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Da poligamia a monogamia: como a propriedade privada e o estado moldaram a proteção conferida ao âmbito familiar pelo ordenamento jurídico através dos códigos civis brasileiros
Da poligamia a monogamia: como a propriedade privada e o estado moldaram a proteção conferida ao âmbito familiar pelo ordenamento jurídico através dos códigos civis brasileiros
Autora: Judith Fernanda Oliveira de Cerqueira*
Resumo: O presente trabalho possui a intenção de demonstrar como mudanças de paradigmas sociais – e econômicos – interferiram na concepção que se tem hodiernamente não somente do instituto familiar em si, como também da tutela jurídica que lhe é conferida. Ademais, a obra prima de Engels, “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” será a base central para análise da proposta deste artigo, aliado, ainda, a uma breve análise histórica e social dos institutos da poligamia e monogamia. O principal objetivo deste trabalho consiste em demonstrar como o Estado pode se valer de se controle sob o núcleo familiar em detrimento de fins meramente econômicos, minando, com isto a autonomia e liberdade privadas amplamente asseguradas pelo Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: ENGELS. DIREITO DE FAMÍLIA. POLIGAMIA. MONOGAMIA. ESTADO
Abstract: The present work intends to demonstrate how changes in social – and economic – paradigms have interfered in the conception that has today not only the Family institute itself, but also of the legal protection conferred on it. In other over, Engel’s masterpiece, “The Origin of the Family, Private Property and the State” will be the central base for analysis of the proposal of this article, also allied to a brief historical and social analysis of the institutes of polygamy and monogamy. The main objective of this work is to demonstrate how the State can use control under the family nucleus to the detriment of merely economic purposes, thereby undermining the private autonomy and freedom widely guaranteed by The Democratic Rule of Law.
Keywords: ENGELS. FAMILY LAW. POLYGAMY. MONOGAMY. STATE.
1 INTRODUÇÃO
Apesar de termos a monogamia como alicerce para a constituição de uma família, nem sempre este sistema familiar foi usual na sociedade como um todo. A origem da humanidade está profundamente conectada com a poligamia, a qual consiste em relações sexuais e afetivas praticadas pelo homem, aonde, geralmente, existem mulheres submissas e complacentes, cujo comportamento pode ser derivado de uma situação que foi imposta de maneira violenta em razão da cultura vivenciada pelo espectro familiar, aspecto que será analisado mais adiante. A poliandria, por um outro lado, segue a mesma lógica da poligamia, mas é a mulher possuidora de mais de um marido, sistema este que fora muito comum em regiões do Himalaia, regiões estas que geralmente eram pobres e as terras desprovidas de maiores riquezas, demonstrando cenário totalmente oposto do ambiente onde a poligamia normalmente se desenvolve, vez que este sistema familiar é geralmente percebido em núcleos familiares dotados de grandes riquezas, como bem se pode notar a partir da poligamia praticada por sheiks no Oriente Médio.
É sabido, ainda que haja inúmeras tentativas de tentar reprimir tal fato, que durante muito tempo da história da humanidade as famílias se organizavam de maneira poligâmica, a exemplo das tribos americanas tão bem relatadas por Morgan, o qual teve suas pesquisas amplamente utilizadas por Engels quando da elaboração de sua obra prima, “A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada”. Ainda que tenha sido a poligamia expressão do poder masculino, haja vista ocorrer quando um homem dispõe de várias esposas, a transição deste sistema familiar para a monogamia se deve a um único fator: explorar as riquezas da propriedade familiar, bem como gerar ainda mais riquezas, e perpetuá-las através da linhagem familiar, o que aqui se configura como a principal finalidade deste trabalho, o qual se valeu, além de análises histórico-sociais, de análise jurídica acerca de institutos existentes no Código Civil de 1916, e como este impactava diretamente as relações interpessoais reguladas de maneira tão ferrenha pelo Estado, o qual, mesmo após o advento do Código Civil de 2002, manteve o seu intenso controle sobre o âmbito privado, ainda que seja de maneira sutil e mascarada com intenções forjadas pelos direitos fundamentais.
- DA POLIGAMIA A MONOGAMIA: TRANSFORMAÇÃO DE PARADIGMA SOCIAL EM DETRIMENTO DA PROPRIEDADE PRIVADA
Não é proposta deste trabalho se prestar a uma minuciosa análise acerca da complexa gênese da poligamia, mas sim analisar os impactos que a mesma causou na construção da compreensão do núcleo familiar ao longo dos séculos, bem como da transição deste sistema familiar para a monogamia, a qual possui nascedouro atrelado ao gradual surgimento do capitalismo e de suas diversas formas de controle e opressão do núcleo familiar, devendo-se ter em mente que consiste a poligamia numa prática sexual e afetiva executada exclusivamente pelo homem, tendo a poliandria como seu oposto, vez que era a mulher possuidora desta liberdade. Ainda que tenham havido – e hajam – inúmeras tentativas nos últimos séculos de excluir a poligamia da história em razão do surgimento do cristianismo, e consequentemente, do fundamentalismo no século XX nos Estados Unidos, é inegável a participação de destaque que coube à poligamia, a qual, vale aqui frisar, já era praticada na Pré-História pelos homens, posto que as suas mulheres viviam simultaneamente em poliandria (ENGELS, 1884, p. 39) .
Engels, ao se dedicar ao estudo da origem da família, estuda a gens grega e acaba chegando à conclusão que uma possível origem da monogamia se deu dentro desta mesma sociedade da Antiguidade, cuja organização familiar se baseava no sistema patriarcal, onde o exercício se dava exclusivamente pelo homem, o qual possuía o papel de chefiar e controlar a casa, sua mulher e seus filhos, cabendo à mulher o papel de uma mera reprodutora e responsável por fornecer a felicidade e bem estar de sua prole e seu marido. Contudo, este sistema familiar deriva de um anterior, a saber, a família de um par, que consistia na convivência de um homem com uma mulher, sendo, porém, permitida a poligamia e infidelidade ocasional por parte do homem, mantendo a mulher numa posição em que era exigida a mais absoluta fidelidade. Ainda que haja enorme semelhança entre esta família e a família monogâmica, há uma diferença crucial: na família de um par, podia a mulher cortar facilmente o laço matrimonial, devendo-se ainda acrescentar que os seus filhos lhe pertencem de forma exclusiva (ENGELS, 1884, p. 52), constatando, desta forma, os resquícios de um sistema matriarcal, o qual fora gradualmente suprimido pelo patriarcado.
No Velho Mundo, até o estágio inferior da barbárie (ENGELS, 1884, p. 31), não havia a existência da pecuária e da comercialização de gados para a sustentação familiar, tendo o homem que obter sua alimentação no dia a dia através de incursões em florestas e até mesmo através de seus próprios cultivos, sendo a pecuária responsável por atribuir uma ideia de riqueza e propriedade para os homens, ensejando, de alguma maneira, a gênese do capitalismo, embora na época não se pudesse falar com esta exata expressão, vez que somente existia o sentimento de posse e de perpetuação de riquezas. Uma vez descoberta as riquezas que a propriedade poderia gerar através da comercialização de rebanhos, entendeu-se que seria necessário uma instituição familiar que fosse compatível com o novo comércio, vez que conferia ao homem uma posição mais favorável socialmente em comparação com a mulher, e por um outro lado, também era responsável por gerar ao homem o desejo de derrubar a sucessão hereditária em favor de sua prole, (ENGELS, 1884, p. 59), dando início, desta forma, à família monogâmica, cuja união era baseada na ideia de conveniência, tendo em vista que eram os parceiros escolhidos um para o outro pela sua família, sendo irrelevante se há ali o amor ou não, afinal, a monogamia possui fins meramente econômicos a fim de ampliar e perpetuar as riquezas familiares. Conquanto, ao passo em que surge a propriedade privada, despontava a necessidade de haver algo que pudesse não só regular este instituto, como também garantir o seu direito e seu eterno usufruto pelos detentores do poder, emergindo, por conseguinte, o Estado, cujo momento histórico de sua gênese não é preciso, sendo apenas conhecido a razão da necessidade de sua existência: garantir que as riquezas fossem acumuladas e perpetuadas num círculo vicioso, onde apenas os mais afortunados eram beneficiados, ou seja, o Estado funciona em detrimento do instituto da propriedade privada – e séculos mais tarde, do capitalismo – , ainda que hodiernamente sua real intenção de ser esteja mascarada pelo Estado Democrático de Direito e pelos direitos fundamentais.
Uma vez estabelecido o motivo do nascedouro da monogamia, se faz pertinente analisar brevemente como se deu a transição da poligamia para a monogamia, haja vista ser complexo tema e render inúmeros debates entre estudiosos, sendo imprescindível neste trabalho se ater somente aos aspectos que serão mencionados. Ainda que na contemporaneidade muitos enxerguem a poligamia como uma maneira de fornecer liberdade sexual, esse sistema é apreendido de maneira equivocada por boa parte da sociedade, visto que é aplicado como se proporcionasse tanto para o homem, como para a mulher, a liberdade de escolha do parceiro, o que não é verídico, pois como já fora dito anteriormente, é a poliandria responsável por fornecer à mulher esta opção, embora sua ocorrência histórica tenha sido identificada em tribos e vilas que sofriam de problemas econômicos e geográficos, atribuindo a uma só mulher vários maridos, os quais frequentemente eram irmãos, com o intuito de preservar a propriedade e alimentar a família, já que caso houvesse a divisão entre diversos filhos, restaria uma quantidade ínfima para fornecer o sustento fundamental para a sobrevivência, ainda mais se tratando de locais pobres, a exemplo do que ocorria em vilas isoladas situadas no Himalaia. (NANCY E. LEVINE E JOAN B. SILK, 1997)
Dito isto, pode-se aqui traçar um paralelo com a razão de ser da poligamia, a qual foi fundada na opressão e anulação do sexo feminino justamente por ser algo que era imposto às mulheres em detrimento do costume vigente, cabendo ainda acrescentar o fato de que muitas eram sequestradas e vendidas para que servissem somente ao propósito de fornecer sexo e herdeiros para o homem, sendo semelhante a posição da mulher na poliandria, ainda que nesta a mulher seja imensamente respeitada e seja a responsável por dar a última palavra sobre um dado assunto, vez que por ser motivada por questões econômicas e de sobrevivência de seu povo, muitas vezes não é oferecida uma escolha para a mulher, cuja atribuição ao matrimônio se dava para beneficiar o homem e sua família, bem como para manter a sua propriedade, o que nos traz, novamente, para a o ponto central deste artigo: como a propriedade privada molda as relações familiares, bem como interfere no seu âmbito mais íntimo ao mercantilizar o casamento através da preservação do patrimônio masculino. Discorrido este ponto, passa-se aqui a analisar a seguinte indagação: por que a poligamia passou a ser condenada? Com o advento da noção de propriedade, o homem passou a comercializar a terra, bem como a enxergar riqueza no ramo pastoril, seja através da venda de animais para fins alimentícios, ou até mesmo para vestuário forjado a partir do couro animal, conferindo à propriedade o seu aspecto privado, ou seja, o homem passou a ser detentor de seu próprio meio de riqueza, acarretando no constante desejo de acumular esta mesma riqueza, bem como a perpetuação desta através do caráter hereditário de suas posses. É bem verdade que a poligamia oferecia ao homem inúmeros herdeiros para gerir seus bens e continuar a acumulá-los num círculo sem fim, mas com o passar do tempo se percebeu que este sistema familiar, numa sociedade pré-capitalista, ocasionaria prejuízo para os homens, ao passo que teriam estes a obrigação de sustentar mais de uma família, o que, consequentemente, acabaria por reduzir seu patrimônio, frustrando, assim, a expectativa de acúmulo de riquezas.
Para além do aspecto meramente econômico, há a questão moral derivada da religião cristã que imperava durante a Idade Média, período este em que era a Igreja detentora do poder político, ditando as regras de convívio social e familiar, o que acabou por condenar a poligamia como “pecado” e “contra a vontade de Deus”, aspecto este que marcaria de maneira definitiva o banimento da poligamia em diversos ordenamentos jurídicos na contemporaneidade, ainda que sejam numerosos a quantidade de países que ainda adotam a poligamia, a exemplo da Arábia Saudita, cujos adeptos deste sistema familiar são donos de riquezas sem precedentes, demonstrando, com isto, que é a poligamia um sistema feito para os mais ricos, haja vista terem que sustentar múltiplas famílias, tendo a poliandria como seu oposto, vez que é o sistema que vigora para aqueles que são tão pobres que constituir matrimônio com uma só mulher para diversos irmãos é a única opção para que sua propriedade não seja tão reduzida a ponto de não ser mais possível sustentar seus semelhantes.
- O ESTADO E A PROPRIEDADE PRIVADA COMO AGENTES DE MANIPULAÇÃO DO NÚCLEO FAMILIAR ATRAVÉS DOS CÓDIGOS CIVIS BRASILEIROS E DO FUNCIONAMENTO DO CAPITALISMO
Após já ter realizado a abordagem quanto a influência da propriedade privada na família, passa-se aqui a analisar como este instituto, juntamente com o Estado, são capazes de não só manipular o núcleo familiar, como também exercer controle sob este através de leis e de manipulação do âmbito social. Como já dito previamente, não é certo o momento de origem do Estado, apenas sendo conhecimento universal que este encontra sua gênese a partir do ato de vontade humana, ao passo que surgiu a necessidade, no decorrer dos séculos, de existir um instituto que regulasse o homem e suas relações.
Não obstante, a palavra “Estado” que designa este papel e possui conexão com a sociedade política, surge pela primeira vez na obra prima de Maquiavel, “O Príncipe”, cuja atribuição aparecia sempre ligada ao nome de uma cidade independente, já que o nome “Estado”, como indicativo de uma sociedade política, só veio a emergir no século XVI, embora já exista muito antes deste período, afinal, trata-se apenas de uma mudança no nome para caracterizar um instituto que possui a mesma finalidade, não importando o momento: fixar regras de convivência. (DALMO DE ABREU DALLARI, 2016, p. 59). Ademais, é vital compreender o momento histórico pelo qual uma dada sociedade está passando, já que o Estado é um reflexo do contexto socioeconômico que impera nesta ocasião, e durante a Idade Média, período em que houve o despontamento da propriedade privada, não seria diferente, emergindo, com isto, um Estado Medieval, cujo detentor do poder político, em sentido formal, era o Imperador, uma vez que este competia com o poder do Papa, que por mais que fosse possuidor do poder religioso, acaba por adentrar no meio político, afinal, nesta época não havia uma clara separação entre política e religião, daí porque a Igreja possuía uma presença tão forte na política, e consequentemente, no núcleo familiar, cuja preocupação central não era a afetividade, como se é hodiernamente, mas sim a integridade do patrimônio e a linhagem pertencente às famílias, ou seja, tudo girava em torno de perpetuar a linha familiar para que esta pudesse preservar o patrimônio que fora construído pelo patriarca desta, porquanto este aspecto se apresentava de maneiras distintas conforme a classe social, afinal, aos ricos interessava perpetuar através dos tempos não só a sua fortuna, como também os títulos que uma dada família nobre carrega, e aos pobres interessa possuir filhos para que estes possam contribuir para o provimento da casa e do trato para com seu lote de terra, o qual era sua fonte de sustento principal. Tal ponto central que define o âmbito familiar no supracitado período histórico não é inerente desta época, exclusivamente, vez que na Antiguidade grega, quando do surgimento da família monogâmica, este ponto crucial já era determinante para a construção da família, pois a monogamia “foi a primeira forma de família que não se fundou em condições naturais, mas em condições econômicas, a saber, sobre a vitória da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, de origem natural” (ENGELS, 1884, p. 67).
Contemporaneamente, a maior expressão de controle estatal é o Direito, o qual firma leis que caso sejam descumpridas, há uma sanção a ser aplicada, ou seja, é uma forma de controle social, de tentar impedir uma “guerra de todos contra todos” (HOBBES, 1651), tendo este controle social extensão até um âmbito dotado de relações íntimas, afetivas e que ocorrem no privado: a família. O ramo do Direito que tutela este núcleo é o Direito de Família, o qual pode ser definido como “o complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas do matrimônio, a dissolução deste, a união estável, as relações entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e os institutos complementares da tutela, curatela e tomada de decisão apoiada” (MARIA HELENA DINIZ, 2019, p.17), não tendo sua gênese um momento precisamente definido, mas se sabe, contudo, a motivação para sua existência: regular, de maneira inicialmente ferrenha, o instituto do casamento, o qual, como já dito anteriormente, possuía preocupação essencialmente econômica, daí porque o Estado, mesmo em sua forma embrionária, exercia forte controle sob a família. O ordenamento jurídico brasileiro deixa claro no Código Civil de 1916 que preza pela valorização do ente familiar como uma fonte de produção econômica ao não permitir o divórcio, assim como não tornar possível o reconhecimento de filhos havidos fora do casamento – o chamado filho ilegítimo adulterino e o filho ilegítimo incestuoso – sendo que estes pontos centrais de análise do referido diploma normativo seguem a seguinte lógica: um núcleo familiar gera uma renda X durante o mês, renda esta que obviamente terá uma parte sua destinada aos impostos e serviços estatais, garantindo, com isto, a receita do Estado. Contudo, para além de gastar valores destinados ao Estado, uma determinada família também consome bens, produtos, e serviços ofertados por empresas, as quais, por sua vez, estão a serviço do capitalismo, sistema econômico mundialmente adotado, e que visa a um único objetivo: gerar lucro através do consumo em massa, consumo este, por sua vez, que não seria possível ou seria imensamente reduzido acaso fossem os filhos ilegítimos reconhecidos, afinal, estes gozariam dos mesmos direitos dos filhos legítimos, fazendo com que o capital disponível para ser aplicado no meio capitalista seja reduzido, e consequentemente, acaba por afetar o Estado, afinal, este está profundamente ligado com o sistema capitalista, vez que este último fornece ao Estado os aparatos necessários para ter sua renda impulsionada, seja através de impostos recolhidos, ou seja através de privatizações de serviços estatais.
Ademais, a impossibilidade de dissolução da sociedade conjugal também possui sua motivação atrelada a esta mesma lógica, afinal, a proliferação de diversos núcleos familiares que não fossem legítimos de acordo com os ditames da época era um verdadeiro pavor, haja vista o fato de impedir, também, a acumulação de riquezas a serem transferidas para a prole, vez que ao impedir o divórcio, pensava-se em impedir, de uma certa forma, que novas famílias fossem constituídas, fazendo com que em uma eventual sucessão os bens não fossem divididos diversas vezes, ensejando em uma diminuição no capital dos futuros herdeiros. Entretanto, tal aspecto não se perfaz como o único ponto central, sendo que somado a este fato há, claramente, a questão moral que ora orientava a sociedade, ainda que isto não evitasse o desquite, cuja ocorrência se dava para materializar a separação de fato e a partilha de bens, sendo que os cônjuges, contudo, ficavam impossibilitados de contrair novo casamento, ou seja, a sociedade conjugal jamais era dissolvida, fato que somente passou a ser permitido com a EC nº 66/2010, a qual instituiu, finalmente, o instituto do divórcio no âmbito do Direito de Família. Se faz oportuno ressaltar, contudo, que tal emenda fora instituída após oito anos do advento do atual Código Civil brasileiro, ou seja, houve uma longa espera para que indivíduos pudessem regular um aspecto extremamente íntimo de sua existência e inerente à sua liberdade: o ato de escolher seu parceiro, comprovando, portanto, o caráter contraditório e irracional do Estado brasileiro, afinal, ao mesmo tempo em que possui uma das Constituições mais avançadas do mundo e se autodeclara um Estado Democrático de Direito, acaba por intervir constantemente em âmbito privado, e consequentemente, mitigando os princípios da autonomia privada e da liberdade.
Fato curioso é a tutela conferida aos deveres conjugais, presentes tanto no revogado Código Civil de 1916 quanto no atual Código Civil de 2002, e que são impostos aos cônjuges, devendo-se destacar que estes deveres não são mérito exclusivo da Idade Moderna, ao passo que já eram existentes na Antiguidade grega (ENGELS, 1884, p. 68), sendo de extrema relevância frisar que no que tange a infidelidade conjugal, esta era intensamente condenada quando praticada pela mulher, sendo que ao homem era assegurado o direito à infidelidade conjugal, fato este que era tutelado juridicamente pelo Code Napoléon, havendo, contudo, uma única ressalva: podia-se praticar a infidelidade desde que não se trouxesse a amante para a residência familiar, sendo que a infidelidade feminina, por sua vez, gerava tamanha revolta que na Roma Antiga, a mulher era apedrejada acaso viesse a ser infiel a seu marido, o qual, paradoxalmente, era livre para visitar casas de prostituição. Ademais, vale mencionar que a punição feminina não foi algo inerente deste período histórico, vez que no ordenamento jurídico, até o ano de 2005, era o adultério classificado como crime pelo Código Penal, ainda que se tratasse de medida restritiva de liberdade, e não de pena de morte, como ocorria anteriormente, além de que era imposto a qualquer um que viesse cometer adultério, não se restringindo apenas à mulher. A condenação da mulher, se estendia, também, ao aspecto econômico, como bem se pode inferir a partir do Art. 234 do Código Civil de 1916, artigo este que afirmava que caso a mulher viesse a abandonar a habilitação conjugal, poderia o Juiz ordenar que seus rendimentos particulares fossem tomados de si, ou seja, funcionava este artigo como uma mera punição Contudo, ao analisar estes aspectos de punição da mulher em razão da infidelidade conjugal, pode-se chegar a uma interessante conclusão: independentemente da época, a punição moral e social recaía – ou melhor, ainda recai – sobre a mulher em razão do fato desta ser a responsável por manter a harmonia familiar através dos trabalhos domésticos e assistência afetiva de sua prole, mas mais que isso, a sua condenação, tanto literal como social, deriva do fato de que é a mulher responsável pela reprodução de vidas, fato este que irá gerar mais cidadãos para o Estado, mantendo, com isto, sua máquina financeira em constante funcionamento, sendo que este entendimento se torna ainda mais cristalino com o dispositivo legal da supracitada lei mencionada. Portanto, intervém o Estado nos aspectos mais privados do seio familiar, à exemplo da imposição da monogamia como o único sistema familiar aceito juridicamente, justamente para manter sob seu controle este núcleo familiar gerador de riquezas e serviços para alimentar sua gananciosa máquina financeira e perpetuar a existência do capital.
Dispunha o Art. 233 do revogado Código Civil que é o homem o chefe da sociedade conjugal, bem como cabia a este a representação legal da família e a administração dos bens de ambos os cônjuges, o que deixa expresso, mais uma vez, que o patriarcalismo da monogamia possui intenções meramente econômicas, além de que faz o Estado relativizar o seu caráter público, vez que interfere de maneira rígida no ambiente privado, fato que mesmo após a revogação deste Código se faz ainda presente hodiernamente através da imposição jurídica da monogamia, caracterizando uma enorme contradição, afinal, ao mesmo tempo em que o Estado afirma ser um Estado Democrático de Direito, cujo alicerce se dá através do máximo respeito aos direitos fundamentais, dentre os quais se encontram a liberdade de expressão e autonomia privada, está também retirando esta mesma autonomia e liberdade através da criminalização de outras formas de se relacionar familiarmente, ocasionando numa sutil repressão social, ainda que por muitos não seja visto dessa forma, haja vista a capacidade do Estado de se valer da alienação social que ronda diversos sujeitos por conta de nossa base patriarcal que sustenta a sociedade. Quando do advento do atual Código Civil, as expectativas se voltavam para um maior contato com as constantes transformações que ocorrem no campo social, expectativas estas, todavia, que foram altamente frustradas haja vista o demorado e turbulento processo de elaboração deste diploma normativo, afinal, começou a ser criado em 1969, tendo sua comissão presidida por Miguel Reale. A primeira versão do Código foi apresentada em 1972, sendo que em 1975 tornou-se projeto de lei, tendo saído da Câmara apenas em 1984, para somente em 1995 voltar a tramitar legislativamente, recebendo sua aprovação, finalmente, apenas no ano de 2002.
Ao analisar o demorado percurso de aprovação deste Código, nota-se que no ano de 1984 estava o Brasil sob o regime da Ditadura Militar, o qual só viria a acabar no ano seguinte, e estava o país ensaiando um lento e gradual processo de redemocratização, dado que o projeto do Código ficou esquecido em razão da promulgação da Constituição Federal, cuja promulgação se deu em 1988. Desta forma, é nítido que o atual Código Civil, por mais que tivesse sofrido emendas e alterações quando de sua aprovação final, não estava em compasso com a Constituição Federal e com o novo contexto sócio-histórico do país. Ainda que o atual Código Civil tenha superado a ideia do patriarcalismo e tenha instituído a dissolução conjugal de maneira muito mais prática, este ainda estabelece a monogamia como regra, mantendo, desta forma, a sua sutil intervenção na autonomia privada de seus tutelados, assim como constitui como maior preocupação a constante interferência no instituto do matrimônio simplesmente pelo fato deste resultar em diversos efeitos patrimoniais no âmbito público, afinal, trata o instituto do casamento como um contrato, como bem está disposto em seu Art. 1.577, relativizando, com isto, o aspecto afetivo, o qual é a base norteadora destas íntimas relações. Por fim, ao optar por manter a monogamia ainda como regra, está óbvio que não fora abolido o caráter patriarcal, apenas tendo sido mascarado através de ideais democráticos e dos direitos fundamentais, os quais são altamente convincentes para manter boa parte da sociedade brasileira alienada, afinal, mascaram as verdadeiras intenções do Estado: manter sob rédeas curtas os aspectos minimamente privados, apenas para garantir a geração de riquezas para si, bem como a perpetuação destas.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto acerca do tema em questão, pode-se notar como a presença do Estado, embora seja necessária para manter a organização social, pode se esvair de sua atuação pública para adentrar no âmbito privado apenas para tutelar aspectos que ferem a autonomia e liberdade privada dos sujeitos, gerando o questionamento, com isto, até que ponto vale essa incisiva regulamentação e controle do aspecto privado. No entanto, este questionamento pode ter uma de suas explicações no fato de que possui o Estado esta atuação fora de suas órbitas com o intuito meramente econômico de se valer do controle sobre uma estrutura tão íntima apenas visando o incremento de sua receita financeira, tendo como principal incentivador o árduo e injusto sistema capitalista que é o alicerce não somente do instituto estatal, como também das empresas que também contribuem para o aumento de sua receita, bem como para o acúmulo de riqueza estatal, seja através de privatizações de serviços públicos, seja através dos impostos recolhidos destas empresas em razão de seus bens e/ou produtos ofertados no mercado. A transição da poligamia para monogamia apenas comprova o caráter econômico que passaria a ser conferido não somente no âmbito público, como também nas relações interpessoais, tendo o casamento o papel, desde sempre, de gerar riquezas, não importando a maneira, ainda que hodiernamente, felizmente, haja o aspecto afetivo. Aliado a este fator, encontra-se a questão moral que vem forjando e manipulando, conjuntamente com o aspecto econômico, a opinião da sociedade acerca de sistemas familiares diferentes do que lhes sempre foi imposto, contribuindo, desta forma, para uma alienação social em larga escala. Por conseguinte, ao se analisar não somente o atual Código Civil, como também seu antecessor, se pôde chegar a conclusão de que ambos servem – no caso do CC de 1916, servia – a um mesmo fim: manter a sociedade brasileira, especialmente, sob rédeas curtas através de uma sutil intromissão constante no aspecto privado, o qual deveria se manter fora da órbita pública do Estado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada, e do Estado. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2019.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 33ª ed, vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2019.
DE ABREU DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria geral do Estado. 33ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
E. LEVINE, Nancy; B. SILK, Joan. Why polyandry fails: sources of instability in polyandrous marriages. Current Anthropology, Vol. 38, No. 3. (Jun. 1997), pp. 375-398. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/204624?seq=1
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