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Violência doméstica psicológica – um alerta para mulheres e homens
Violência doméstica psicológica – um alerta para mulheres e homens
Maritza Franklin Mendes de Andrade
Coordenadora do Núcleo Regional do IBDFAM em São José dos Campos
Assunto muito falado durante a pandemia do Covid 19, a violência doméstica está na berlinda. O aumento dos índices de denúncia de violência choca, chegado a 50% em determinados locais. O isolamento social, com o confinamento das famílias em seus lares, agravou um quadro que já era crítico e o debate sobre a violência doméstica se faz essencial.
A Lei Maria da Penha (Lei federal n. 13.340/06) define os tipos de violência doméstica como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, que aconteçam por ação ou omissão, em relações no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou ainda em qualquer relação íntima de afeto.
De acordo com a referida lei, a violência física é representada por qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher. A psicológica se caracteriza por conduta que cause à mulher dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. Já a violência sexual é entendida como qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força, que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. A patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Por fim, a violência moral é definida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria contra a mulher.
Revela-se essencial, como medida preventiva, o debate do tema violência doméstica nas rodas de conversas que acontecem pelas ferramentas digitais ou em lives, para que mais pessoas possam conscientizar-se dos tipos de violência, passando a identificá-las, quando for o caso, na própria relação doméstica, familiar ou afetiva e assim, buscar ajuda profissional para fortalecimento e interrupção do ciclo, até então despercebido pela própria mulher sujeita à violência.
O objetivo deste texto é abordar especificamente a violência psicológica, basicamente caracterizada por opressões, xingamentos, humilhações, controle, ameaças, ciúme excessivo, em ações constantes que atingem a própria imagem que a mulher tem de si mesma, ferindo sua autoestima, sua liberdade de se expressar, sua maneira única de ser. Este tipo de violência é tão ou mais grave que a física pois fere a integridade psicológica da mulher, sua capacidade de ter visão crítica e mesmo de reagir a uma ofensa física.
Exemplos práticos de violência psicológica são:
- Criticar constantemente qualquer atitude da mullher;
- Intimidar pelo olhar, gesto ou grito;
- Determinar o jeito que ela deve se vestir, falar, se expressar, comer;
- Desqualificar suas relações afetivas com família ou amigos;
- Xingamentos que a deprecia;
- Exposição da mulher em público em situação humilhante;
- Crítica ao corpo ou ao intelecto de forma ofensiva, inclusive ao seu desempenho sexual;
- Vigilância constante, ciúme excessivo, controle de redes sociais e da utilização do celular;
- Ameaças contra a mulher ou de se matar caso ela saia da relação;
- Cerceamento da liberdade da mulher.
Os anos de violência psicológica sofridos pela mulher levam, lentamente, ao adoecimento físico e psíquico. Os sintomas físicos mais comuns são hipertensão, gastrite, obesidade, síndrome de dor crônica, distúrbios ginecológicos. Já os sintomas psíquicos são depressão, ansiedade, síndrome do pânico, distúrbio de sono, distúrbios alimentares, fobia, consumo de álcool, tabaco ou drogas, tendência ao suicídio. Por ser uma violência restrita à intimidade familiar, pouco diagnosticada, os profissionais de saúde também apresentam dificuldade no correto acolhimento e tratam, por anos, apenas os sintomas e não a causa.
Segundo a OMS, a cada 3 mulheres, uma já sofreu violência psicológica, sendo essa, portanto, a forma mais presente de agressão intrafamiliar à mulher. É essa violência a argamassa que possibilita que as demais formas se materializem, em especial a física e a sexual, já que a mulher sem auto estima, desacreditada de seu potencial, sem contato próximo com amigos ou familiares não consegue reagir às agressões físicas ou sexuais e se mantém na relação, cada vez mais submissa. Erroneamente, em muitas pesquisas aparece a violência física como a mais prevalente, entretanto, é certo que a violência psicológica é subnotificada.
A identificação precoce da violência psicológica é uma forma eficiente de prevenção de violências física e sexual, podendo evitar o altíssimo número de feminícidio do nosso país. Contudo, a divulgação das características e efeitos da violência doméstica psicológica ainda é pequena. As campanhas públicas focam, em sua maioria, na violência física, cujos efeitos são mais visíveis e drásticos, todavia, não minimizam a importância de que venha à baila essa sadia discussão sobre a gravidade e os efeitos nefastos de se viver sob doses homeopáticas de agressões psicológicas, muitas vezes aceitas por serem “normais” na nossa sociedade, que degradam a imagem que a mulher tem de si mesma, sua autovalorização, sua noção de respeito, sua liberdade de ser quem é. Assim, este tipo de violência pode se apresentar na forma de “brincadeiras”, atos que muitas vezes fazem parte da dinâmica natural do relacionamento, justificados no papel social de controle do homem, e que apesar de serem tidos como “normais”, têm natureza violenta, e a própria mulher não os vê como agressão, mas sofre seus efeitos, físicos e psíquicos, com desdobramentos que vão além do indivíduo, influenciando a estrutura familiar, social e econômica.
Ainda no campo da violência psicológica, a chamada gaslighting – denominação inspirada no filme gaslight de 1944 que relata relacionamento com este tipo de violência – é uma faceta ainda mais delicada da violência psicológica, difícil de ser identificada, até mesmo por profissionais, e com efeitos devastadores. São atos de abuso sutis e manipuladores que levam ao ponto de a mulher se autoanular, transformando-se em um poço de dúvidas e medos. A agressão não é clara como nos casos em que a mulher sofre xingamentos, ameaças, passa por atos humilhantes em público. Nesse caso, uma postura comum no relacionamento é se colocar em dúvida o que a mulher faz, pensa ou sente, como se fosse um exagero, paranoia, ou invenção dela, que acaba acreditando no que lhe é falado. A mulher tem alterada sua percepção da realidade, vai se calando cada vez mais, por ser a todo tempo questionada e colocada à prova, e pára de opiniar, de se expressar, ficando anulada e sem controle sobre si mesma. As dúvidas e confusões mentais levam ao ponto de a mulher se sentir culpada das condutas violentas do abusador e duvidar de tudo que acontece à sua volta. Normalmente se sentem esgotadas, para baixo, anuladas, pois tentam a todo momento se defender, fazer valer seu ponto de vista, ou porque não querem desapontar e se controlam todo o tempo para agirem da forma “correta”. São mulheres que se tornam inseguras e se questionam se estão dizendo bobagem, muitas vezes preferindo ficar quietas pois suas opiniões não valem. A família e os amigos raramente identificam esta violência, o que dificulta ainda mais a reação da mulher que está submetida a tais atos. É comum não ser possível registrar boletim de ocorrência pois os próprios profissionais não identificam atos de violência nos relatos da mulher, sendo cabal a dificuldade de se provar.
É essencial, portanto, que se divulguem informações relativas à violência psicológica para que, ao identificar que algo não vai bem em seu relacionamento ou mesmo identificar em si os sintomas de quem vive violência psicológica, a mulher procure ajuda. Neste ponto, revela-se muito importante o papel dos profissionais de saúde, em especial os médicos ginecologistas, que são detentores da confiança, intimidade e rotineiramente examinam essas mulheres. Estimular esses profissionais a acolher e diagnosticar os sintomas físicos e psíquicos da violência psicológica facilitará a abordagem sobre o assunto e o encaminhamento ao tratamento psicoterapêutico, que representa ferramenta essencial ao processo de conscientização da existência de violência e de ajuda para reconstruir a relação com base no respeito, ou, nos casos em que não for possível, para que se tenha um sadio rompimento do relacionamento.
Percebe-se que o combate à violência doméstica contra a mulher não deve ser visto sob a ótica da polarização entre masculino e feminino, de uma briga entre mulheres e homens. O caminho mais fértil é o da conscientização, para que todos, mulheres e homens, percebam quais atitudes caracterizam a violência – neste caso, o enfoque é na psicológica –, e sabendo dos efeitos graves advindos desta prática, procurem ajuda de profissionais que os auxiliem a construir relacionamentos baseados no respeito, em que masculino e feminino se completam, numa dinâmica de crescimento mútuo. Sabe-se que é desafiador, tendo em vista o quanto se está acostumado a viver em meio à violência psicológica, sendo a repetição de padrões familiares o maior fator de ocorrência de violência em relacionamentos – filhos que viram seus pais se agredindo psicologicamente repetem isso em seus relacionamentos –, contudo, o primeiro passo precisa ser dado, com a identificação dos atos de violência, para que assim, novos padrões os substituam, e uma nova consciência seja formada. É possível!
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