. São Paulo: Gente, 2004, p. 35.
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